O bem-estar e o mal-estar das manifestações
João Elter Borges Miranda*, Pragmatismo Político
Ao longo dos anos de 1980, considerada a “década perdida” para o desenvolvimento, a situação dos países latino-americanos afigurava-se como muito difícil e sombria. Como parte da renegociação da dívida externa desses países, foram “orientados” a implementarem uma série de políticas e reformas neoliberais – receituário que ficou conhecido como “Consenso de Washington” –, que promoveu a abertura, desregulação e privatização de suas economias nacionais, ampliou o decréscimo dos resultados sociais e econômicos, instaurou a austeridade fiscal, o livre-comércio e o corte de despesas governamentais a fim de reforçar o papel do setor privado. Essas políticas e reformas neoliberais e as constantes crises diminuíram drasticamente a participação dos salários na renda nacional, restringiram os investimentos sociais, potencializaram o desmonte do Estado, promoveram a concentração de capital e renda entre poucos grupos e reduziram a qualidade de vida e segurança da população.
Diante dessa situação, os povos latino-americanos exigiam mudanças. No Brasil, todos esses ataques aos direitos humanos eram intensificados por conta de nos anos 80 vivermos um processo de redemocratização que ainda engatinhava em meio aos destroços deixados pela ditadura civil-militar. Diante disso, em nosso país essa década foi marcada pelo fortalecimento da sociedade civil, que, antes afastada do debate político, agora procurava agir coletivamente para politizar as questões que permeiam a vida social. Assim, nos anos 80 as ruas do país foram ocupadas por grandes manifestações, greves, entre outros atos. Foi um movimento que reinventou o espaço político com o intuito de transformação do sistema político-institucional e, entre outras conquistas, resultou no generoso apoio à diversidade ideológica, à abertura do caminho para a multiplicação de partidos e de modelos de organização política e na elaboração da Constituição de 1988.
A expectativa era de que no futuro toda essa diversidade se confluísse em sólidas e efetivas coalizões de governo. Os anos foram passando e o subterfúgio que surgiu em resposta a essa progressiva fragmentação do sistema partidário foi o chamado “presidencialismo de coalizão”. A expressão foi cunhada pelo cientista político Sérgio Abranches em 1988, antes mesmo da promulgação da Constituição. O cientista foi muito perspicaz em, naquele momento, perceber que estava se formando grandes e consistentes coalizões governativas político-partidárias e, principalmente, partidário-parlamentares, e que isso pelos próximos anos caracterizaria o sistema político-institucional brasileiro.
Acredito que esse modus operandi baseado em alianças e conchavos entre as elites que formam as classes política e econômica há muito tempo permeia nosso sistema político. O que aconteceu pós-1988 foi uma reconfiguração do mesmo para se adaptar aos moldes da democracia, com a participação das velhas raposas da Ditadura – principalmente o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), legenda que se tornou o PMDB.
Abranches defendia na época a tese de que por meio desse agrupamento de partidos, a democracia brasileira estaria passando por um processo de consolidação. Esperava-se no final dos anos 80 que as coalizões gestassem no seio do sistema democrático uma tensão saudável e produtiva entre Executivo e Legislativo, o que pensavam que propiciaria uma experiência coletiva formadora de fusões, aquisições e negociações político-partidárias. Acreditava-se ainda que tal processo resultaria na comunhão de forças a partir de um norte definido coletivamente.
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Não seria necessária uma lupa para constatar que, na realidade, o que aconteceu foi uma limitação de nossa jovem democracia através da formação de coalizões que foram se fundindo. Em meados da década de 90, esse sistema tinha encontrado uma forma de se blindar contra as ruas, o peemedebismo. O sistema acunhado pelo filósofo Marcos Nobre como peemedebismo é formado por um grande agregado sem perfil definido composto por um conjunto de partidos fisiológicos, para os quais a localização no espectro ideológico importa menos do que as alianças de conveniência e a corrupção pura e simples. Esses partidos, denominados genericamente de peemedebistas, estão todos dispostos a aderir a qualquer governo, desde que recebam em troca as suas regalias. Assim, todos os presidentes, desde Collor, tiveram que associar de alguma maneira com esse mesmo sistema.
