Nas favelas, verde-oliva é cor de medo. Em favela, intervenção militar é termo que evoca aumento da sensação de segurança – no asfalto. Nas comunidades populares, a expressão espalha o pavor de (mais) violações a direitos
Flavia Oliveira, Projeto Colabora
Em favela, intervenção militar é termo que evoca aumento da sensação de segurança – no asfalto. Nas comunidades populares, a expressão espalha o medo de (mais) violações a direitos. Não é de hoje que o Rio de Janeiro, em resposta à incompetência de autoridades locais para dar conta das próprias atribuições, recorre às Forças Armadas.
Até aqui, nenhuma estratégia ou operação se mostrou eficiente nem duradoura. Dessa vez, de supetão, dois dias depois do fim de um Carnaval desordenado, o presidente da República, Michel Temer, reuniu uma junta de ministros e anunciou a nomeação de um general do Exército para comandar as polícias civil e militar, o Corpo de Bombeiros e a Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Rio. O governador Luiz Fernando Pezão, eleito diretamente e a dez meses de esvaziar as gavetas do Guanabara, não terá mais ingerência na área, um dos enclaves da crise que também esvaziou cofres públicos e nocauteou a saúde.
Eliana Sousa Silva, diretora da ONG Redes da Maré, é autora do único livro sobre a experiência de ocupação de favelas pelas Forças Armadas no país. “A ocupação da Maré pelo Exército Brasileiro” é resultado de estudo sobre os 14 meses, entre 2014 e 2015, da presença de soldados no bairro, que reúne 15 comunidades cariocas onde vivem cerca de 140 mil pessoas. “A ocupação militar na Maré pode ser considerada como um equívoco e um fracasso”, constata o capítulo final da publicação. A operação custou quase R$ 600 milhões aos cofres públicos e não melhorou as condições de segurança dos moradores. “Não houve estratégia clara. Em vez de redução, o que se viu após a saída das tropas foi aumento do número de armas pesadas pelos grupos civis, controle maior do direito de ir e vir, mais crianças e adolescentes empregados pelo tráfico”, descreve a pesquisadora.
A notícia súbita da intervenção preocupa o movimento social popular pelas violações a direitos que pode trazer. O Movimento Black Money, que trata de empreendedorismo para a população negra, postou na tarde de sexta-feira na página no Facebook uma lista com orientações e um vídeo mostrando exatamente como jovens negros devem se comportar diante de abordagens das forças de intervenção. Entre elas, andar sempre com documentos e jamais correr. Rapazes de 15 a 29 anos encabeçam as estatísticas de homicídios no país. O Movimentos, iniciativa que debate a política de guerra às drogas com jovens de favelas e periferias do Brasil, divulgou nota afirmando que operações militares já realizadas no Complexo do Alemão, na Rocinha, na Maré, entre outras comunidades cariocas, nunca levaram paz nem segurança aos moradores: “Ao contrário, trouxeram invasões de casas, violência, tortura, roubos e estupros”.
Na visão da Anistia Internacional, a decisão do governo de intervenção federal na segurança pública no estado do Rio de Janeiro reforça erros já cometidos e coloca em risco principalmente a vida dos moradores de favelas e periferias, especialmente jovens negros.
Preocupa, em particular, o teor do decreto presidencial que torna sem efeito as normas estaduais que conflitarem com medidas tomadas pelo interventor. Uma ação civil pública em tramitação para normatizar as operações policiais na Maré ficaria sem efeito. A intenção era proibir mandados coletivos de busca e apreensão em residências, incursões noturnas e em horários de entrada e saída das escolas, e impor a presença de ambulâncias nos acessos às comunidades para socorrer feridos. O Observatório de Favelas está convocando a sociedade civil para uma reunião no Circo Crescer e Viver, na Cidade Nova, na próxima terça, 20 de fevereiro, sobre a intervenção federal. Em nota, diz que a decisão do governo Temer “amplia a violência, incita a guerra e penaliza os moradores das favelas e periferias”.
Noves fora o esvaziamento agora formal do governador, que confessou publicamente a incapacidade de deter os confrontos entre quadrilhas do tráfico e milícias, a desconfiança quanto à súbita decisão federal é grande, em razão da falta de planejamento (histórica) e de transparência na comunicação com a sociedade. O carnaval foi marcado por episódios violentos, mas as estatísticas preliminares do Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ) são pouco superiores aos números registrados no feriado de 2017 e muito inferiores aos do biênio 2015-16. Foram registradas 5.865 ocorrências criminosas, contra 5.773 no ano passado. Em 2015, os dias de folia resultaram em 9.062 registros; em 2016, 9.016. De um ano para o outro, quase dobraram os casos de lesão corporal dolosa (834 para 1.297). Aumentaram os roubos de veículos e a turistas. Mas homicídios e estupros caíram, bem como roubos e furtos de rua, em coletivos e de telefone celular.
A crise na segurança pública vem se agravando há anos. A disputa por territórios entre facções do tráfico de drogas e milícias se intensificou a partir do colapso da política das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), no último ano (2013) do segundo mandato do então governador Sérgio Cabral, preso por corrupção desde fins de 2016. No ano passado, atingiu contornos dramáticos, com salto no número de homicídios. Em 2017, 6.731 pessoas morreram violentamente no Estado do Rio; a polícia matou 1.124; 134 policiais militares foram assassinados, em serviço ou fora. A guerra entre facções do tráfico na Rocinha eclodiu há cinco meses. Houve tempo de sobra para autoridades federais, estaduais e até prefeitos da capital e de municípios da Região Metropolitana se articularem num plano de longo prazo, ancorado em inteligência, para coibir a entrada de armas e drogas, desbaratar quadrilhas de roubo de cargas, combater a corrupção policial e, sobretudo, preservar vidas.
A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, assumiu a função cinco meses atrás, anunciando interesse de aprofundar a participação do Ministério Público Federal nas investigações relacionadas a tráfico de drogas, contrabando de armas, corrupção e lavagem de dinheiro, crimes federais. Ouviu do ministro Raul Jungmann, da Defesa, a proposta de criação de uma força-tarefa nos moldes da Lava Jato para combater o crime organizado no Rio. Nada saiu do papel.
Agora, diante do iminente fiasco na votação da Reforma da Previdência, o governo federal anuncia a medida extrema de intervenção no Rio. O general Brito Netto, na primeira entrevista após a assinatura do decreto, foi lacônico. Disse que vai entrar em “fase de planejamento, fazer um estudo, fortalecer a segurança no estado”. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, acenou com aprovação de leis “mais modernas e duras” para combater e punir o crime organizado: “O mais importante para o sucesso dessa decisão é que o planejamento seja bem pensado, bem articulado e a execução das ações tenham efetividade. Nas nossas circunstâncias, este talvez seja o último caminho para recuperar o estado para a nossa população”. Há mais de uma década a serviço do governo do estado, o secretário de Segurança do Rio, Roberto Sá, agora exonerado, não participou das discussões.
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