Ex-chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro descreve uma polícia que foi “criada para ser violenta e corrupta” e teria papel de “garantir uma sociedade injusta”. Para Hélio Luz, só há uma maneira de uma intervenção federal ser bem sucedida: esquecendo as ações ostensivas nas favelas e neutralizando a corrupção policial
Os diagnósticos incisivos de Hélio Luz, ex-chefe da Polícia Civil no Rio, ficaram marcados na memória de quem, há quase 20 anos, o assistiu no documentário “Notícias de Uma Guerra Particular”, descrevendo uma polícia que foi “criada para ser violenta e corrupta” e teria papel de “garantir uma sociedade injusta”.
“Como você mantém os excluídos todos sob controle, ganhando R$ 112 por mês? Com repressão”, disse aos diretores João Moreira Salles e Kátia Lund, na época em que chefiava a Polícia Civil fluminense, entre 1995 e 1997, referindo-se ao valor do salário mínimo de então.
Aos 72 anos, Luz está aposentado, afastado da vida pública e vive com a família em Porto Alegre, onde nasceu. Mas continua acompanhando de perto as notícias da guerra particular que não acaba no Rio.
Em entrevista à BBC, ele faz o esforço constante de deslocar o foco das favelas, que têm sido objeto de operações policiais e militares, e apontar o espelho de volta para as elites, para a classe média e para as forças de segurança.
“Por que cercar a favela, se o crime não está ali? O cerne da questão da insegurança não está ali. Aquilo ali é o resultado”, afirma, considerando que os “meninos que estão no tráfico” são produto da desigualdade social.
Luz considera que a intervenção federal pode trazer benefícios se deixar de lado ações ostensivas nas favelas – que equivalem a “enxugar gelo” e estigmatizam os moradores – e trabalhar para recuperar as estruturas policiais, neutralizando a ação de agentes corruptos e fazendo com que os “mocinhos” – integrantes do sistema de segurança – façam jus à designação popular.
“O problema do Rio não são os bandidos. O problema do Rio são os mocinhos. Se ele recuperar o quadro de mocinhos, ele pode dar uma atenção real ao quadro de bandidos”, afirma.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista:
Como o senhor se posiciona em relação à intervenção federal?
Eu entendo que a intervenção é constitucional. É inédita, mas é constitucional. A discussão está sendo muito reduzida ao oportunismo político de quem detém o poder. Foi uma medida oportunista? Foi, e nisso está longe de ser a primeira.
Mas acho que temos que ter uma discussão mais consequente. Estamos falando do problema de segurança da população do Rio. Há uma questão real e podemos ter uma conversa séria sobre isso.
Não vou falar no interventor, que é um cargo político, e sim no general Braga Netto, que manda no Comando Militar do Leste. O CML é o mais antigo e o mais completo arquivo de informações sobre os integrantes das polícias Civil, Militar e dos bombeiros do Estado do Rio. A troca de informação do Exército com as polícias é constante. A segunda seção das Forças Armadas sabe de tudo.
Outros comandantes do CML tiveram acesso a essas informações, mas não podiam fazer muita coisa. Agora o general tem acesso a essa inteligência e pode agir com base nela. Pode mudar o comando e mexer nas polícias. Isso é inédito.
Mas a intervenção tem data para acabar, dia 31 de dezembro. É possível resolver problemas estruturais na área de segurança?
Não, para isso, ele precisaria de mais tempo e de uma discussão mais ampla sobre um projeto de segurança. Mas ele pode recuperar a estrutura existente.
O grande problema que temos é quem executa a segurança pública. Os integrantes das polícias Militares e Civil. Se o general recuperar as estruturas internas, os agentes que provocam a insegurança ficarão limitados ao ambiente externo.
O problema do Rio não são os bandidos. O problema do Rio são os mocinhos. Se ele recuperar o quadro de mocinhos, ele pode dar uma atenção real ao quadro de bandidos.
O mocinho é o policial?
Não só o policial. São os integrantes do sistema de segurança que operam no Estado do Rio. Pode ser bombeiro, agente penitenciário, policial rodoviário. É preciso transformar o mocinho em mocinho.
Crime organizado pressupõe atuação a nível nacional, formação de um cartel e inserção nos poderes da República. O que denominam “bandidos” no Rio, e tenho ojeriza a isso, não é crime organizado. O tráfico no Rio não é cartelizado e disputa permanentemente a área geográfica. Não tem um exército ou integrantes constantes. Tem muitos problemas internos.
O pessoal não percebe que isso é um produto da sociedade. Esses meninos que estão no tráfico são um produto direto nosso, da classe média, dos detentores do poder desse país.
São um produto da desigualdade social?
São um produto da concentração de renda. E não venha me dizer que a Índia ou outros países com desigualdade não têm esse problema. Aqui é diferente, pô. O nosso nível de concentração de renda é muito alto e resulta nisso.
A favela é produto nosso. Como é que não é produto dos que detêm o poder? Como é que não é produto da classe média? É produto meu. Como é que eu tenho aposentadoria integral e não tenho responsabilidade sobre a favela? Para eu ter meus privilégios, tem que existir favela. Isso é óbvio. O dinheiro público é um só. Se eu abocanho uma maior parte, falta do outro lado. Não há saída para isso.
Ele (o general) tem condição de recuperar as estruturas policiais e beneficiar o segmento que mais sofre com essa parafernália toda, o favelado, que é estigmatizado.