Esse sistema opera por meio de grandes blocos de maneira a permitir o fim de entrechoques e conflitos abertos, apesar da histórica tensão existente entre Executivo e Legislativo ter persistido. Não significa que não houve conflitos. Significa que os conflitos foram evitados o máximo possível. Assim, ao invés de abrir o caminho para que os entrechoques aconteçam e estabelecer um debate democrático que permita chegar coletivamente a um projeto nacional, tudo foi jogado para dentro da mala do grande corpo. Consequentemente, no lugar de um processo democrático, o espaço político é ocupado por inúmeras articulações que ensejam atender ao jogo de interesses patrimonialistas das elites políticas e econômicas. No fim das contas, praticamente se trata de um sistema criado para permitir às instituições somente movimentos hesitantes e que ampliou o divórcio entre o sistema político e a população. Nada além de mudanças lentas e graduais foram permitidas.
Assim, o sistema político institucional brasileiro se blindou durante 20 anos contra as ruas. Esse processo, vale ressaltar, não é algo específico do Brasil, pois também ocorreu em vários outros países. Ou seja, não foi somente aqui que os partidos e os movimentos sociais tradicionais se tornaram instituições paraestatais, levando à falência dessas mesmas organizações e a sua separação da sociedade civil.
Fica evidente que o abismo que se formou entre a sociedade e o sistema político é um problema de amplitude global após a crise de 2008. Uma onda de manifestações contra o sistema financeiro mundial se espalhou por dezenas de países, principalmente a partir de 2011. Na Europa o movimento foi chamado de “Indignados” e, nos Estados Unidos, de “Ocupe Wall Street”. Os ativistas culpavam os governos e as instituições financeiras pelo crescimento das taxas de desemprego e da desigualdade em países atingidos pela crise de 2008.
Para impedir um colapso no mercado, os bancos tiveram que ser “salvos” com recursos públicos, aumentando a dívida dos Estados. Em consequência, foi preciso reduzir e cortar benefícios sociais e elevar os impostos para equilibrar as contas. O Estado tornou-se, assim, um socializador das dívidas do Grande Capital Internacional. Diante disso, a população norte-americana e europeia, indignada, voltou-se contra o sistema político institucional.
No mesmo ano em que eclodiram essas manifestações nos países ricos, houve uma série de protestos e revoluções populares contra governos do mundo árabe. A raiz dos protestos também é o agravamento da situação dos países, provocado pela crise econômica e pela falta de democracia. Assim como ocorreu nos Estados Unidos e na Europa, a onda de protestos que varreu o Oriente Médio e o norte da África e que ficou conhecido como Primavera Árabe, tem como marca a redução do envolvimento dos ativistas em formas tradicionais de participação e a ampliação do engajamento em modalidades de ação relacionadas ao protesto político.
Os protestos de junho de 2013 no Brasil é mais um capítulo dessa história de amplitude global. Aqueles protestos, iniciados pelo Movimento Passe Livre e fortemente reprimidos pela polícia militar de São Paulo, desencadearam uma onda de manifestações levando para a rua milhares de pessoas de forma espontânea. Ali já se percebia que a coordenação e orientação partidária não era seguida pela sociedade ativa, a qual extravasava o seu descontentamento expressando a crise de representação. Na época, manifestantes com bandeiras de partidos, ou de movimentos sociais tradicionais, como a CUT ou MST, foram muitas vezes expulsos dos atos.
Desde 2013 vemos em nosso país a população intensamente ativa. Os bem-estar das manifestações é que as exigências de reconstrução política, de eliminação da corrupção, além de um descontentamento muito difundido com relação aos mecanismos políticos, percorrem de alto à baixo a população brasileira e são manifestadas a todo o momento, principalmente no mundo sem lei chamado “redes sociais”. Nas universidades, nas favelas, nas aldeias indígenas, nos quilombos, nas periferias, nos coletivos e ocupações urbanas, nos empreendedores criativos, enfim, em vários lugares existe um turbilhão de energia transformadora.
