Jessica Mota, Agência Pública
Na bacia do Tapajós, que abrange a região oeste do Pará e norte do Mato Grosso, é difícil andar sem esbarrar em algum tipo de projeto de infraestrutura do governo federal. Por isso, Francisco Karu Munduruku, cacique da aldeia Karu Muybu, resume a situação com gravidade: “O governo quer acabar o mundo”. A realidade faz com que a lista de batalhas dos Munduruku seja extensa.
Em julho de 2017, a ocupação por 200 guerreiras e guerreiros Munduruku da hidrelétrica de São Manoel (MT), a 700 metros do limite da terra indígena mais próxima, do povo Kayabi, trazia uma série de reivindicações. Eles pediam a devolução das urnas funerárias que haviam sido removidas em 2012 pela empresa de arqueologia contratada pela Empresa de Energia São Manoel S.A., vencedora da licitação da obra e responsável pelos estudos de impacto das barragens. Ela é constituída pela brasileira Furnas Centrais Elétricas e por duas empresas estrangeiras que têm o Brasil entre os países prioritários para investimentos: a estatal chinesa (que no Brasil tem capital privado) China Three Gorges Corporation (CTG), maior produtora de energia hidrelétrica do mundo, e a portuguesa EDP Brasil. De um local sagrado, as urnas foram parar em um museu em Alta Floresta (MT). Reivindicavam, além disso, a demarcação do território indígena Sawré Muybu, no oeste do Pará, que se arrasta desde 2007.
“Já quebraram tudo que tem dentro da água. Eles quebram e dizem que não é nada, mas pra gente isso vale muito”, conta Maria Augusta Kabá, fundadora da aldeia mais nova no território Sawré Muybu, a Poxo Muybu, ao se referir às urnas sagradas. “Isso é comida dos porcos, é comida dos peixes, tudo tem lá, porque os pajé que vê e diz pra gente. Se não tiver isso, peixe acaba, caça acaba. É por isso que a gente tá passando muita fome por aqui, porque eles tão quebrando as vasilhas do peixe que têm no fundo da água.”
A usina de Teles Pires, inaugurada em 2016 na fronteira entre Pará e Mato Grosso, destruiu a cachoeira das Sete Quedas, local sagrado para os Munduruku. É como se uma igreja ou templo sagrado sucumbisse para sempre sob uma obra pública do dia para a noite, sem nenhum fiel ter sido ouvido. A empresa responsável pela construção e operação da usina é a Companhia Hidrelétrica Teles Pires S.A., formada majoritariamente pela Neoenergia (do grupo Iberdrola), Eletrobras-Eletrosul, Eletrobras-Furnas e Odebrecht Energia.
O rio Teles Pires, que se junta ao rio Juruena e forma o Tapajós entre Pará e Mato Grosso, ainda é alvo de mais dois projetos de usinas: Sinop e Colíder. Em outubro, as empresas que ganharam as licitações para realizar as obras no Teles Pires se recusaram a se encontrar com os Munduruku e pedir desculpas pelos danos causados. A Funai, órgão responsável pela aplicação da política pública indigenista que tem sido enfraquecido por significativos cortes de orçamento e funcionários, também não compareceu.
Em 2015, o governo federal e empresas iniciavam os estudos para implantação das hidrelétricas de São Luiz do Tapajós e Jatobá, ao longo do rio Tapajós no Pará, que inundaria o território Munduruku Sawré Muybu. Já que é ilegal inundar terras indígenas para construir barragens, o projeto de São Luiz foi suspenso temporariamente, mas a ameaça ainda paira no ar.
Essas são algumas das maiores obras do Programa de Aceleração do Crescimento, do governo federal, iniciado em 2007. Somados, os investimentos previstos e realizados para essas usinas ultrapassam a casa dos R$ 10 bilhões. Em comum, os projetos têm o traço de violar direitos indígenas e ambientais ao não consultar os povos atingidos pelas obras e não considerar os impactos cumulativos ao meio ambiente e à vida humana nessas regiões. Não é à toa: os estudos dos projetos são insuficientes para medir impactos do ponto de vista desses povos e são feitos por empresas da construção civil, interessadas na realização das obras. O direito de consulta aos povos tradicionais é lei brasileira desde 2004.
