Contra o Preconceito

Jogadora de vôlei trans, Tiffany desperta polêmica e preconceito

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COI decide permitir a participação de mulheres trans na modalidade feminina dos esportes de sua competência. Foi o suficiente para inflamar as redes sociais com uma série de clichês, ódio e preconceito

Tayná Leite, Huffpost

Vamos falar da Tiffany?

Esta semana recebi a carta escrita pela jogadora Ana Paula Henkel questionando a decisão do COI de permitir a participação de mulheres trans na modalidade feminina dos esportes de sua competência. Prato cheio para inflamar as redes sociais, a discussão que é de fato bastante complexa paira de clichê em clichê colocando gasolina em um assunto que cada vez mais parece inflamar as massas: a falaciosa ideologia de gênero que vem para ameaçar e aniquilar os valores e ideais da família tradicional e do cidadão de bem brasileiro.

Falar da inserção de trans (especialmente mulheres pois ninguém parece estar muito preocupado com os homens trans nas categorias masculinas) é falar principalmente: 1) de determinismo biológico (a ideia de que existem diferenças biológicas e fisiológicas intransponíveis entre homens e mulheres); 2) fixar uma análise teleológica do propósito do esporte e suas responsabilidades sociais; 3) como a criação de um inimigo comum para tirar o foco do problema principal que é e sempre foi a desvalorização da mulher e, consequentemente, das categorias femininas de qualquer esporte; e 4) sobre como o backlash vem disfarçado de ciência para frear conquistas, inclusão e mudança de paradigmas a fim da manutenção do status quo e os privilégios da classe dominante.

Embora Ana Paula se esforce muito para não parecer preconceituosa e conservadora algumas partes da carta transparecem claramente o que, como sempre, está por trás dessa discussão: o conservadorismo e moralismo. Ela fala de supremacia ocidental, de valores e legados de homens e mulheres e de que “não podemos negar a realidade em nome de pautas ideológicas”.

A maioria das pessoas que vi defendendo a não inclusão de atletas trans nas modalidades esportivas argumenta que isso deixaria as atletas femininas em desvantagem pois a divisão em categorias por sexo do esporte existiria para equilibrar as naturais diferenças biológicas existentes. Seria, portanto, injusto com as mulheres que homens (sic) pudessem competir com mulheres pois eles “sempre serão superiores em força física e performance“.

E, embora eu gostaria de abordar com profundidade todas as questões relacionadas ao tema, eu não me sinto em posição de fazê-lo do lugar em que falo enquanto mulher cis. Gostaria, no entanto, de contribuir ao debate rebatendo essas duas premissas com as quais me deparei em praticamente todas as discussões sobre o tema e colocar o porquê, no meu ponto de vista, ela é tão perigosa também para nós mulheres cis.

Antes de mais nada, é importante destacar que, ao contrário do que se gosta de pensar, a divisão no esporte em categorias masculinas e femininas historicamente vem muito mais para segregar e desvalorizar do que equilibrar desequilíbrios físicos.

Aliás, fosse depender do status quo e do desejo dos homens, inclusive do nobre Barão de Cobertin cujos ideais Ana Paula se orgulha de representar, mulheres ainda não competiriam em categoria alguma. Éramos tidas como inferiores, incapazes e indignas de competir com homens, sendo que o tal Barão entendia que servíamos apenas para coroá-los. Foi com muita luta e rompendo muitos paradigmas que mulheres conseguiram o direito a competir em esportes de modo profissional.

Quando lemos sobre a história das Olimpíadas e a entrada das mulheres nos esportes olímpicos, encontramos inúmeras evidências de que a preocupação NUNCA foi equilibrar e sim segregar.

Na primeira edição dos jogos modernos, não houve a participação feminina pois alguns dos idealizadores acreditavam que as mulheres poderiam vulgarizar um ambiente cheio de honras e conquistas[1]. Coubertin considerava que os jogos deveriam representar a figura competitiva do homem, por relacioná-lo com as questões do uso da força, virilidade, coragem, moralidade e masculinidade.

