A Literatura Russa no Brasil
Das álgidas estepes ao tropicalismo brasileiro: uma amálgama de prazer, cultura e conhecimento.
Marconi Severo*, Pragmatismo Político
“E, a propósito, senhores: falo agora apenas de literatura e, para ser mais preciso, de belas-letras”. (Dostoiévski, Fiódor M. In: Notas de inverno sobre impressões de verão).
Sem sombra de dúvida, a literatura é uma das mais excelsas áreas do conhecimento humano. Ela representa, sobretudo, o amor às letras. E é justamente por esta razão que a mesma é capaz de abordar com indescritível maestria uma gama exponencial do conhecimento construído ao longo de séculos, ou melhor, de milênios. Na verdade, o que hoje conhecemos por global não é bem uma novidade, pois sempre existiu; e isto se deve especialmente às contribuições literárias. Ao ler um clássico, mais do que qualquer outra obra, há não apenas uma elevação anímica do leitor, mas também um aprendizado inigualável, profundo e impactante, o que contribui sobremaneira para a compreensão das mais diversas áreas do saber.
Não é por acaso que podemos encontrar no majestoso Edgar A. Poe, em seu ácido conto Nunca aposte a cabeça com o diabo, o seguinte axioma: “Em suma, ficou provado que nenhum homem pode sentar para escrever sem um propósito mais profundo”, e que propósito! Aliás, tal preocupação é evidente em todos os consagrados imortais, cuja fonte de inspiração advém da sociedade, política, cultura e, também, das consagradas problematizações e contextualizações de suas realidades e conjunturas. Por tais razões é que se mencionam os clássicos literários com o sentimento de maior seriedade, respeito e veneração possível.
Em sentido oposto a este contexto, podemos observar que Hemann Hesse já pressentira, ainda no início da década de 1920, uma “massificação da cultura” e uma produção cultural (especialmente musical e literária) de caráter predominantemente industrial, no qual a pura lógica de mercado, ao mesmo momento em que facilitou o acesso do público a estas áreas, também moldou-lhes os gostos (despolitizando-os). Disto resulta uma singela curiosidade: não seriam os atuais best-sellers, bem como a atual literatura de estilo autoajuda, o fruto mais bem acabado da nossa era? É possível que sim. Este contexto deve ser interpretado, então, como um forte incentivo à busca por obras que possuam uma conotação literária verdadeiramente educativa e comprometida com a transmissão de conhecimento, com conteúdo social e também político (fato este que consagrou o brasileiríssimo e indescritivelmente erudito Lima Barreto).
Ao focar em obras clássicas da literatura, evidentemente alguns autores conhecidos sobressaem à memória do leitor. Se mencionarmos a Rússia como o lócus destes autores, certamente diversos nomes serão automaticamente ressaltados, tais como Alexander Pushkin, Nikolai Gógol, Fiódor Dostoiévski, Ivan Turguêniev, Liev Tolstói, Anton Tchekhov, dentre outros. Estes autores são responsáveis por retratarem não apenas a sua realidade, mas a própria formação histórica e contexto sociopolítico do que hoje conhecemos por Rússia, Ucrânia e Polônia, bem como o próprio povo eslavo. Suas produções literárias, é claro, não ficam restritas apenas à descrição histórica e geográfica; muito pelo contrário!
Próximo do início do Campeonato Mundial de Futebol FIFA, cuja sede será na hospitaleira Rússia, alguns brasileiros deleitar-se-ão, por meio das mais diversas reportagens, pela primeira vez com esta cultura, tão distinta da nossa, ao passo que outros complementarão os seus conhecimentos da Moscou e São Petersburgo de Gógol e Dostoiévski, ou mesmo as álgidas planícies e estepes onde Tarás Bulba lutara e onde Tchekhov se inspirara em suas viagens da juventude. Encontraremos nos contos destes autores uma descrição minuciosa de uma cultura que, se nos é totalmente distinta, possui as mesmas relações afetivas e humanas – o que lhe consagra como uma obra literária mundial: uma obra filosófica, sociológica, política e cultural.
Em termos de avanço literário no Brasil, a literatura russa tem conquistado crescente reconhecimento. Aliás, esta conjuntura pode ser percebida também no meio acadêmico, pois a publicação em periódicos científicos, assim como a divulgação de resenhas, artigos e resumos encontra suporte na RUS – Revista de Literatura e Cultura Russa, bem como nos Cadernos de Literatura em Tradução, ambos vinculados à USP. Com relação aos aspectos culturais, estes também se fazem presentes através dos descendentes de imigrantes eslavos presentes em algumas regiões do Brasil, especialmente no sul do país. Não é por acaso que a divulgação e o fomento da literatura russa no Brasil são temáticas recorrentes em acalorados e enriquecedores debates acadêmicos e literários, promovidos especialmente por meio de publicações, encontros, saraus e palestras em variadas regiões do país.
