Contra o Preconceito

A multa do Caju

Share

Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político

Ao invés de fazer o retorno quilômetro adiante, o Caju cortou a avenida por entre os canteiros. Ele não podia calcular que, quase duas da madrugada, os policiais estivessem justamente parados na transversal. A viatura também não fez o retorno lá na frente, como mandava a placa. Retornou por cima da faixa de pedestres em aceleração alta. Quando ouviu a sirene, que cantou nem dois segundos, o Caju já puxou pra direita, encostando a moto e dizendo puta-que-pariu.

Acostumado a abordagens, Caju estacionou e logo levantou as duas mãos. O primeiro soldado veio calmamente em sua direção e disse que tirasse o capacete, por favor.

Ao ser indagado se não sabia que a conversão que fizera era proibida, Caju rebateu que claro que estava ciente do seu erro, sim senhor. É que, sabe como é, seu soldado, é madrugada…

Caju falava de cabeça baixa. Por subordinação, já que tava no erro; e por medo do polícia sentir o bafo de duas latas de cerveja que tinha acabado de tomar.

Caju é entregador de pizza. Quem tá com pressa que a pizza chegue, ou seja, todos os clientes, que peça ao Caju pra fazer roncar essa cento e vinte e cinco cilindradas de fumante motor.

Naquele sábado, terminou a última entrega passado da meia-noite e foi no bar, com o pizzaiolo e com o dono da pizzaria. Jogaram sinuca e mentiram vantagens um pro outro. Foi o tempo do Caju tomar não mais do que duas latas. O bodegueiro avisou do fechamento e foi cada um pro seu lado.

Mais vazio que o bar somente mesmo a rua, com sua brisa primaveril. Quem que iria até lá fazer o retorno? Ninguém, calculou. Mas os agentes da lei estavam estacionados, esperando acionamento, pra justamente fazer cumprir a lei, a ordem, o que é certo.

Quando Caju deu suas explicações, à sua voz, a autoridade mudou o tom. Perguntou onde Caju morava. O motoqueiro deu o endereço, três quilômetros adiante ali do Centro. Mas trabalhava na pizzaria. A única da cidade. Se o seu soldado já pediu pizza dali, certo que ele, Caju, é que tinha feito a entrega, posto que era também o único entregador.

Desde quando te demos intimidade pra saber o que comemos ou deixamos de comer, baiano vagabundo? Era o cabo que agora intervinha na abordagem.

Desde que saíra de Pernambuco, há coisa de uns cinco anos, para o sul, Caju já havia passado por semelhantes situações. Motoqueiro e preto, sua situação piorava quando, pelo sotaque, as pessoas – autoridades ou não – percebiam que era nordestino. Quando se mudou da capital pro interior, achou que a situação pudesse melhorar, pois, afinal, em cidade pequena, em que todos se conhecem, logo saberiam que ele não era ladrão, ou vagabundo, como sugestionou o seu polícia.

Caju tinha vontade de responder. Como vagabundo se justamente estou dizendo onde trabalho? Mas alguns cascudos de outrora lhe ensinaram que o silêncio, nesses casos, é a mais prudente resposta. Ademais, lembrava que, de fato, estava errado. Além da conversão proibida, tinha ingerido duas latas. Por isso, ao entregar a documentação dele e da moto, continuava cabisbaixo.

Como a documentação da moto estava óquei, o cabo percebeu que a carteira de motorista estava avariada. Não se podia ter certeza do nome. Mas pior mesmo era a data de validade da licença. O cabo até pediu a opinião do soldado, que concordou sem nem mesmo olhar. Uma porcaria, não se pode transitar com semelhante documento, consentiu o subordinado.

Caju ainda tentou argumentar que a data de emissão estava legível. E constava de nem dois anos. Logo, o documento estava no prazo, senhor. Quanto a alguma manchinha, veja o senhor que ando no sol e na chuva. O soldado não se conteve a tal disparate. Pois então um preto sujo iria lhe ensinar a fazer o seu trabalho?

Caju tinha uma pouca quantia no bolso. Ficou com medo de ofertar e, devido ao baixo valor, ser enquadrado por corrupção, ainda.

Não tinha jeito. Ou apresentava logo um motorista habilitado ou a moto ia pro depósito.

Foram os próprios policiais que indicaram o telefone dum taxista que poderia ir buscar a esposa do Caju pra conduzir a moto. Dado o horário, explicou o taxista, nada menos do que cem conto pra fazer a corrida.

Antes de o táxi estacionar, depois de quase hora esperando – os policiais dando risadinhas – pôde-se ver a mulher do Caju. Uma alemoa de cacheados cabelos. O soldado disse que isso sim era racismo. Negro tem que namorar negra. O contrário é, palavras dele, preconceito invertido. O cabo, por sua sorte, perguntou o que as loiras veem nesses negões catinguentos. Caju não disse, mas pensou: é o tamanho do pau.

Pra encerrar, Caju ainda teve que ouvir que, se não quisesse que a mulher passasse frio, ela poderia ir na viatura e ele conduzindo a moto. Resiliente, engoliu um seco e teve que agradecer a generosa oferta. A de cabelos volumosos ia abrir a boca pra lhes chamar de filhos-da-puta. Foi a tempo interceptada por Caju, que lhe botou o capacete.

A infração de Caju não foi ter convertido em local proibido. Ou estar com a CNH supostamente sem condições. Ou nem mesmo ter tomado duas cervejas com os amigos enquanto contava em o dobro as mulheres que já comeu.

Caju foi multado e teve seu documento retido por ser preto, nordestino e, na visão das autoridades, sujo e fedorento.

Leia também:
Professora diz que luta pela desmilitarização da polícia é “estúpida” e recebe resposta
Batalhão denunciado por Marielle Franco é alvo de 212 inquéritos

*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”

Acompanhe Pragmatismo Político no Twitter e no Facebook