E ainda que tenhamos sido “aceitas” com muito esforço, os esportes nas categorias femininas evoluem sempre muito menos do que o equivalente masculino. Não porque somos mais “frágeis” intrinsicamente, mas porque falta interesse do povo, das federações e entidades, falta investimento e sobra apenas determinação das atletas. Ponto comum a todas as outras áreas em que somos historicamente excluídas socialmente.

Determinismo biológico me apavora pois ele abre uma perigosa linha de raciocínio. Devem os pedreiros ser homens porque são mais fortes? Será mesmo que TODOS os homens são mais fortes do que TODAS as mulheres?

O passo lógico na sequência é dizer que mulheres são melhores professoras de primário, enfermeiras ou secretarias por suas “características” e “habilidades” emocionais. Que são mais aptas a serem donas de casa e cuidar dos filhos. Aliás já se disse “cientificamente” que mulheres não servem para a política pois têm “alterações emocionais e hormonais” que não lhes permitiria tomar decisões difíceis e assertivas quando sob pressão. “Imagina uma mulher com o botão vermelho nas mãos de tpm? Ia começar a terceira guerra mundial” já ouvi. Tudo isso é sempre dito de forma “muito respeitosa” e “pautada em ciência” e não em preconceito.

Simone de Beauvoir nos diz em O Segundo Sexo – Fatos e Mitos:

A fim de provar a inferioridade da mulher, os antifeministas apelaram não somente para a religião, a filosofia e a teologia, como no passado, mas ainda para a ciência: biologia, psicologia experimental etc. Quando muito, consentia-se em conceder ao outro sexo “a igualdade dentro da diferença”. Essa fórmula, que fêz fortuna, é muito significativa: é exatamente a que utilizam em relação aos negros dos E.U.A, as leis Jim Crow; ora, essa segregação, pretensamente igualitária, só serviu para introduzir as mais extremas discriminações.”

​​​​​Resumir a existência de uma pessoa a hormônios é um pouco deprimente para mim, mas triste mesmo é usar o pânico e técnicas de criação do inimigo para se justificar a exclusão e o preconceito e, por que não, a morte de tantas pessoas!

Hitler nos deu uma boa amostra de como isso funciona. Vamos ver o que se falava das questões “biológicas” no Reich? O que eram os judeus “por natureza”? Sem precisar ir tão longe, mulheres negras até hoje sofrem mais no SUS pois recebem menos anestesia do que mulheres brancas pois são consideradas biologicamente mais fortes e resistentes. Aliás, questões biológicas e fisiológicas também serviam de escudo para justificar a segregação de negros no apartheid, e muitas pessoas insistem até hoje que negros são melhores no atletismo por uma questão de natureza.

Mas, então, por que os esportes masculinos têm um nível diferente de rendimento do que em suas respectivas categorias femininas? Por que os recordes masculinos são melhores que os femininos? Bem, o que eu sinto em relação a isso é que não podemos partir da premissa de que homens são mais fortes. Sim, alguns homens são mais fortes do que algumas mulheres. Muitos talvez, mas não todos assim como nem todo mundo é atleta.

Eu acredito que o que define o nível de rendimento de um esporte coletivamente falando é o investimento e treinamento que se dá. Ou seriam os americanos enquanto espécie superiores a nós? Ou os negros “mais aptos” a determinados esportes por razões biológicas?

Quando falamos de sistemas (especialmente de opressão), precisamos lembrar que não são questões individuais apenas. O esporte evolui coletivamente. Como seria se desde sempre tivéssemos tido o mesmo nível de investimento em todos os esportes no masculino e no feminino?

No início da nova era olímpica, temos relatos de mulheres que bateram recordes masculinos. O que houve de lá para cá? É o investimento e a cultura do esporte e NÃO a natureza biológica que definem isso tudo. Nos Estados Unidos, por exemplo, mulheres jogam futebol e são melhores que os meninos.

É algo conceitual e teórico que dificilmente teríamos como um dia equiparar. São séculos de desigualdade no esporte e não me parece também haver muito interesse em se mudar isso financeiramente falando. Assim como não podemos comparar Pelé com Neymar, pois o esporte que Pelé jogou é completamente diferente do esporte que Neymar joga. Assim as modalidades femininas e masculinas, na maioria dos esportes, são quase que esportes diferentes.

