O judiciário entre a imoralidade e o privilégio
A luta contra a corrupção, para alguns membros do judiciário, sempre foi a luta por privilégios. O messianismo de outrora deu lugar a uma desmedida sede por regalias. Juízes falam de direitos especiais e prerrogativas.
Mailson Ramos*
A palavra privilégio se origina do latim privilegium, que significa “lei aplicada a apenas uma pessoa ou a um pequeno grupo”, da junção de privius (individual, pessoal), mais lex, (lei). O Brasil é o retrato mais caricato de uma burguesia retrógrada que constrói mecanismos sociais para manter os seus privilégios à custa das classes menos favorecidas. O último destes mecanismos empregado pela burguesia brasileira foi a narrativa da “luta contra a corrupção”, com a consequente criação de ícones no judiciário, com representações de heroísmo e messianismo.
O mote de que a “lei é para todos” contagiou o país numa desbragada e falsa sensação de Justiça. Para isso, a mídia e o judiciário, em inédita simbiose, criaram uma narrativa espetacularizada e romântica da Operação Lava Jato. Erigiram ícones incontestáveis, juízes absolutos, sentenças irrepreensíveis. Devassaram estatais, destruíram a imagem da Petrobras – que era a maior vítima da corrupção – e estabeleceram uma operação policial eterna, que nunca vai acabar.
Incontestáveis até então em seus postos, estes heróis forjados pela opinião pública – com o providencial auxílio da mídia nativa – passaram a estabelecer privilégios de classe e casta, travestidos de diretrizes políticas e administrativas no combate à corrupção. Não era um fortalecimento às instituições públicas, mas a transformação de membros do judiciário em deuses intocáveis, com privilégios e poderes nunca antes vistos.
A luta contra a corrupção, para alguns membros do judiciário, sempre foi a luta por privilégios. O messianismo de outrora deu lugar a uma desmedida sede por regalias. Juízes falam de direitos especiais e prerrogativas, auxílios-moradia e altos salários enquanto a população brasileira amarga as medidas austeras de um governo genocida. Pessoas morrem de fome nas ruas, crianças voltam a pedir esmola, chefes de família continuam desempregados. E os juízes, aqueles deuses moldados na grande mídia, querem o seu quinhão.
Para se ter uma ideia dos privilégios obtidos pelo judiciário brasileiro, 26 ministros de tribunais superiores recebem auxílios-moradia mesmo sendo proprietários de imóveis em Brasília. Recentemente, o incensado juiz da 7ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, Marcelo Bretas, foi à Justiça para receber dois auxílios-moradia (ele é casado com uma juíza e, de acordo com resolução do CNJ, neste caso, não poderia receber o benefício). Milhares de casos como este ocupam as mesas dos tribunais pelo Brasil afora.
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A imoralidade destes juízes e magistrados está na certeza de que jamais serão punidos. Sobre o caso específico dos auxílios-moradia recebidos pelo juiz Marcelo Bretas, Wadih Damous, deputado federal e ex-presidente da OAB-RJ, questionou no Twitter: “Dr. Bretas, se o senhor descobre um casal de pobres que mora na mesma casa e ambos recebem o Bolsa Família, o senhor os condenaria?”
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Os privilégios de uma minoria são o combustível para a desigualdade social. Magistrados que fizeram parte desta narrativa burlesca que colocou o Brasil de volta ao mapa da fome e destruiu a democracia não são dignos de nenhum privilégio, nem mesmo aquele proclamado pelas homenagens. As premiações concedidas a eles pela mídia não podem vincar a história. Eles passarão como juízes semideuses que, pelo punitivismo e justiçamento, escondiam a mais pura imoralidade.
A maioria dos políticos brasileiros rasteja na lama da corrupção – alguns deles protegidos por um judiciário partidário e que não se vexa ao tutelar meia dúzia de ladrões. O Brasil que não suportava mais a cleptocracia acostumou-se com reuniões fora da agenda entre ministro da Suprema Corte e presidente denunciado; os privilegiados das varandas gourmets deixaram de bater panelas quando o senador, que os conclamou às ruas contra a corrupção, aparecia em gravações como notório corrupto.
A maior desgraça do Brasil é a desigualdade social; é o abismo entre uma criança rica que usufrui das melhores condições de vida e uma criança pobre que morre de fome esmolando numa sinaleira. A corrupção é também um mal terrível, está entranhada na sociedade, mas pode ser evitada com educação e um senso de moralidade verdadeiro para as novas gerações. Por razões óbvias a “luta contra a corrupção”, encampada desde 2014 por membros do judiciário, não vai chegar a lugar nenhum senão na amplitude da ruptura democrática que aí está.
A sanha dos juízes e procuradores midiáticos para “salvar o Brasil da corrupção” não passava de um instinto corporativo por sobrevivência e manutenção de privilégio. Entretanto, para matar a sua sede de poder, precisaram atravessar um túnel obscuro chamado imoralidade.
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*Mailson Ramos é escritor, profissional de Relações Públicas e autor do blog Nossa Política. Escreve semanalmente para Pragmatismo Político.