Portanto, desde a crise de 2008 estamos assistindo por todo o globo a uma série de manifestações de pessoas com políticas opostas e inconciliáveis, mas permeia todos eles um mal-estar: a revolta contra a maneira de funcionar o sistema político institucional. Do país das calças bege aos Emirados Árabes Unidos, da terra do Tio Sam à terra do sol nascente, um abismo se formou entre a população e o sistema político. Trata-se, portanto, de um fenômeno geral de esgotamento da legitimidade do sistema político institucional. É óbvio que há ainda muitas pessoas que, organizadas em partidos, sindicatos, movimentos sociais tradicionais, procuram transformar as instituições e construir um Estado que não esteja à revelia das necessidades da população. Entretanto, grande parte da sociedade civil politicamente ativa está de costas para a política institucional, pois as demandas que permearam as manifestações permanecem em aberto e sem comunicação institucional. Por isso, as pessoas têm se organizando de forma espontânea em prol de causas que lhe interessam mais diretamente, fazendo política no dia-a-dia, não raro de forma independente e sem dispender energia para a transformação das instituições. Enquanto isso, o sistema político blinda-se cada vez mais contra as ruas.
No Brasil essa crise de representação é potencializada pela Lava-Jato, pois, à medida que a operação desvendou os caminhos seguidos por partidos e grupos políticos para financiar suas atividades ilícitas, mais expôs o modo predominante de prática política no sistema institucional do país, intensificando ainda mais a crise de representação.
De imediato isso resultou na maior blindagem do sistema político. Em pânico com as denúncias e prisões, a pantanosa cultura peemedebista, que domina a política nacional, está fechando ainda mais o cerco, ampliando o divórcio. Além disso, a exposição do sistema político gestada pelas investigações fez com que a população se afastasse ainda mais da política institucional. Ora, diante da longa série de abusos por parte dos políticos como a corrupção, privilégios, verbas indenizatórias e auxílios de todo tipo, além do claro desaquecimento da economia, da inflação e da precariedade dos serviços públicos, era óbvio que haveria no país um profundo descontentamento levando a um colapso a legitimidade dos governantes, dos partidos e das instituições.
Em certo sentido, fico aliviado em ver que vivemos uma crise de representação. Seria preocupante se as pessoas estivessem satisfeitas com um sistema político-institucional que respira para manter intacto o pacto conservador, ao invés de formular projetos que possam de fato solucionar os problemas dos municípios, dos Estados e da União; e seria ainda mais preocupante caso as pessoas se sentissem representadas por um Congresso que mais parece um sindicato de ladrões e por um ato falho ambulante que ocupa a cadeira de presidente da república – e que precisaria melhorar muito para se tornar uma versão barata do Nosferatu.
O mal-estar das manifestações é que, ao invés da sociedade ativa destinar a sua energia para transformar as instituições, a maior parte está, como já foi dito, de costas para o sistema político institucional como um todo.
Diferentemente da década de 1980, em que os manifestantes ocuparam as ruas para reivindicar uma democracia mais plena, hoje o fio condutor que percorre grande parte do ímpeto transformador é o esvaziamento e enfraquecimento dos partidos políticos, dos sindicatos, das organizações da sociedade civil, em nome de modalidades de protestos marcadas pelo individualismo, pelo espontaneísmo e pela demonização da política institucional.
Diante dessa conjuntura, precisamos mostrar à população que ela tem o direito e o poder de tomar o controle de seu próprio futuro através da política institucional – e que toda a revolta, quando organizada, poderá ser revolucionária.
Podemos sim furar o pacto conservador. Para tanto, precisamos encontrar brechas no feudo que se tornou o sistema político institucional; precisamos encontrar as brechas nessa blindagem e ocupa-las de forma selvagem para, assim, erguermos uma contra-hegemonia contrária aos interesses do capital.
Portanto, não podemos arrefecer e virar as costas para o sistema político. Ao mesmo tempo, não podemos cair no discurso das formas tradicionais de organização que simplesmente afirmam que não há alternativa à institucionalidade e que todo o impulso vital da base da sociedade deve ser canalizado para as eleições de 2018. Não será Lula, Ciro Gomes, Guilherme Boulos ou qualquer outro indivíduo que represente mais ou menos os interesses da classe, que reverterá a agenda golpista. O sistema político institucional não mudará sozinho. É você, isso que se convencionou chamar de “povo”, quem irá promover as mudanças necessárias, de baixo para cima, para que o país não continue o mesmo.
A energia destituinte pode ser revolucionária se cuidarmos para organizá-la, tirar do estado bruto, lhe dar plasticidade e usá-la para ocupar de forma radical as brechas no sistema político institucional, fazendo com que transformações estruturais possam acontecer e dando voz às demandas de baixo que são abafadas pelo conservadorismo. E é aqui que começa um novo problema: o que, afinal, queremos? Quais são as nossas propostas, hipóteses e soluções? Precisamos encarar a dura assunção de que simplesmente não sabemos o que fazer.