O esporte mudou e evolui. O masculino por “n” razões evolui muito mais rápido que o feminino.

E o que isso, então tem a ver com a decisão do COI e a carta da Ana Paula?

Vejo justamente que essa premissa de que homens e mulheres são biologicamente diferentes (e que portanto um “corpo masculino” não poderia competir com um feminino), que vem justificando a violência e exclusão contra mulheres, acaba agora nos tornando algozes. É essencial que analisemos as premissas da nossa fundamentação para não perpetuarmos injustiças.

Biólogos e cientistas na época do apartheid argumentavam cientificamente que negros tinham habilidades atléticas que brancos não tinham. Há ainda quem pense e fale isso. Então, acredito que tudo vai de como lemos a questão fora do contexto. Hoje enxergar que havia apenas opressão é simples, mas quando se acreditava que o negro era diferente, que o negro era mais forte, mais ágil etc, tudo parecia muito normal e biológico.

E do ponto de vista de esportes individuais, existem de fato “iguais”? As nadadoras mulheres cis têm todas a mesma altura, o mesmo formato de corpo, o mesmo nível de hormônios? O Phelps tem uma aptidão genética que o torna imbatível. Deveria ser excluído do esporte? A gente olha pra Tiffany e enxerga o Rodrigo, mas a verdade é que a maioria das trans será mais como nós e menos como eles.

Está se tratando o tema como se daqui para frente fossem sair catando atleta homem para virar trans e dar mais dinheiro nas modalidades femininas. Isso me cheira a alarmismo para criar esse novo “inimigo” das mulheres: as mulheres trans, quando o inimigo das mulheres é o sistema patriarcal e machista que nos diz que ser mulher é ser menos, é ser inferior, é ser cidadã de segunda ou terceira classe. Tirar o foco do real problema criando um novo inimigo é o que me dá medo!

Claro que casos como o da Tiffany chocam porque ela já era atleta na categoria masculina e, sim, terá uma vantagem competitiva individualmente falando. O que vejo é que a vantagem competitiva dela é a mesma de uma pessoa que nasce alta versus a que nasce baixa se ela quer jogar basquete. É uma vantagem. Ponto!

Mulheres trans perderão competições de mulheres cis e homens trans ganharão de homens cis e vice-versa. Mas o esporte e a sociedade como um todo ganham quando incluímos e integramos diferenças. Inclusão é sempre estranha no início e, por isso mesmo, essencial!

“Mas não é justo com as mulheres cis”

E o que seria justiça? Para mim justiça necessariamente é perpassada pela inclusão social. Me alinho a Kant, segundo o qual a justiça envolve o cultivo da virtude e a preocupação com o bem comum. E o que seria o bem comum? Vejam, não há como se definir o que é bem comum, o que é bom e o que é justo sem se passar por uma análise moral. E é aí que cai toda a argumentação biológica. Ela não é “científica”; ela é moral.

Questões de justiça não se dissociam de variadas concepções de honra e virtude, orgulho e reconhecimento. Justiça é a forma certa de distribuir e também de avaliar as coisas. Se uma sociedade justa requer um raciocínio conjunto sobre a vida boa, resta perguntar que tipo de discurso político nos conduziria nessa direção.” A Justiça em Michael Sandel:Aristoteles, Kant e Rawls – Maria Carolina Santini Pereira da Cunha.

A Tiffany é a exceção da exceção e não se pode pautar a regra por ela (embora seja graças a pessoas como ela que podemos ter essas discussões). Quantas meninas trans (que, vamos lembrar, têm uma expectativa de vida de 36 anos) vão poder praticar o esporte que amam se permitirmos que elas concorram no feminino, que é onde elas se identificam?

Quantas meninas e meninos trans vão olhar para pessoas como Tiffany e se amarem mais? Se sentirem viáveis, capazes? O quanto isso vai ajudar na autoestima dessas pessoas e no esporte como um todo? Isso para mim é muito mais importante. Saber que meninas trans poderão ter uma outra opção que não a prostituição que as dizima diariamente é muito mais importante do que quem vai ganhar uma medalha.

