Oposição venezuelana, que possui aliança com os Estados Unidos, tenta barrar eleições do país que acontecem em abril. Nicolás Maduro lidera as pesquisas
Paulo Moreira Leite, Brasil 247
Duvido que qualquer observador honesto da política venezuelana tenha ficado surpreso com o anúncio de que a oposição não irá apresentar candidato para as eleições presidenciais de 22 de abril.
Essa decisão é apenas a sequência lógica do abandono das negociações com o governo Maduro, em 7 de fevereiro, 24 horas antes da data marcada para a assinatura do texto de um acordo já negociado e acertado em suas linhas gerais. Condenada por José Luiz Zapatero, presidente da Espanha entre 2004-2011, um dos fiadores do acordo entre governo e oposição, a ruptura apenas dramatizou uma decisão previsível.
Já naquele momento era obrigatório reconhecer que as principais correntes de oposição encerravam o que havia sido um espetáculo de maus atores, sem qualquer compromisso com a preservação da democracia no país.
Apenas se colocavam em sintonia com o secretário de Estado Rex Tillerson para retornar às atividades conspiratórias de sempre, onde, há uma década e meia, ensaiam coreografias nada originais para derrubar o chavismo pela força – não pelo voto, como seria coerente do ponto de vista da democracia.
Em seu pronunciamento na Universidade do Texas, Tillerson não decepcionou. Fez referências elogiosas a Lyndon Johnson, o presidente dos EUA que liderou o ciclo de golpes militares na América Latina nos anos 60, e transformou a guerra do Vietnã num conflito de envergadura. Para completar, referiu-se num tom escandalosamente positivo a um período trágico do Continente, quando imperaram ditaduras no Brasil, no Chile, Argentina, Uruguai e Paraguai, ao dizer que “na história da Venezuela e de países da América do Sul são frequentes as vezes em que os militares são o agente da mudança quando as coisas estão muito ruins e a liderança não pode mais servir ao povo“.
Convém demorar-se um pouco nesta cena. Com o desembaraço típico de quem se coloca em pleno domínio da situação, manipulando o destino de povos e países de seu escritório em Washington, o secretário de Estado ainda fez a previsão de que, em caso de dificuldade, Maduro poderia ganhar uma “casa na praia de seus amigos de Cuba“. Não poderia ser mais explícito sobre seus desejos – ou planos, quem sabe.
No dia seguinte, com a costumeira desinibição que integrantes do governo Trump exibem através do twitter, Tillerson deu a linha de intervenção na crise venezuelana. Deixou claro que não se trata de estimular uma intervenção ideológica como nos anos da Guerra Fria de Lyndon Johnson. Também não tem a ver com o Eixo do Mal, que orientou a trágica política externa de George W. Bush no início da década passada e levou à invasão do Iraque – na qual a Venezuela já era uma das pontas num arco de inimigos que incluía o Irã, o Iraque e a Coréia do Norte.
A bandeira, agora, é o humanitarismo. Ele escreveu: “Os venezuelanos morrem de fome. Os saques são comuns e os doentes não recebem a atenção médica que necessitam. O povo venezuelano sofre por causa de um regime corrupto que rouba o seu próprio povo. O regime de Maduro é o verdadeiro culpado e deve prestar contas“.
Vamos combinar: este novo conto da Carochinha é sentimental como sempre mas chama atenção pelo enredo e pela hipocrisia. O mundo assiste em silêncio obsequioso aos lances de uma guerra econômica que é a causa principal da fome e da doença no país, que lembra a pressão externa que alimentou o golpe que derrubou Salvador Allende no Chile. Essa é a força que produz a carência de alimentos e medicamentos pela simples manipulação do câmbio numa economia com alta dependência externa. Também é reforçada pelo boicote organizado pelo sistema financeiro internacional, que recusa pagamentos em dia para forjar um ambiente de calote e desconfiança.
Contrariando os cânticos de guerra anti-bolivarianos, Caracas pratica uma política econômica muito mais conciliadora do que sugere a retórica oficial dos adversários. Evita medidas que possam representar ataques diretos aos monopólios, nacionais e estrangeiros, que têm investimentos no país e cobram um preço cada vez mais alto para manter algum nível de atividade. A questão política real é perguntar até onde o aprofundamento da crise poderá ser suportado sem medidas mais duras, como o controle sobre o câmbio, a investigação em empresas que faturam fortunas diárias com o dólar subvencionado.
Nesse quadro, de arrogância, desrespeito e injustiça, o Departamento de Estado dos EUA tenta espalhar uma lenda edificante – de que uma intervenção externa naquele país é motivada por causas nobres. É este o fundo político que alimenta reportagens condoídas sobre refugiados venezuelanos, que se tornaram prato de resistência nos telejornais da Globo, organizados pela doutrina Tillerson segundo a qual “o povo venezuelano sofre por causa de um regime corrupto que rouba seu próprio povo“.
