O primeiro livro em português do cartunista Andy Singer
Mais humor, menos motor. Com traços únicos e sarcasmo, sai primeiro livro em português do cartunista Andy Singer. Questionadora, obra inspira os que querem enfrentar corporações, engarrafamentos e cidades voltadas inteiramente para carros
Daniel Santini, Outras Palavras
“Tem certeza que vale à pena comprar uma passagem de avião e gastar esse de tanto de combustível para eu ir ao Brasil falar de… meio ambiente?”. A pergunta de Andy Singer diz muito sobre seu trabalho. Combinando humor e uma consciência ambiental única, o cartunista é um provocador e não perde oportunidade para provocar reflexão, por vezes com uma boa dose de sarcasmo. É um artista divertido, mas não por isso menos questionador do modelo de cidades formatas para automóveis, do papel das corporações na economia e na política, e da cultura de desperdício e consumo. E é justamente por essa capacidade de fazer pensar e por suas preocupações bem fundamentadas que, sim, vale tê-lo por aqui.
Andy Singer viaja para o Brasil de 8 a 17 de março de 2018 para participar de atividades em São Paulo e em Salvador, onde acontece de 13 a 17 de março a próxima edição do Fórum Social Mundial. Ele viaja a convite da Fundação Rosa Luxemburgo para divulgar o livro CARtoons, seu primeiro livro em português. O original, produzido junto com Randy Ghent, foi traduzido por Daniel Corral e publicado pela editora Autonomia Literária junto com a Avocato Edições. O primeiro lançamento aconteceu em 22 de dezembro em um debate durante a festa de fim de ano das organizações citadas junto com Outras Palavras e Rizoma, no Al Janiah, em São Paulo. Presente no evento, a cicloativista brasileira Renata Falzoni, que assina a contracapa da edição, assumiu o mesmo tom de crítica ao consumismo e desperdício e, advogando em favor de transporte ativo, esportes e meio ambiente, foi direta: “mobilidade é um tema que precisa entrar na pauta. Não dá para falar em justiça social e meio ambiente sem falar em transportes”.
A obra de Singer é um trabalho que merece circular. Se tiver um exemplar em mãos, não hesite em arrancar algumas páginas e espalhar por aí. Talvez o Cauê Ameni, o Hugo Albuquerque, e a Manuela Beloni, que cuidaram da edição, ou a Gabriela Leite e o João Rabello, que tiveram tanto carinho no projeto gráfico, capa e diagramação, não gostem muito da ideia de ver picotada a primeira publicação do Andy Singer no Brasil. Mas não dá para deixar esse livro congestionando uma estante. Empreste, dê de presente, doe, largue no banco da praça, na padaria, na bicicletaria mais próxima. Não deixe esse livro parado.
Humor ácido
O cartunista Andy Singer desenha desde pelo menos 1992 e nunca tinha sido publicado no Brasil. O cara é um monstro, não só pelos traços únicos e estilo inconfundível, mas também por sua abordagem inteligente, direta, ácida e bem humorada. O conjunto de charges e textos reunidos no livro CARtoons datam da primeira edição, publicada em 2001, e atualizada pelos trabalhos mais recentes da série NO EXIT, que ele segue publicando até hoje na internet. O livro traz quadrinhos clássicos junto com novas caricaturas que explicitam o ridículo das propagandas corporativas sobre a “sustentabilidade” na sociedade do automóvel. Singer questiona as novas “soluções” tecnológicas da indústria e, de um jeito cru e sarcástico, destrói o marketing ambiental construído ao redor da produção de etanol, exploração fracking e hidrogênio, desenhando, para quem ainda não entendeu, seus impactos.
Os “CARtoons” são mais atuais do que nunca e, mesmo vivendo e desenhando nos Estados Unidos, seu trabalho tem um caráter universal. As megacidades do mundo são cada vez mais parecidas, em uma repetição padronizada e sem graça de avenidas entupidas, trânsito, postos de gasolina, concessionárias, estacionamentos… Falta espaço para a vida. Rabiscando, Singer faz política. Com seus questionamentos à lógica privada do automóvel, coloca em questão o próprio conceito de ordem e progresso. Seus desenhos fazem pensar sobre ideias naturalizadas como “desenvolvimento”, explicitam os limites dos modelos econômicos adotados nas últimas décadas – tanto por capitalistas quanto por socialistas – baseados na motorização e no consumo em massa.
No Brasil, infelizmente, o contexto em que o livro chega não poderia ser mais apropriado. A fabricação de automóveis disparou na última década e, impulsionada por generosas políticas de isenção de Impostos sobre Produtos Industrializados (IPI), manteve ritmo acelerado mesmo durante períodos de crise. Desde 2007, as indústrias produzem pelo menos 2 milhões de novos carros, veículos comerciais, caminhões e ônibus por ano, segundo informações da Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores. Nunca antes na história do Brasil as indústrias do setor produziram tanto. Em 2012, foram nada menos do que três milhões e 800 mil veículos novos no mercado! Embora a crise política, econômica e social de 2016 tenha afetado o setor, a produção se manteve acima do patamar alcançado em 2007 de mais de 2 milhões de carros fabricados.
