"Fui cobrada por um aborto espontâneo e entendi como custa caro ser mulher"
"Eu nunca tinha entendido como custa caro ser mulher". Mulher sofre aborto espontâneo e recebe a conta em casa para pagar
“Se você está tendo uma crise de saúde mental, ligue para seu convênio médico“, disse a voz robótica na linha de espera do meu convênio anterior. E eu comecei a pensar, será que estou realmente tendo uma crise de saúde mental?
Cada vez que falei com esse convênio, acabei me sentindo pior e mais desanimada do que antes. Parece que eles nunca têm soluções para nada, e as vozes nada entusiasmadas de seus profissionais de suposto “atendimento ao consumidor” não me convencem de que alguém esteja procurando respostas para minhas dúvidas.
Olhei de novo para a conta amassada que tinha nas mãos, vendo a lista detalhada dos milhares de dólares devidos por complicações decorrentes de um aborto espontâneo que sofri dois anos antes. Complicações que o convênio médico está negando que aconteceram.
Esse convênio é o que eu tinha quando meu marido ainda estava no Exército. Nunca antes tínhamos recebido uma conta a pagar por nada, graças a Deus, mas, quando fui transferida para um hospital civil e atendida pelos médicos desse hospital, tudo ficou muito caro em muito pouco tempo.
Fui ao hospital quase um mês depois de ter considerado que meu aborto espontâneo tinha terminado. Fui porque ainda estava tendo hemorragias, tontura e uma sensação de letargia constante, por mais que eu fizesse repouso.
Ecografias. Exames de sangue. Um traslado em ambulância. Um exame pélvico. Tudo isso foi pedido por uma médica que eu não conhecia antes e que mais ou menos descartou a ideia de que eu pudesse estar sofrendo complicações decorrentes do aborto espontâneo (eu iria descobrir mais tarde que eram decorrentes disso, sim – o aborto espontâneo levou cinco meses ao todo até deixar de produzir efeitos).
Ela me disse que eu precisava de nova ecografia – a quarta feita desde que perdi o bebê e que apenas confirmou que meu útero estava vazio – e que o técnico de ultrassonografia do hospital já tinha ido embora e só voltaria no dia seguinte. Eram 15h30, e foi decidido que eu iria para o hospital local e seria tratada ali.
A conta que chegou, endereçada muito corretamente para minha caixa postal, ameaçava que a correspondência seguinte seria de um serviço de cobrança judicial. Como era a primeira notícia que eu tinha sobre o assunto havia dois anos, eu imaginara, equivocadamente, que isso já tivesse sido resolvido havia muito tempo. Abri a conta, deixei minhas chaves caírem sobre a mesa e me deixei cair sobre uma cadeira da cozinha, me sentindo carregada de volta para 2016, enquanto digitava o número do convênio médico, dizendo a mim mesma que o convênio só podia ter cometido um erro.
Por que apenas agora estávamos recebendo uma conta que nos daria um chute financeiro quando já estávamos no chão? Por que o convênio não estava cobrindo os custos? Quando finalmente consegui falar com uma gerente do convênio, ela me disse que precisavam de mais comprovantes.
Comprovantes. Eles precisavam de mais provas. Provas de que eu não acordei simplesmente um dia em fevereiro de 2016 e falei:
“Uau, de repente será divertido passar dez horas hoje numa sala de emergência hospitalar. Tomara que não encontrem uma veia, assim vão poder me furar como se eu fosse uma alfineteira.”
O convênio queria provas. Ele já tinha recebido meus registros médicos. Já tinha recebido minha ficha daquele hospital da Flórida, nos Estados Unidos, dizendo que sim, eu sofrera um aborto espontâneo. Como eu detestava esse termo. Para mim, falar em “espontâneo” faz pensar em decisões e riscos, e eu era uma pessoa de risco: estava nas ilhas Florida Keys pesando camarões, então sabia quantos crustáceos poderia ingerir com segurança durante nossas férias, estando grávida. Prova.
Rindo durante o jantar na noite antes do meu aniversário, curtindo o ar salgado e a brisa do mar e vendo pessoas de meia-idade ligeiramente bêbadas dançando ao som de “Kokomo“. De repente eu estava sentindo mal-estar e cólica. Prova.