O que se pretende é evitar toda reação natural de solidariedade contra uma operação de guerra contra o governo Maduro. No contexto atual a questão “humanitária” tanto envolve cidadãos que enfrentam sofrimentos reais, que necessitam de auxílio e assistência, de verdade, como indivíduos que lembram esquisitices típicas das desordens do mundo atua. Estamos diante de personagens que integram operações subterrâneas e suspeitas, como o célebre “Brasileiro bonzinho” que jamais contou uma historia coerente para explicar o trabalho de uma ONG misteriosa que tentava formar no interior da Venezuela – enquanto participava daqueles protestos contra Maduro que produziam feridos e até mortos. Expulso da Venezuela, foi embarcado para Miami e não mandou novas notícias. Curioso, não?
É preciso ponderar alguns dados que garantem alguma racionalidade ao debate. Acompanhando uma onda de empobrecimento e opressão na América Latina, que produzem o empobrecimento de paraguaios, brasileiros e argentinos, para ficar em três exemplos, entidades de refugiados informam que entre os países latino-americanos, El Salvador, Colômbia, México, Honduras e Guatemala estão a frente da Venezuela no deslocamento de suas populações — sem despertar, é evidente, o mesmo alarme piedoso em relação ao desempenho de seus governantes. Conforme dados da FAO, a desnutrição tem se agravado nos últimos anos, por motivos fáceis de entender pelo quadro de guerra econômica. Mas os números mostram que está longe de ter chegado ao quadro terrível dos três anos anteriores a chegada de Hugo Chávez ao governo.
Esta é a memória que ajuda a entender a popularidade do chavismo, muito superior àquilo que se poderia imaginar pela audiência dos telejornais de países estrangeiros. Num país onde os meios de comunicação passaram por um processo de democratização relativa mas real, o debate político é plural e respeita as escolhas variadas da população.
Ninguém tem o direito de surpreender-se, portanto, com o anuncio de ontem – ainda que seja uma decisão lamentável do ponto de vista dos interesses do povo venezuelano.
Como muitos observadores da situação política na Venezuela, eu também gostaria que o pleito de 22 de abril contasse com a participação de todas as forças políticas do país.
Estou convencido de que, lá como em tantos outros lugares do Continente, inclusive no Brasil, o voto popular é a melhor oportunidade para a reconstrução de um acordo nacional para encerrar um período histórico marcados por sucessivas tentativas de golpe de Estado e programas de sabotagem que apenas sacrificam a população do país, em particular os mais pobres.
Sabemos que, na Venezuela, os ensaios de ruptura constitucional e tentativas de golpe são um dado permanente da paisagem e um elemento obrigatório da análise política.
Isso acontece desde 2002, aquele momento em que os venezuelanos testemunharam um episódio aterrador. Ocupando a presidência da República com toda legitimidade que o voto popular pode conferir a um governante, Hugo Chávez foi sequestrado no exercício de suas funções e aprisionado em local secreto por 72 horas, enquanto o empresariado e o governo norte-americano festejava em Caracas. A folia terminou quando um levante popular garantiu o retorno e a permanência de Chávez na presidência até a morte precoce, 2013, após três eleições cuja seriedade foi avalizada por observadores insuspeitos de simpatias pelo chavismo, a começar por Jimmy Carter.
Estou convencido de que o projeto de realizar eleições presidenciais em 2018 não é apenas uma opção entre outras escolhas possíveis de Nicolas Maduro. Era e é uma necessidade imperiosa, o último recurso de um governo que não tem outro instrumento para renovar as forças e garantir seu oxigênio além do voto popular. Não conta com o apoio do empresariado local nem da Casa Branca e, desde a queda de Dilma Rousseff, também perdeu o principal aliado de peso geopolítico na região, substituída por um adversário muito a vontade na submissão a Washington.
O chavismo não fez 16 eleições nos 18 anos seguintes a tomada do poder porque seus dirigentes são cidadãos sem mais o que fazer além de pedir voto. Mas porque não tem — e não quiseram ter, vamos ter a honestidade de admitir — outro recurso para defender o governo fora do apoio explícito da maioria dos venezuelanos, num sistema eleitoral cuja segurança nenhum analista sério pode colocar em dúvida.
Ao formalizar uma decisão pré-concebida, os adversários do chavismo apenas confirmaram uma condição típica dos adversários da democracia, em toda parte. Tem prestígio, tem recursos, tem mídia amiga e um gigantesco apoio externo.
Só não tem votos. Se tivesse, teria toda paciência para esperar pela eleição de 22 de abril, não é mesmo?
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