Números de guerra
Em um contexto de lobby permanente por políticas que favoreçam a indústria, é sintomático que seja mais fácil encontrar dados detalhados relacionados à produção de veículos do que estatísticas precisas de mortos e feridos no trânsito. Segundo o Ministério da Saúde, mais de 40 mil pessoas morreram anualmente em ocorrências com veículos entre 2010 e 2014. Em 2015, data do último levantamento divulgado, foram contabilizados 37.306 mortos e 204.000 feridos hospitalizados.
Os dados não batem com os registros do seguro de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre, o DPVAT, que apontam que a média de mortos entre 2010 e 2014 foi superior a 50 mil por ano, chegando a mais de 60 mil em 2012 (sim, o mesmo ano do recorde histórico da produção de automóveis).
Em 2015, o DPVAT registrou 42.500 indenizações por morte e 515.750 por invalidez em ocorrências de trânsito. (isso para falar apenas das mortes e ferimentos diretamente relacionados a colisões e atropelamentos; simplesmente não há dados sistematizados de ocorrências indiretamente relacionadas aos impactos da multiplicação de motores, tais como as doenças relacionadas à poluição do ar, que afetam principalmente idosos e bebês).
São números de uma guerra – para comparação, em 2015 a estimativa é de que 55 mil pessoas morreram na Guerra da Síria.
Não é por acaso que no final de 2016 a Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS) solicitou que os prefeitos eleitos e reeleitos no Brasil mantivessem os limites das vias urbanas menores ou iguais a 50 km/h, um recado direto para o novo prefeito de São Paulo, João Dória Jr. (PSDB), eleito com um programa de governo batizado “Acelera São Paulo”. Como se tivesse saído de um quadrinho de Singer, Dória Jr. simplesmente ignorou todos os levantamentos que relacionam a redução da velocidade à redução do número de mortos e feridos, e anunciou em 25 de janeiro de 2017, aniversário da cidade, o programa “Marginal Segura”, ampliando a velocidade das duas principais avenidas da cidade, as vias que margeiam os rios Tietê e Pinheiros. Isso, Marginal SEGURA.
Desacelera, São Paulo
Explicitar absurdos por meio do humor é a essência da arte de Andy Singer e, na nova São Paulo acelerada ou em outras capitais congestionadas por automóveis do Brasil, quem ler esse livro certamente encontrará pessoas e situações bastante reais. A identificação é imediata, seja nos argumentos de carroólatras que pretendem impor suas necessidades individuais de transporte motorizado em detrimento do bem coletivo, seja nas distorções feitas no planejamento urbano para abrir espaço para mais carros. Mais avenidas, túneis, pontes e viadutos, asfalta-se tudo para tentar resolver engarrafamentos cada vez mais constantes. Bairros são destruídos, pessoas empurradas para mais longe, as distâncias se alargam. A necessidade de deslocamentos se multiplica e, logo, cria-se mais trânsito, em um ciclo infinito de asfalto. Ampliar avenidas para combater congestionamentos é o mesmo que combater a obesidade afrouxando o cinto.
Para além da crítica, Singer apresenta uma proposta de vida mais simples e tranquila. Dá voz a uma cena cultural anticarro repleta de bicicletas e pessoas caminhando, onde cabe diversidade, criatividade e bom humor. Sua arte é uma forma de resistência ao marketing corporativo, à apologia à velocidade e aos adeptos fanáticos do Deus Carro. Seus desenhos são um instrumento para tentar abrir um pouco a cabeça dessa gente careta e quadrada, e mostrar que outros modos de vida e mundos são possíveis.
É por isso que é preciso recortar o livro e espalhar por aí. Assim que acabar de ler, separe algumas páginas e cole nas paredes, pendure no mural da sua escola, deixe do lado do café no escritório. Faça um stencil do seu quadrinho favorito e reproduza no muro da sua casa. Deixe uma página do lado do caixa na padaria, embaixo da porta dos seus vizinhos. Ou dê o livro inteiro para alguém querido. Ou para alguém odiado. Ou, se você mora em São Paulo, para o seu vereador machista favorito que coleciona fuscas e adora falar mal de bicicletas.
Ou ainda tire cópias de alguns trechos e espalhe por aí – o próprio autor autoriza a reprodução gratuita para atividades sem fins lucrativas com o propósito de combater carros e avenidas!
Mesmo considerando que é o primeiro livro do Andy Singer no Brasil, que é uma edição histórica, e todo esse blábláblá de colecionador, não deixe esse livro parado congestionando uma estante. Seus “CARtoons” são ativos e não merecem ficar estacionados.