Mailson Ramos*
“Ainda somos os mesmos e vivemos. Como os nossos pais”. A canção de Belchior, lançada em 1976, exprimia as angústias da juventude em meio à repressão da ditadura militar (1964-1985). Muitos destes jovens lutaram, muitos foram torturados e outros milhares perderam as vidas por um Brasil mais livre e democrático. Nunca é demais repetir. Nunca é demais repetir que a ditadura deixou marcas muito profundas na sociedade. E estas marcas são cada vez mais visíveis e traumáticas: diria até que elas são pústulas.
Os brasileiros deveriam abominar o período ditatorial; entretanto, parecem cada vez mais orgulhosos do “tempo em que tudo funcionava bem”. A repressão e a mão de ferro dos generais genocidas foram mascaradas sob a ideia forjada de que “o Brasil era feliz e não sabia”. Este ranço que invade a juventude apolítica de hoje nos faz duvidar se em algum momento houve plena democracia neste país. Pois estamos sempre vivendo de ciclos de reconstrução e ciclos de destruição, tanto no campo econômico quanto social.
A sociedade brasileira jamais se esquece da ditadura por um pendor de conservadorismo; e por natureza histórica, ela também se mostra racista. Ao longo de trezentos anos, o comércio de escravos vigorou no Brasil sob a tutela dos poderosos mercadores e dos grandes proprietários de terras. Por si só, a escravidão é uma mancha social que não se dissolve com negativas de que a sociedade brasileira é racista. As políticas públicas e de igualdade racial conduziam a um caminho de reparação, mas o Brasil tem um aglomerado de ricaços (não é elite) que acredita mandar no país.
Uma das definições de elite é “o que há de mais valorizado e de melhor qualidade, especialmente em um grupo social”. A elite brasileira, no entanto, é um, aglomerado de ricaços que ganham dinheiro aqui e o investem lá fora; caricatos e cheios de clichês filosóficos pensam o mundo com uma ótica conservadora; boa parte da elite brasileira conhece mais os EUA do que o Brasil. O que seria um horror para eles descobrir que alguém ainda não foi à Disneylândia.
A elite está dissipada entre setores da sociedade. A elite política, por exemplo, não se desapega do poder. O povo continua elegendo os filhos, os netos, os bisnetos dos poderosos sem denotar que a herança das capitanias hereditárias, em doações substanciosas, agora sai de uma urna eletrônica. É no sufrágio popular que chafurda uma classe política elitizada, cada vez mais interessada em manter os seus privilégios em detrimento do povo.
Porque o povo se permite anestesiar.
Hoje em doses repetitivas de reality show na TV, amanhã no último capítulo da novela; não vale se aborrecer em discussões políticas e sociais que não levarão a lugar nenhum, pois no Brasil é assim que acontece. Também não vale a pena aderir a uma greve, porque preciso trabalhar. A cultura da inércia nos faz péssimos cidadãos e nos obriga a aceitar – de roldão – tudo o que impõe o poder central, ainda que este seja, no Brasil, ilegítimo.
A mentira narrada pela mídia tradicional, este chiqueiro de barrões (com todo o respeito aos porcos reprodutores), durou exatamente quatro anos: o tempo em que uma operação policial destituiu um governo, destroçou o maior partido de esquerda da América Latina e retirou do pleito presidencial um ex-presidente que liderava as pesquisas de intenção de votos. Para dizer nas redações que a justiça foi feita. Enquanto isso perambulam pelos corredores das casas legislativas milhares de ladrões; os subterrâneos dos palácios são alcovas de conchavos para entrega de propina. E a justiça foi feita.
O Brasil tem uma classe média que imagina ser elite. Muitas destas famílias, com a destruição das políticas públicas dos últimos governos, voltaram a ser pobres. Outros ainda, conduzidos por um ódio visceral, pedem a extinção dos programas de transferência de renda. São os mesmos que passam o ano inteiro pedindo o fim do Bolsa Família e no Natal vão doar esmolas para aparecer nas praças como bons samaritanos. Esta gente não vale nada. Nem como cidadão e muito menos como ser humano.
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A fome que se alastra pelo interior do país e nas periferias das grandes cidades é o próximo monstro a retornar. Ela já dá sinais de presença sobre as populações mais carentes. Somos o reflexo mais sincero do que é uma sociedade em caos. Porque agradou a alguns que fosse assim. Pela mesquinharia e pelos ranços de boa parte da sociedade. Num futuro muito próximo não adiantará reclamar de nada. Os males profundos que causam rupturas neste país ultrapassaram democracia (simbólico) e a Constituição (concreto).
Quem poderá libertar o brasileiro da sua inércia total e fazê-lo se desprender das amarras e das narrativas da elite e da classe média?
*Mailson Ramos é escritor, profissional de Relações Públicas e autor do blog Nossa Política. Escreve semanalmente para Pragmatismo Político.
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