Os Munduruku e a população ribeirinha da comunidade de Montanha e Mangabal – que também fica no rio Tapajós – produziram um protocolo que diz como desejam ser consultados pelo governo e pelas empresas quando houver um projeto que os atinja. “A Constituição de 88 já ampara várias leis nossas, em todos os povos, e a Convenção 169 também. Só que não está sendo respeitado, né? É uma coisa que colocaram, mas parece que colocaram só de enfeite”, desabafa Alessandra Korap, representante da Associação Pahyhy’p e moradora da aldeia Praia do Índio, localizada no município de Itaituba (PA).
“Eles acham que é só chegar, falar, e nós ali temos que concordar. Não!”, diz Alessandra. “Se tem 140 caciques, esses caciques ainda não podem decidir, porque tem as mulheres, tem os guerreiros, tem criança, tem pajé. Tudo isso tem que ser consultado.”
O histórico de violações tem rendido diversas ações do Ministério Público Federal (MPF) contra a União, o Ibama, a Funai e outros órgãos do governo. “O tratamento que é dado pelo governo a essas populações é como se eles não existissem e não importassem. É contra isso que o MPF se volta. Para garantir que essas pessoas tenham voz nesse processo decisório”, esclarece Paulo de Tarso, procurador da República de Itaituba.
“Somos uma das procuradorias do Brasil que mais têm procedimentos”, conta. Mas as obras seguem em frente por decisão política. Apesar dos questionamentos, a licença ambiental de operação da usina de São Manoel pelo Ibama saiu em setembro. Em janeiro, o governo liberou a primeira turbina da hidrelétrica para funcionamento.
A floresta cortada pelo agronegócio
O Tapajós percorre uma extensão de 800 km do Mato Grosso até desaguar no rio Amazonas, no Pará. Sua bacia alimenta 73 municípios entre Pará, Mato Grosso, Amazonas e Rondônia, mas a maior parte está em território mato-grossense. Considerada uma região prioritária para a pesquisa no Brasil – é nas corredeiras do rio que as espécies específicas de animais vivem –, a bacia do Tapajós é também a menina dos olhos de políticos ruralistas e empresários do agronegócio, que encontram no Norte do país uma rota mais barata e rápida de escoamento de grãos que a rota de escoamento pelo Sudeste. Nesse ponto, os interesses do agronegócio e da produção de energia se encontram: as barragens das hidrelétricas elevam o nível do rio e tornam mais fácil a navegação de grandes embarcações.
É por isso que tramita na Câmara dos Deputados desde 2015 um projeto de decreto legislativo de autoria do deputado federal mato-grossense Adilton Sachetti (sem partido) que autoriza obras para a navegação nas hidrovias dos rios Tapajós, Teles Pires e Juruena, com o intuito de viabilizar o escoamento da produção de Sinop e Juína, no Mato Grosso, até o porto de Santarém, no Pará. O texto estabelece a necessidade de estudos ambientais e de consulta prévia às comunidades indígenas.
Sachetti recebeu R$ 1 milhão em doações da Cervejaria Petrópolis S.A. e de cinco pessoas que foram autuadas pelo Ibama por infrações ambientais, como aponta o cruzamento de informações no Ruralômetro. O deputado responde a duas ações penais e a um inquérito no Supremo Tribunal Federal e no Tribunal de Justiça do Mato Grosso por crimes de responsabilidade e falsidade ideológica.
Enquanto as hidrovias não são liberadas, o escoamento da produção agrícola do Mato Grosso já alcança os portos paraenses para exportação à China por estrada. A rodovia Cuiabá-Santarém (BR-163), que terá a pavimentação concluída este ano, leva os caminhões de grãos aos portos de armazenamento das empresas em Itaituba, no Pará. De lá, balsas cheias de grãos seguem para o porto de Barcarena, na região metropolitana de Belém, e alcançam o oceano Atlântico em direção à China e outros países.
