Racismo não

A legitimação do racismo na Arena do Grêmio

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"Frequento os estádios do Grêmio há 28 anos e torço pelo time há ainda mais tempo, mas não posso mais compactuar com o que vejo". O racismo é ampla e irrestritamente tolerado na Arena do Grêmio, enquanto uma manifestação política pacífica no mesmo estádio é reprimida pela Brigada Militar

Pedro Guindani, via Facebook

A torcida do Grêmio canta, há cerca de 25 anos, uma música em que se refere aos torcedores do Internacional como “macacada filha da puta”, numa alusão explicitamente racista à presença outrora predominante de negros nas arquibancadas do rival. A música foi criada pela extinta Torcida Jovem, nos anos 90, numa adaptação inusitada de “Another Brick in the Wall”, e foi incorporada pela Geral do Grêmio, hoje a maior organizada do clube, que a entoa a plenos pulmões mais de uma vez a cada partida – no que é acompanhada pela maioria da massa presente à Arena: homens, mulheres, crianças.

A Geral tem pelo menos mais três canções com alusões racistas: a adaptação de “Bebendo Vinho”, de Wander Wildner, que conclui um de seus versos com “Grêmio imortal, macaco chora”; e duas músicas vertidas de torcidas argentinas: uma que tem o refrão “chora macaco imundo que nunca ganhou de ninguém” e depois alude à própria Geral como “a banda que corre os macacos do Internacional”, e outra que começa com “Macaco vai pra puta que pariu”.

O comportamento é reiterado em quase toda a história do clube, as músicas são apenas sua fixação no imaginário contemporâneo das arquibancadas. É, também, impune: exceto pelo propalado “Caso Aranha”, em 2014, em que diversos torcedores fizeram sons imitando macacos e chamaram o então goleiro do Santos de macaco, o Grêmio e sua torcida jamais sofreram qualquer punição pelo racismo.

Naquela vez, sofreu uma punição branda: foi eliminado de uma competição na qual tinha poucas chances de seguir adiante, e uma torcedora, flagrada pelas câmeras da TV, foi suspensa dos estádios e processada. As sanções foram inócuas: a torcida gremista julga-se injustiçada no caso, e alguns torcedores chegaram a incendiar a casa da torcedora filmada – não pela injúria racial, óbvio, mas por ter sido pega.

Salvo por essa pífia sanção desportiva e a nula condenação da torcedora, não há notícia de que a lei tenha buscado de alguma forma coibir o racismo gremista. Nunca houve brigadiano demandando interrupção das músicas racistas, nunca houve juiz ou promotor indiciando o clube ou suas organizadas, nunca houve sequer árbitro parando jogo ao ouvir esses horrores. O racismo é ampla e irrestritamente tolerado na Arena do Grêmio.

A lei, porém, tão omissa quanto ao reiterado racismo dos torcedores, manifestou-se de forma ágil e eficaz no último domingo, na Arena. A torcida Tribuna 77, um raro rasgo de inteligência e civilidade na bancada gremista, estendeu uma faixa onde se lia “Marielle Presente”. A Brigada Militar, porém, despertou de suas décadas de inércia e exigiu que a Tribuna retirasse a faixa. Na Arena do Grêmio, racismo é legítimo e manifestação política é proibida.

Frequento os estádios do Grêmio há 28 anos e torço pelo time há ainda mais tempo. Quando novo, pra mim era natural cantar junto com a Jovem e, depois, a Geral: afinal, somos todos gremistas, irmanados no sentimento pelo clube, e não quer dizer que eu seja racista, pois tô cantando pelo Grêmio e não por acreditar nisso. Só mais velho e um pouco menos panaca é que fui notar o óbvio: a origem racista dos cânticos ofende não só os colorados, mas sim e principalmente a todos os negros que são, em uma palavra, despidos de sua humanidade, o que remonta à abominável escravidão sofrida por seus ancestrais.

Deixei, óbvio, de acompanhar os cânticos. Nunca, porém, tive coragem de interpelar os correligionários e questioná-los: fazer isso seria, afinal, questionar algo que lamentavelmente é um símbolo do clube. Acabei, pouco a pouco, na vida adulta, me afastando dos estádios: fui só em cinco ou seis jogos na Arena, usando a distância física como pretexto pra uma distância que, na real, é moral.

Olhando de longe, na tv, não se sente a dor. Não se ouve o que se canta. Torcer fica menos confuso. Fica mais fácil valorizar iniciativas que dão orgulho de hoje, como a Tribuna, e de outrora, como a pioneira e valente Coligay, dos anos 70. Fica fácil comemorar os triunfos da fase atual.

Cometi, porém, motivado por esses triunfos, dois deslizes: fui à Goethe em 2016 comemorar o título da Copa do Brasil e a Lanús em 2017 ver o título da Libertadores. Ambos os títulos, apoteóticos depois de décadas de fracassos, acabaram com um gosto amargo no meio da alegria: em ambos, a relembrança vívida e presente do racismo em que o sentimento pelo clube é talhado me deixaram a impressão de que aquela alegria não me pertencia, pois eu não devia estar ali. A paixão que me veio de duas gerações de grandes gremistas, de repente, parecia ir em direção oposta à pessoa que sou e às ideias que defendo.

Enfim, não voltei a ir a jogos. Assisto-os em bares vazios, de preferência. Tenho dúvidas se, quando tiver filhos, instilarei neles essa ligação com o Grêmio como fez meu pai e, antes dele, meu avô, por não sentir que esse horror que está tristemente ligado a meu time deva seguir adiante. Enquanto isso, porém, sigo torcendo de longe, secando o colorado e esperando por dias em que sejamos civilizados o bastante pra preferir uma faixa de homenagem à Marielle a um cântico racista.

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