Vocês se lembram da Marielle. É aquela que, quando entra no mercado, os seguranças ficam em alerta. É que ela carrega uma bolsa que caberia alguns produtos furtados. Nada pessoal
Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político
Branco e de classe média, não tenho íntimo contato com ela. Mas sei quem é a Marielle. A vejo diariamente. É capaz de todos nós sabermos de quem se trata, só que alguns a conhecem, mas não a reconhecem.
A Marielle é aquela moça negra que toma o ônibus diariamente conosco. Nós não sabemos a sua profissão, mas deduzimos que seja de serviços gerais. No máximo auxiliar de escritório. Não pensamos se tratar duma chefe de departamento. Muito menos uma bacharela bem-sucedida.
Se a víssemos no hospital com jaleco, não a suporíamos médica.
Ela é até podia trabalhar numa loja de xópim. Mas alisa esse cabelo, pelo menos!
A Marielle é aquela que recebeu o filho inconformado em casa e tentava lhe confortar. Mesmo sem muita convicção, ela dizia “te acalma, meu filho. Isso um dia vai mudar”. É que ele havia apanhado da polícia. Coisa pouca, duas ou três bofetadas pra aprender a responder direito quando perguntado o que fazia na rua àquela hora.
Apesar de trabalhador – como recomenda a regra burguesa -, o guri tinha que entender que estava em suspeita atitude: preto e andando na rua depois das dez.
A Marielle é mãe solteira. Inconsequências da juventude. Agora, com o filho sendo pessoa honesta (o que não lhe exime de abordagens constantes), está aliviada de não ter abortado. Lhe disseram que seria assassinato e que iria contra as regras cristãs. Apesar de não ser católica, Marielle, no auge dos seus dezesseis, ficou com medo duma eventual prisão e duma certeza de ida ao inferno. Teve a criança e Deus sabe o que passou. Pelo visto, Deus manda parir, mas não dá assistência.
O pai tem paradeiro desconhecido. Sumiu tão logo recebeu a notícia da gravidez. Mas a promíscua irresponsável é ela, não ele.
Como todos nós, a Marielle também comete erros, às vezes. Quando isso ocorre, tem que ouvir a reprimenda: só podia ser preta!
Talvez, vaidosa que sempre foi, a Marielle pensava em ser modelo ou atriz de tevê. Até podia ser, pois os filmes de época precisam retratar os escravos. Mas dificilmente assistiríamos a ela protagonista da novela das nove.
Vocês se lembram da Marielle. É aquela que, quando entra no mercado, os seguranças ficam em alerta. É que ela carrega uma bolsa que caberia alguns produtos furtados. Nada pessoal.
Soube que executaram uma vereadora do Rio de Janeiro. Morador do Rio Grande do Sul, desconheço a vítima. Só sei que era negra e não tinha quarenta anos. Apurei que, de esquerda e filiada ao PSOL, lutava pelos direitos humanos e contra violência policial, sobretudo as ocorridas nas favelas e contra os negros.
Se os criminosos não forem presos, corremos o risco de que isso vire rotina.
Li a notícia do crime e me lembrei da Marielle. Vocês devem conhecê-la também.
*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”