“De três anos pra cá, a coisa começou a crescer de tal forma que a gente dorme e quando acorda [o porto] já tá construído”, conta Amâncio Ikõ Munduruku, auxiliar administrativo da escola indígena da Praia do Mangue, outra aldeia urbana localizada em Itaituba. Em frente à praia, a visão é de monumentais silos de armazenamento feitos de metal onde são despejadas toneladas de grãos. Já na frente da aldeia de Alessandra Korap, a Praia do Índio, veem-se seis portos. “Estão desmatando bastante”, revela. “Os pescadores são proibidos de pescar perto porque, quando eles compram a área, ninguém pode entrar sem autorização.”
Um relatório da organização ActionAid e da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) revela que o rio Tapajós deve receber mais de 20 portos privados ao longo dos próximos anos. Já o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) calcula que serão construídos 26 portos. Em entrevista, o procurador Paulo de Tarso indica a previsão de 30 portos no Tapajós. A Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará, responsável por licenciar os portos, informa por e-mail que existem oito portos em operação em Santarém, Itaituba e Miritituba e que são previstos outros sete portos na região. Segundo o levantamento do Ibase, em 2017 já estavam em operação os portos das empresas Cargill, Bunge, Hidrovias do Brasil, ADM/Atlas, Transportes Bertolini Ltda. e Cianport.
As obras e instalações portuárias no Tapajós são incentivadas também pelo polêmico Decreto dos Portos, aponta o Ibase, que rendeu a Temer um inquérito da Procuradoria-Geral da República para apurar um possível favorecimento ao Grupo Rodrimar, do setor portuário de Santos.
De acordo com informações da Procuradoria da República em Itaituba, o MPF moveu ações que pedem a revogação da concessão de licença ambiental aos portos de armazenamento ETC Miritituba e ETC HBSA Tapajós, ambos localizados em Itaituba. A Procuradoria solicita ainda uma avaliação de impacto socioambiental dos projetos somados e a consulta aos povos tradicionais. Em janeiro deste ano, o governo do Pará instituiu um Grupo de Estudos responsável por sugerir normas para realizar as consultas – prévias, livres e informadas como exige a lei – às populações tradicionais da Amazônia. O MPF, Ministério Público do estado do Pará e as defensorias públicas da União e estadual pediram em fevereiro a revogação imediata do decreto, já que ele não passou pelo processo de consulta prévia.
Ferrogrão
Em outubro do ano passado, o governo deu início a um projeto de licitação para a construção da Ferrogrão, ferrovia que, orçada em R$ 12,7 bilhões, tem capacidade de transportar 42 milhões de toneladas de grãos, unindo Sinop, no Mato Grosso, ao porto de Miritituba, no Pará. Seu traçado foi desenhado pelo grupo de empresas do setor graneleiro formado pela Amaggi (do ministro da Agricultura, Blairo Maggi), ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus e EDLP – Estação da Luz Participações. Em dezembro passado, os Munduruku denunciaram a licitação como ilegal, já que não houve consulta prévia às 19 comunidades indígenas e demais populações atingidas pela ferrovia.
O MPF já havia emitido em novembro uma nota pública cobrando do governo a consulta às comunidades afetadas, mas ainda assim o projeto seguiu adiante com termos ainda mais favoráveis aos investidores, segundo informações do O Estado de S. Paulo, a começar pelo financiamento do BNDES para até 80% do empreendimento (cerca de R$ 10 bilhões) com prazo de 25 a 30 anos para quitação. As facilidades são semelhantes àquelas dadas para grandes projetos como os estádios construídos para a Copa do Mundo, revelados como fontes de corrupção pela operação Lava Jato e motivo de rombos no orçamento público.
Por outro lado, em fevereiro, com o informe 2017/18, a Anistia Internacional denunciou o governo brasileiro por adotar medidas diversas com o objetivo de mudar o processo de demarcação de terras. Para a organização, as medidas tornam o processo “ainda mais lento e vulnerável às pressões dos proprietários rurais”. No levantamento, a organização destaca que a maioria dos assassinatos documentados de defensores e defensoras de direitos humanos no mundo todo aconteceu no Brasil.
Por tudo isso, a confiança de que o governo respeite as leis que protegem os direitos indígenas é baixa entre estes. “O que a gente espera do governo é fazer mais coisa ruim pra nós”, sentencia Juarez Saw Munduruku, cacique da aldeia Sawré Muybu. “Demarcar terra mesmo com esse governo tá difícil.”
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