“Aqui nesse shopping o 'Bom Velhinho' tem que ser branco, igual ao das ilustrações…”. A saga de um homem negro por uma vaga de Papai Noel
Lelê Teles, Geledés
Seo Gerson beijou a esposa e a filha pequena, meteu uma nota amassada de dez pratas no bolso, fez o sinal da cruz e foi esperar o ônibus.
saltou do buzão e entrou no shopping.
oito da matina, só funcionários entrando. Gerson já se sentia um deles, embora temporário.
falou com o segurança e ele apontou a sala. seo Gerson entrou, deu bom dia e recebeu bom dia em troca.
o homem leu em voz alta o que vinha na folha A4: Gerson de Veras, 56 anos, pintor, eletricista…
“Seo Gerson, acho que há um engano aqui. a vaga é para Papai Noel”.
“sim, é isso mesmo”, disse o homem, sorridente e um pouco excitado.
atrás do balcão, o gravata foi mais incisivo:
“seo Gerson, vamos esclarecer as coisas, o senhor é negro, o senhor já viu Papai Noel negro?”
desempregado e precisando muito daquele bico, Gerson não titubeou:
“acho que as crianças que vêm a esse shopping também nunca viram um Papai Noel Negro, isso pode atrair mais crianças”.
o gravata não gostou da bravata de Gerson.
“Seo Gerson, o que atrai ou deixa de atrair gente ao shopping é função do departamento de marketing. não é comigo e nem com o senhor. eu sinto muito”, disse o jovem de pele clara devolvendo o curriculum de Gerson.
“e por que o Papai Noel não pode ser negro?”, quis saber o desempregado, sério e visivelmente contrariado.
o gravata bufou, meio sem interesse em seguir com aquela conversa, mas respondeu:
“Seo Gerson, em todas as ilustrações que o senhor olhar verá que o velho Noel é branco, vem de um lugar que neva e tem bochechas rosadas. o senhor seria uma fraude”.
no afã de papai noar, Gerson foi pra cima:
“como uma fraude? vi um presépio logo ali na entrada que tem um Menino Jesus loirinho, tremenda presepada, Jesus nunca foi loiro, só em shoppings. tá vendo aquele Buda ali”, apontou para uma estátua sobre a mesa do gravata, “ele nem tem cara de indiano, é gordo e chinês, o verdadeiro Buda era negro e magro. tá passando uma novela na Record em que quase todos os egípcios são loiros e têm sotaque carioca. por que diabos os personagens negros podem ser retratados como brancos e os personagens brancos não podem ser retratados como negros?”
o jovem engravatado pegou o controle remoto e diminuiu a temperatura do ar condicionado.
“onde o senhor quer chegar com isso?”, perguntou, esfregando as mãos.
“eu quero sentar naquele trono vermelho que vi ali na praça, botar crianças no colo, sorrir muito, entregar presentes e tirar fotos. o fato de eu ser negro não vai atrapalhar em nada.”
o jovem riu, meio sem graça. fingiu responder alguma coisa pelo zap e finalizou a conversa:
“não, seu Gerson. não nesse shopping. aqui o Bom Velhinho tem que ser igual ao das ilustrações…”
“nunca são iguais, retrucou Gerson, as barbas são falsas, quase todos são magros e jovens e há muitos pedófilos mal intencionados procurando esse emprego. o senhor sabe por que aqueles dois segurança ali da porta são negros? é porque querem que o negro tenha sempre essa imagem, do cara que assusta as pessoas. do que dá medo…”
o gravata fez um sinal com a cabeça e os dois seguranças negros entraram na sala.
“por favor, conduza este senhor até a porta da saída”.
Gerson esperneou como uma gato que está sendo colocado à força dentro de uma banheira. parecia o Garotinho quando o retiraram da maca e tentaram metê-lo num camburão:
“me larguem, daqui eu só saio com este emprego…”, bradou, livrando-se dos irmãos de cor.
a moça do departamento de marketing adentrou a sala e se surpreendeu com aquela confusão.
“mas o que está havendo aqui?”
o gravata ficou de pé e falou com ironia, na certeza de contar com a cumplicidade da irmã de cor:
“este senhor, seo Gerson de Veras, insiste em querer a vaga de Papai Noel…”
“Um Papai Noel Negro?”, ela perguntou. “gente, mas isso é maravilhoso. e ele tem uma cara tão simpática, é gordinho… o senhor já foi Papai Noel alguma vez, seo Gerson?”
Gerson abriu um sorriso e gargalhou um ho ho ho, noélicamente:
“lá em casa, todos os anos eu sou o Noel, a vizinhança toda vem tirar foto comigo, veja aqui”.
e mostrou fotos dele no celular, vestido com uma farda de Noel com alguns remendos, com a molecada do bairro no colo.
a moça ficou encantada.
“pode encerrar as entrevistas, a vaga é dele. seja bem vindo, seo Gerson, tenho certeza que o senhor será um sucesso”.
e foi.
nas redes sociais não se falou em outra coisa.
todo mundo comentava a beleza do sorriso de Gerson. as mães negras, cheias de orgulho, corriam com as crianças cacheadas para fotografá-las ao lado do Noel empoderado.
as crianças brancas perguntavam o que tinha acontecido com ele para ele ter ficado preto, Gerson sorria folgadamente e dizia estar chamuscado de tanto entrar em chaminés.
a meninada gargalhava.
Débora Bahia, a moça do marketing, com faro pra grana, tratou logo de contratar uma mamãe noel igualmente negra.
os dois fizeram tanto sucesso que choveu convites para participarem de festas particulares e acabaram estrelando o VT de natal do shopping.
um site foi até a humilde casa do Noel e contou a sua história.
desempregado, ele queria muito aquele emprego para poder comprar um presente de natal para a esposa e para a filha.
a matéria partiu o coração dos que coração tinham.
e o inusitado aconteceu, o Papai Noel passou a receber presentes das crianças.
“Papai Noel, eu trouxe pra você”.
até que…
na noite de natal, em casa, ao lado da árvore piscante recheada de presentes e com a casa lotada de crianças da vizinhança, a pequena Safira, filhinha de Gerson, disse ao pai, após receber dele a caixinha embrulhada em papel colorido:
“pai, você é o Papai Noel mais lindo do mundo.”
e, do sorriso largo do Bom Velhinho, brotou uma lágrima grande e grossa.
Gerson chorava de felicidade.
palavra da salvação.
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