“Por que morreu Marielle?”. Surgiu uma disputa insana na esquerda: especular se ela foi executada por ser negra ou por lutar contra o golpe. Enquanto isso, a Rede Globo avança
Vanessa Oliveira e Gabriel Rocha Gaspar, Outras Palavras
Quem matou a Marielle Franco foi o racismo. Foi o fascismo. Foi a polícia. Foi o exército. Foi o golpe. Foi o estado de exceção. Todas essas frases estão certas, ao mesmo tempo, se acreditamos que os problemas estruturais da sociedade só podem ser vistos numa ótica interseccional, que não simplifique nem hierarquize formas de opressão. Se você está buscando uma resposta única, exclusiva e excludente para “quem matou a Marielle?”, você está analisando uma hashtag, um slogan, e não o profundo problema político, social e racial que este assassinato evidencia.
Basta ler o título de Mulheres, Raça e Classe, da Angela Davis, pra invalidar a discussão se o racismo foi mais determinante do que a condição de classe ou de gênero. “Mais determinante” não é a questão. Se você achar que ela é “só mais uma vítima” do genocídio da juventude preta no Brasil, você perde de perspectiva o fato de que este assassinato é uma escalada inédita do estado de exceção. Se achar que foi só o estado de exceção, você não explica por que morreu Marielle Franco e não Marcelo Freixo.
O estado sempre foi de exceção pro nosso povo? Sempre foi. Mas quando foi que conscientemente executaram uma negra/o eleita/o no meio da rua? O fato de ela ter sido a quinta vereadora mais votada do Rio de Janeiro não quer dizer nada? Ou não teve nenhuma relação com a morte dela? A busca por uma resposta monolítica para esse assunto complexo elimina a distinção entre o que é o funcionamento automático da máquina genocida e o que é a ideologia genocidária. A máquina do genocídio (de qualquer genocídio da história) mata tanto porque não só é automática, mas funciona em escala industrial e de forma transversalmente distribuída pelo corpo da sociedade; quer dizer, não é só a polícia ou justiceiros que matam, tem o sistema de saúde, de educação, o Judiciário etc.
A máquina do genocídio x ideologia genocidária
O assassinato de Marielle não é automático, ele é um ato premeditado de apologia da ideologia genocidária. As mortes das outras vítimas do genocídio são políticas no plano objetivo, estrutural, macroscópico. O da Marielle, além de ser objetivamente e estruturalmente político, é subjetivamente político. Ou seja, ele impacta nossa retina para passar um recado direto: “vocês, pretas e pretos, pobres, de esquerda, não venham brincar de democracia no nosso quintal, porque nem a sua institucionalização vai te proteger do assassinato em massa”. A gente precisa entender como este recado opera na esfera ideológica, se quiser enfrentar o genocídio de fato.
Nosso povo tem a esperança de que, como indivíduo, se a gente chegar positivamente a uma esfera institucional, as nossas chances de virar estatística diminuem. O assassinato de Marielle é um atentado contra essa lógica psicossocial do povo oprimido, é um tiro no peito da nossa capacidade de sonhar. É terrorismo de Estado contra a população preta e pobre na esfera institucional positiva, que é diferente do terrorismo de estado que atua na esfera institucional negativa, por meio de cadeia e polícia.
E se a gente não for capaz de racionalizar isso, a gente vai absorver o terrorismo de Estado emocionalmente e não racionalmente. Ele vai ter cumprido seu objetivo.
Se aceitarmos a complexidade da situação, se pararmos de desprezar a interseccionalidade — que é o que faz essa busca pela causa monolítica –, vamos provavelmente chegar à conclusão de que “quem matou a Marielle?” não é a pergunta política fundamental. Objetivamente, essa pergunta é para o Judiciário. Porque, do ponto de vista político, quem matou Marielle foi o avanço do reacionarismo simultaneamente racista, classista, misógino e homofóbico num contexto de estado de exceção. A questão fundamental é quem vai continuar matando a Marielle. Provavelmente, quem vai continuar matando a Marielle é a guerra publicitária pelo seu cadáver ou, como tem se colocado de forma eufemista, a disputa de narrativa.
O autoritarismo da disputa de narrativa
Infelizmente, ela não acontece no plano racional, é um conflito pelo monopólio da manipulação emocional da população. Todos os lados usam a razão de forma autoritária para ver quem consegue impactar mais fortemente o coração da sociedade. E todas as armas dessa guerra foram disponibilizadas pela direita.
Afinal, o caráter contemporâneo do uso autoritário da razão para manipular o inconsciente coletivo com fins políticos ou econômicos – processo também conhecido como “publicidade”, na faceta eufemista; “propaganda”, na mais literal – é uma invenção do ministro da Propaganda de Adolf Hitler, Joseph Goebbels. Enfrentar o fascismo exige brigar pelo restabelecimento do debate racional, usando, com profunda honestidade intelectual, o que a gente desenvolveu de teoria — neste caso, feministas negras como Angela Davis e Patricia Hill Collins caem como luvas.
Tanto quem diz que Marielle foi vítima exclusiva do racismo estrutural e do genocídio do povo preto, quanto quem diz que Marielle foi vítima exclusiva do golpe e do estado de exceção, está jogando um campeonato de várzea achando que é Copa do Mundo. Afinal, escreve a história quem vence. E a esquerda, preta ou branca, está perdendo. A narrativa sobre a Marielle vai ser escrita pela Globo, que já incorporou a pauta e parece querer esvaziar todo seu conteúdo político, com a construção do que eles chamam de “drama humano”: a redução de problemas estruturais a problemas individuais. Nossa disputa simbólica é contra a direita – Globo, MBL etc.
A gente deveria estar se perguntando seriamente o que a Globo pretende com este “Marielle Presente” no intervalo da programação. Ou vocês esqueceram que, em junho de 2013, bastou um editorial pró-manifestações do Arnaldo Jabor para transformar uma legítima demanda por mais Estado em uma escalada fascista de dimensão nacional?
E o inimigo quer o quê?
Uma coisa é óbvia: eles querem a razão fora do jogo. Querem reforçar o aspecto emocional, despolitizador. Querem individualizar o drama para transformar o Estado de exceção e o genocídio em pautas secundárias. Ou seja, a Globo tem o poder de, com uma única manobra de autoritarismo emocional, marginalizar as duas bandeiras da esquerda que estão se degladiando na arena semipública dos grupos de WhatsApp.
Se este é o objetivo narrativo, a gente precisa se perguntar qual o objetivo político final deles. Eles querem um aprofundamento da intervenção militar, que leve à determinação de um estado de emergência, que suspenda as eleições e transforme o Brasil numa gestão militar de fachada civil? Ou eles pretendem botar o fardo nas costas do governo federal para esvaziar o movimento de sua potência política, criar uma espécie de “sou da paz” e capitanear uma volta da democracia neoliberal nos braços do povo? Uma combinação dos dois, com agendas de curto, médio e longo prazo? Estamos especulando.
Seja qual for a intenção do inimigo, é urgente que a gente aprenda a estabelecer uma comunicação social horizontal, de razão para razão, de cabeça para cabeça. A gente precisa conseguir acabar com esta forma de comunicação autoritária, que coloca a razão num lugar de privilégio para manipular a psicologia social pela emoção. A gente precisa romper com o formato nazista de comunicação. Afinal, se o meio é de extrema-direita, com base em quê vocês acham que o resultado vai ser favorável à esquerda, seja ela preta ou branca?
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