Pode-se dizer que estamos num estado de interregno. No “interregno” não somos uma coisa nem outra e as formas como estamos acostumados a lidar com os desafios da realidade não funcionam mais. É o momento em que não atendem mais plenamente as carências de orientação existencial do nosso tempo todas as formas aprendidas de sobrevivência no mundo, como o sistema político-institucional, as formas de organização da própria vida, as relações com as outras pessoas, o sistema partidário, os coletivos e movimentos sociais, o modelo de representatividade. E as novas formas, que substituiriam as antigas, ainda estão engatinhando. Diante dessa falta de um horizonte definido, não temos ainda uma visão de longo prazo e as nossas ações consistem quase que exclusivamente em reagir às crises mais recentes.
Por mais doloroso que são esses momentos de crise, eles ao menos possuem uma função positiva: animar a imaginação. Isto é, essas experiências de impasse têm o poder de instigar a nossa capacidade de projeção daquilo que hoje é considerado impossível, possibilitando que seja construída uma resposta à situação de crise. Mas não podemos ser imediatistas e crer que as respostas surgirão tão rapidamente quanto se dão os acontecimentos. Temos todas as razões para ter pressa. Afinal, hoje as pessoas não morrem mais do que antes, passam fome mais do que antes, são expulsas de suas casas mais do que antes, perdem seus direitos mais do que antes. Nas periferias urbanas e rurais, aqueles que matam estavam matando mais, não raro com a farda do Estado. Diante dessa progressiva deterioração da vida, temos todas as razões para ter pressa. Mas, as respostas são como a Coruja de Minerva: elas veem sempre depois, processual e paulatinamente. Ou seja, é ao longo do processo sócio-histórico que construiremos um quadro de ideias que seja capaz de potencializar as nossas ações.
Para ilustrar o quero dizer podemos recordar a experiência do ideólogo Karl Marx. Foi ao longo de décadas participando de inúmeras lutas operárias, como o ludismo, as greves, que permitiu alguém como ele ser capaz de sistematizar a constelação de ideias que percorria a sua época e fornecer um quadro capaz de potencializar as possibilidades internas do acontecimento que a sociedade da qual ele fez parte vivenciou. Ou seja, ninguém aparece do nada e entrega um modelo pronto e definitivo. É fazendo o balanço tático e estratégico dos atos, é realizando a mudança de modelos de ação e inventando novas formas de organização que, processualmente, as ideias emergem.
Ao longo desse processo é, então, comum nos percebermos em crise, ou, como diria Bauman, em estado de interregno. O importante é, diante dessa situação, não entrarmos em paralisia. Acima de tudo, é fundamental ter claro que essas experiências de impasse podem instigar a imaginação num sentido que propicie à nós vislumbrar e produzir mundos novos e infinitas possibilidades de superação das aporias de nossa realidade atual. Por isso, precisamos criar, inventar novas formas de organização, articulação e participação.
Esse processo é sem sombra de dúvidas muito mais importante (e difícil) do que simplesmente manifestarmos apoio a um ou outro lado. E não se trata simplesmente de retornar às velhas estéticas e formas de organização, que já estrangulou suas possibilidades, repete-se no automatismo e vive a ressaca dos seus excessos. Do mesmo modo, deve ser visto com ressalvas o discurso do horizontalismo absoluto e a recusa de qualquer conexão institucional. De todo modo, a falsa crença de ser o detentor da “verdade absoluta” não pode inviabilizar a errância experimental, assim como os possíveis erros não podem ser a contraprova da importância de experimentar e justificativa para a volta aos velhos princípios.
Existem muitas potencialidades abertas a partir de uma rede mais distribuída e com as possibilidades mais plásticas de organização orientadas por segmentos heterogêneos numa composição em pontilhado. Só assim, com a sociedade participando do processo político, mesclando resistência e experimentalismo, pautando-se pelo diálogo camarada, que vamos conseguir transformar e melhorar o nosso Amanhã.
*João Elter Borges Miranda é professor de história formado pela Universidade Estadual de Ponta Grossa e milita na Frente Povo Sem Medo e Intersindical.