Corri ao banheiro, rezando para não encontrar o que encontrei. Sangue. Prova.
Voltamos para o lugar onde estávamos hospedados, uma pousada linda que pertencia à tia de nossos melhores amigos. Eu me deitei, liguei para o número de atendimento 24h da enfermagem do Exército e elevei meus pés. Prova.
Acordei com meu marido tirando as cobertas de cima de mim. Descobri que tinha sangrado e manchado o colchão. Ele me ajudou a tomar banho, e foi ali que encontrei a prova. Fiquei em pé, e o bebê nasceu mais ou menos 28 semanas antes do prazo. Prova.
Soltei um grito gutural. Minha melhor amiga e meu marido correram para me vestir e me levar ao hospital. Chegamos à meia-noite à sala de emergência de um hospital em Key Largo. Dissemos, brincando, que era um milagre que éramos as únicas pessoas que estávamos esperando ali e recebendo atendimento cinco estrelas, apesar de termos passado a noite toda cercados por turistas bêbados e idosos.
Fizeram exames e discutiram a possibilidade de me mandar para Miami, porque eu perdera dois litros de sangue e precisava de uma transfusão. Meu útero estava inchado, mas vazio. Prova.
Minha pressão sanguínea caiu para 7/3,8. A enfermeira saiu correndo para chamar um médico, e ele disse: “Esta é a mulher que tem medo de agulhas, certo?“. Ele falou em agulhas, injeções e em me dar nova injeção para ver se ajudaria. Eles checaram minha pressão de novo: 9/7,2. Prova. Me recomendaram ficar hidratada, fazer repouso e ligar para um número xis se eu me sentisse deprimida ou com pensamentos suicidas, e me mandaram para casa.
Nunca liguei para o tal número. A documentação que me acompanhou para o médico seguinte e as consultas no hospital comprovavam a perda do meu bebê. Dois anos após o aborto espontâneo, pensei que não precisávamos mais de toda aquela papelada. Parecia que esse capítulo tivesse sido encerrado.
Tínhamos deixado a base do Exército, voltado para casa, na Carolina do Norte, e tido nosso “bebê arco-íris” (um bebê que nasce após um aborto espontâneo, como um arco-íris trazendo esperança de sol após a chuva) – por cesárea, sem complicações. Prova de que meu corpo podia funcionar do jeito como eu tanto quis que tivesse funcionado da primeira vez. Prova. Nos mandaram a conta da cirurgia e pagamos de bom grado, felizes por trazer nosso bebê para casa, saudável, vivo, feliz. Nosso comprovante.
Nunca imaginei que nos custaria mais perder um bebê que trazer um para casa. Mas cá estamos.
“Alô? Senhora Ramirez?“. Esqueci que tinham me colocado em espera. Vinte e sete minutos de meu intervalo de almoço, perdidos.
“Estou aqui“, falei a contragosto. Dei à atendente a informação que ela pediu. Me mandaram esperar novamente.
“Senhora, voltei“, ela disse. “Parece que precisamos de uma carta do médico que a encaminhou de um hospital do Exército para o hospital civil, confirmando que o atendimento dado foi necessário. Só precisamos de mais comprovação.”
Comprovação. Ainda estou correndo de um lado a outro, procurando esses comprovantes. Contatando todos os hospitais onde fui atendida, tentando localizar médicos que desde então foram transferidos pelas Forças Armadas, vasculhando meus papéis para ver se posso conter a pressa do convênio por tempo suficiente para impedir minha conta de ser encaminhada para cobrança. Eu nunca tinha entendido como custa caro ser mulher. Agora sei em tempo real que ser mulher pode custar caro emocionalmente e financeiramente, e que de vez em quando alguém ainda terá a audácia de lhe pedir mais comprovantes.
O convênio está dizendo que precisa de mais comprovantes de que sofri o aborto espontâneo. Eu estou dizendo que já basta o trauma de ter sofrido o aborto espontâneo. Nunca pensei que teria que carregar a prova dessa perda comigo em todo lugar.
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Lauren Ramirez, Huffpost