Em termos de editoração e tradução de obras de autores russos, merece destaque no mercado brasileiro a Editora 34. Esta editora tem apostado em um crescente público que procura nos clássicos sua fonte de inspiração, desde o cômodo e cândido entretenimento à cálida erudição, tanto pessoal quanto acadêmica. As suas traduções são da mais alta qualidade, com ímpar riqueza e precisão de detalhes, fato este responsável pelas apoteoses literárias das quais são vítimas os mais ávidos leitores. Aliás, é facilmente perceptível que o legado literário e a imortalidade destes autores continuam a exercer influência não apenas os círculos literários, mas também nos modos vida e percepções psicossociais de gerações inteiras.
Os impactos são elucidativos ao encontrar em A sonata a Kreutzer, de Tolstói, uma indicação não apenas da obra homônima de Beethoven, mas uma detalhada descrição do que é um casamento em crise e a que ponto as convenções sociais podem interferir na vida matrimonial. Tema este recorrente, mas de forma totalmente diversa, pode ser encontrado também na sua onírica Felicidade conjugal. Aliás, são também fortíssimas as emoções contidas em Primeiro Amor, de Turguêniev, ao abordar a construção psicossocial da dominação masculina entre pai e filho (tão bem registrada também em Tarás Bulba, a ponto de sentir a mais profunda comiseração pela condição de uma “velha e pobre mãe” que é, ao mesmo tempo, uma servil esposa). Ambas as novelas são relativamente breves, mas responsáveis por fortes impressões e um profundo impacto no leitor, guiado pelo interesse da trama absorvente. O que dizer, então, da titânica obra Guerra e Paz, ou mesmo de Anna Karenina (e suas convenções sociais)?
Podemos encontrar também nos contos de Gógol, em especial O capote, toda a base literária de Dostoiévski e, com justiça, compreender absolutamente o significado da expressão deste último autor ao afirmar que “todos nós nascemos de O Capote, de Gógol”. A conversão de tradições e mitos transmitidos via oralidade transformaram-se e consolidaram-se em ricas obras literárias, como é o caso de Noite de Natal e da cativante, mas assombrosa, Viy. Suas obras, inclusive as incursões e estudos de viés histórico, como foi o caso para a escrita de Tarás Bulba, foram responsáveis por influenciar toda uma vasta gama de produções artísticas, do teatro ao cinema, da música à filosofia, além de deixar registrados tradições e crenças do folclore eslavo.
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O mesmo, e bem mais intensamente, ocorre com a obra de Dostoiévski. Esta é uma das mais significativas em termos de produção e riqueza literária, não apenas russa, mas humana, mundial. A influência que este autor exerceu vai das ciências sociais à sociologia, passando pela psicologia e pela própria evolução humana – vide a atualíssima sociologia de Notas de inverno sobre impressões de verão (um relato não ficcional). Não por acaso sua colossal obra Crime e Castigo e, mais ainda a ambiciosa Os irmãos Karamázov, continuam a despertar um crescente interesse entre os leitores.
A comicidade, a crítica e a sátira também são constantes nas obras deste autor, o mesmo cujos críticos de sua época julgaram ser “incapaz de sorrir”. Esta impressão é realçada ao ler-se A aldeia de Stiepantchikov e seus habitantes, no qual o leitor deseja intimamente que o tirano Fomá Fomich receba o que lhe é de merecimento. Percebe-se em suas obras também a descrição satírica de uma sociedade supostamente culta, mesquinha e que vê no galicismo algo semelhante ao o que “mestre Povo” parafraseou como “tudo que é de fora, é melhor”. Tal observação é evidente (e risível) em O sonho do titio, obra em que o leitor chaga ansioso ao final da cada capítulo, sedento e incontrolavelmente ansioso pelo próximo.
A influência destas obras na vida do leitor é inexoravelmente retumbante. Não há como negar o caráter erudito, culto e, ao mesmo tempo, comprometido com uma literatura que busca retratar a realidade e a conjuntura social além do mero ato descritivo. É, acima de qualquer coisa, inquietante e reflexiva. Ademais, as reflexões científicas e filosóficas presentes ao longo destas obras fornecem-nos uma pura epistemologia acerca do conhecimento humano, desde as relações misantropas à necessidade gregária, até a importância da fé, no seu sentido semântico. Aliás, também são lançadas aqui, ao sabor de Zéfiro, as primeiras sementes do que mais tarde convencionou-se chamar de existencialismo. São estas as razões que levam o crítico literário e o leitor diletante se verem frente a frente com titãs, com verdadeiros imortais, restando-lhe apenas (e com imenso prazer e satisfação), propagar o legado destes autores.
Se, em uma primeira impressão, há um distanciamento cultural, esta mesma impressão é deveras superficial, uma vez analisada a correlação entre a tríade autor, leitor e a trama literária. Decorre disto o que convém chamarmos de fraternidade entre todos os povos ou, também, Fraternidade Universal. O legado destes imortais possui um titânico impacto na percepção de mundo, especialmente daqueles que leram suas obras. Por esta razão, dentre outras, a aposta na tradução de qualidade, na editoração e divulgação de um mercado literário crescente no Brasil mais do que se justifica, trata-se de empreendedorismo (não só financeiro, mas cultural). Dedicar-se ao estudo e compreensão da literatura clássica russa é uma excelsa contribuição para a erudição e formação daquilo que, de acordo com a sociologia de Bourdieu, ficou conhecido como capital cultural.
*Marconi Severo é Cientista Social & Político e colaborou para Pragmatismo Político