Inclusão é o propósito do esporte na minha visão. E aí chegamos ao outro ponto chave dessa questão para mim: a finalidade e propósito do esporte.

Temos mesmo que discutir, mas a simples carteirada de “homens são mais fortes” e “estão tirando nossos direitos” para mim é puro preconceito disfarçado mal e porcamente! Toda inclusão incomoda. Toda mudança de paradigma provoca a sensação de perda.

Se a Tiffany possui uma vantagem competitiva (tanto quanto Phelps para mim!), precisamos focar a discussão: 1) na finalidade do esporte enquanto vetor de inclusão e instrumento social de mudança; 2) nos conceitos de igualdade e justiça; e 3) nas formas de remediação de injustiças e desigualdades históricas. Não em “é biologia e não tem discussão”. Tem que se pesar dois bens jurídicos tutelados e se fazer uma análise teleológica necessariamente.

Se não houvesse separação por sexo hoje provavelmente mulheres não chegariam ao pódio nunca“. Mas isso foi criado pela própria discriminação às mulheres e às modalidades femininas e à falta de interesse, investimento e atenção que se dá às categorias femininas.

Usar esse argumento agora me parece o que chamamos no direito de alegar a própria torpeza em benefício próprio. Mais ou menos assim: excluímos e discriminamos mulheres a vida toda, logo o nosso nível de competição é muito superior ao delas, logo não podemos incluí-las no nosso esporte pois o nosso nível é muito superior ao delas.

E aí, lógico que mulheres cis vão se sentir ofendidas e indignadas por situações como essas da Tiffany. Mas a solução não é excluir trans porque o problema nunca foi sobre trans. O problema são os homens cis e não as mulheres trans. E a solução passa por mais inclusão, mais investimentos em mulheres atletas (cis ou trans) e menos preconceito disfarçado de ciência.

O Brasil é o país que mais mata trans no mundo! Insisto e repito: Tiffany é exceção! A regra serão meninas que poderão ter uma alternativa. Meninas que poderão tomar bloqueadores hormonais e ter um tratamento adequado desde cedo e que competirão com mulheres cis que podem inclusive ter níveis maiores do que elas de testosterona.

Falar sobre isso, discutir tudo isso é o que permite que essas pessoas sejam tratadas com dignidade e possam ter acesso a tratamentos hormonais adequados e de forma humana se assim desejarem.

Ainda, há quem alegue que a decisão do COI desrespeita o princípio da isonomia tratando de maneira igual os desiguais. Eu não acho que a discussão seja sobre isonomia aqui. Estamos falando de incluir e não de excluir.

A isonomia se aplica à inclusão das trans e não à suposta exclusão das cis. Falar desse tipo de questão é abordar violências estruturais. Não subjetividades e sentimentos ou conquistas individuais. Não estou aqui falando de Tiffany ou de Ana Paula e sim do que o esporte representa socialmente, de como a segregação e falta de investimento nas modalidades femininas é pautada e nas possibilidades e interrogações históricas postas para nós agora.

Não há solução fácil, mas estabelecer a premissa é fundamental porque se argumentamos que ter um corpo masculino é necessariamente uma vantagem competitiva estamos abrindo margem para uma série de outras opressões historicamente sustentadas nesse argumento. Esse continua sendo meu principal receio com a carta da Ana Paula e a argumentação majoritária contra a inserção das mulheres trans que tenho visto.

De uma coisa tenho certeza: só poderemos definir essa questão enquanto sociedade se passarmos por duas questões: qual a finalidade do esporte em última instância E como olhamos para pessoas trans enquanto cidadãos e cidadãs. Olhar para o indivíduo, para a atleta ofendida nunca levará a uma discussão social e inclusiva, que é o que me parece ser o cerne da questão.

[1] Goellner SV. Mulher e esporte no Brasil: Entre incentivos e interdições elas fazem história. Pensar a prática. 2006; 1: 85-100.

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