No Brasil, mulheres também são condenadas pelo gênero
Justiça machista: brasileiras são condenadas pelo crime e pelo gênero. Exemplos mostram que não é incomum que mulheres sofram descaso ou, pior, uma dupla condenação
Sílvia Lisboa e Letícia González, Revista Galileu
Tatiane foi condenada a 24 anos de prisão por omissão porque estava trabalhando quando seu marido matou o filho caçula. Ana Raquel pediu proteção à polícia e à Justiça contra o chefe violento oito vezes — e não foi atendida. Maria* ficou com as marcas de um estupro no corpo, mas seu algoz foi absolvido porque desembargadores disseram que ela não gritou.Três histórias de mulheres marcadas pelo machismo da justiça brasileira.
Tatiane da Silva Santos chegou em casa por volta das 16h naquele domingo, 29 de setembro de 2013. Ela havia deixado os três filhos aos cuidados do pai, Amilton Martins, para trabalhar na padaria próxima a sua casa na zona norte de Porto Alegre. Desde que o marido ficara desempregado, ela garantia o sustento da família. Naquele fim de semana, o casal resolvera economizar R$ 70 que pagavam a uma babá, e Amilton ficou em casa com os três filhos.
Gabriel e Gabriele, então com 4 e 2 anos, estavam vendo TV. Amilton disse que Dioguinho, como era chamado o caçula, estava dormindo e que era melhor não incomodá-lo.
Tatiane assentiu e foi preparar o jantar. Mas estranhou a soneca prolongada do menino de um ano e dois meses. Horas mais tarde, foi até o berço. Notou que Diogo estava com uma aparência estranha, com manchas roxas no rosto e respirando com dificuldade. Quando tirou o cobertor de cima dele, levou um susto. O garoto estava com a barriga inchada e tinha hematomas no corpo todo. Na fralda havia uma secreção estranha. Ela pegou o filho nos braços e correu para pedir ajuda a vizinhos. Amilton fugiu.
Diogo chegou à emergência com parada cardíaca. O médico que o atendeu tentou operá-lo, mas era tarde demais. O estômago e o intestino haviam rompido, e uma infecção generalizada tomara conta. O menino tinha lesões no ânus, que indicaram empalamento. Tatiane ficou em estado de choque e foi atendida pelas enfermeiras. Por causa dos ferimentos de Diogo, teve de dar explicações à polícia. Dias depois, foi presa preventivamente, acusada de homicídio qualificado por omissão e tortura contra Diogo e maus-tratos contra os filhos mais velhos (artigos 121 e 136 do Código Penal).
O Ministério Público entendeu que Tatiane tinha de ter previsto e impedido a morte do caçula pelo próprio pai — um laudo médico disse que as agressões teriam começado um dia antes. Amilton é viciado em drogas, tinha antecedentes por tráfico e um histórico de agressões contra a mulher. Mas até aquele momento não havia registros de maus-tratos nos filhos. Tatiane perdeu a guarda de Gabriel e Gabriele em maio e foi levada a júri popular em novembro do ano passado. Sete juradas de meia-idade a condenaram a 22 anos de prisão. Amilton pegou uma pena de 42 anos pela morte, mas foi absolvido do crime de estupro. Irá a novo julgamento.
“Imagine o caso contrário: um pai que estivesse trabalhando no momento em que a mãe, que está em casa cuidando dos filhos, mata um deles. Ele sequer seria indiciado”, diz a defensora pública Tatiana Kosby Boeira, à frente do caso. Em tese, crimes por omissão de cuidado, em que os pais são indiciados pelo que não fizeram, podem recair tanto sobre o pai quanto sobre a mãe. Mas um estudo apresentado no 13º Women’s World Congress, em 2017, mostra que, na prática, só as mães vêm sendo criminalizadas por esse tipo de delito.
“Nas sentenças, fica claro que a responsabilidade pelos filhos é somente das mães, uma noção fortemente patriarcal. Ocorre também uma espécie de sacralização da maternidade: quando se torna mãe, a mulher tem de ser onipresente, pura, não ter outros desejos e anseios”, explica a advogada criminalista Fernanda Osorio, uma das autoras da pesquisa que analisou acórdãos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul entre 2000 e 2016. “O Direito Penal julga fatos, não a moral. Mas não é isso que se vê na prática em crimes que envolvem mulheres”, diz.
A condenação de Tatiane é exemplar nesse sentido. No julgamento, a procuradora Sônia Mensch criticou o fato de Tatiane permanecer casada com Amilton mesmo ele tendo sido agressivo com ela, e atribuiu a dificuldade a uma “dependência sexual”. “Tatiane tinha um relacionamento erotizado com Amilton”, disse, em entrevista à GALILEU.
Tatiane foi quatro vezes para um abrigo que recebe mulheres vítimas de violência doméstica. Na penúltima vez, foi aconselhada pelo juiz a “dar uma segunda chance”. O magistrado não aplicou nenhuma medida protetiva para resguardar Tatiane e os filhos. “Se ela tinha como prever que o próprio pai mataria a criança, o Conselho Tutelar também teria de ter previsto e ser culpado pela omissão. São todos coautores nessa omissão”, argumenta a defensora pública Tatiana Kosby Boeira.
Ela pediu proteção contra o chefe violento oito vezes — e não foi atendida —, até que decidiu agir por conta própria. Depois que ela o matou em legítima defesa e avisou a polícia, foi presa em flagrante dentro da própria casa. O Ministério Público pediu que ela respondesse ao processo na cadeia, exigiu um julgamento por júri e a considerou homicida — para, depois, voltar atrás.
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