Lógico que para isso ele vai precisar de um grupo de policiais civis e militares que não usem o tal do guardanapo da cabeça. Não pode. Polícia que gosta de botar guardanapo na cabeça não serve para recuperar.
O senhor está falando do ex-governador Sérgio Cabral e do famoso jantar em Paris, com a farra dos guardanapos na cabeça.
É isso. Você pode ter um guardanapo para limpar a sua boca, com dinheiro privado. Na hora que você bota o guardanapo na cabeça, é dinheiro público.
Retirar a turma do guardanapo na cabeça é difícil, mas o general pode isolá-los, neutralizá-los. Não precisam ser todos. Na hora que neutraliza uma parte considerável, o restante se enquadra.
A partir disso, ele tem condições de reduzir as ações de vigilância ostensiva que essas GLOs (operações militares para Garantia de Lei e da Ordem) fazem, com tropas nas favelas estigmatizando essas áreas. Como se o problema estivesse dentro das favelas. Não está.
Como ele tem um comando inédito do sistema, ele pode priorizar investigações integradas e coordenadas para prender os agentes externos da insegurança.
Eu tenho muita dificuldade de chamar de bandido. Aqui no Brasil, chamar o pessoal que mora na favela de bandido é de uma incoerência tremenda. O bandido brasileiro usa terno e gravata.
Se ele (o general Braga Netto) quiser aprofundar as investigações, ele vai parar nas mesas de câmbio que operam na avenida Rio Branco (no centro do Rio).
Ninguém pode imaginar que o menino da favela tenha capital o suficiente para bancar os entorpecentes que circulam ali. Quem detém o capital que financia as drogas tem uma mesa que opera câmbio na Rio Branco e um filho que frequenta bons colégios. Se o general chegar lá, aí realmente vai estar combatendo o crime e melhorando as condições de segurança do Rio.
O senhor diz que o general pode reduzir a ação ostensivas nas favelas, mas a expectativa é que essas ações possam aumentar, e semana passada vimos operações militares inclusive com fichamento de moradores.
O problema é que até agora foram operações de GLO, e elas repetem o trabalho de vigilância que a polícia já fazia.
Se ficar operando nessa linha, só vai enxugar gelo. Vai ocorrer o mesmo de sempre. O pessoal (os traficantes) se afasta porque não quer confronto, mas depois retorna.
Por que fazer uma operação para cercar uma favela, se o crime não está ali? O cerne da questão de insegurança não está ali. Aquilo ali é resultado.
Em Notícias de Uma Guerra Particular , o senhor diz que a sociedade brasileira tem a polícia que quer, que garante uma elite com privilégios e uma lei que não vale para todos. O senhor acha que isso mudou?
Essa pergunta é difícil. Acho que o Brasil que vivemos na década de 60 mudou. Tivemos avanços. Naquela época não podia se falar nada sobre um senador (sobre ações ilícitas). Hoje em dia, um senador está vulnerável.
Mas um dos grandes problemas que temos nesse país é a tolerância com a ação à margem da lei. Vivemos em um tempo em que é admitido você ficar na franja. Os atos inconstitucionais estão se normalizando. A violação à lei está sendo admitida com muita tranquilidade.
Qual é a referência que se dá ao infrator que está lá na ponta? Quando a infração é praticada pelo excluído, você chama o Exército. Quando é praticada pela classe média e pelos detentores do poder, nada.
Se a lei é para ser cumprida na favela, é para ser cumprida por todo mundo. Ou a lei vale para todos ou não vale para ninguém.
No documentário, o senhor disse que a repressão policial evitava uma explosão social, mantendo o excluído sob controle. Essa lógica prevalece?
Sim. Na África do Sul, eles colocavam cerca de arame. Aqui não precisa colocar a cerca, porque cada um sabe o seu lugar. Então para quê você vai colocar uma operação dessas cercando a favela? O crime não está ali. Entende? O cerne da questão da insegurança não está ali. Aquilo ali é resultado.
Agora, a má distribuição de renda voltou a se acirrar, a polícia não deu mais conta e teve que chamar o Exército.
O senhor fala na concentração de renda, mas isso explica o fortalecimento das facções criminosas e as crescentes disputas por territórios?
Desculpe, mas isso é uma visão que só quem tem privilégios nesse país pode ter. Porque localiza a disputa lá na ponta. “Não, não somos nós que participamos disso. São eles.” Eles quem? Os excluídos do patrimônio público. A guerra está entre eles, mas é sustentada pela turma de cima.
É preciso estabelecer uma relação entre o auxílio-moradia (benefício pago a juízes) e a parte considerável da população que não tem moradia. Essa relação causa-efeito existe nesta e em inúmeras questões.
Em todas elas, quem paga a conta no final é o favelado. Somos o país da desigualdade. E ficamos preocupados porque tem problema, entende, na senzala. Afrouxou a senzala, então agora tem que apertar de novo. Então chama o capitão do mato para dar uma solução na senzala do século 21.
O problema social está no centro da questão da favela, e a questão de segurança do Estado é uma decorrência. Quem financia a droga que está lá? É um deboche achar que o favelado tem capital suficiente para bancar a ida, vinda e perda de qualquer quantidade de entorpecentes.
Não seria o favelado que teria esse dinheiro, mas sim as facções criminosas.
Será que elas têm? Qual é a herança deixada por traficantes? Qual foi a herança deixada pelo Uê (Ernaldo Pinto de Medeiros, fundador da facção Amigos dos Amigos)? Qual é o acúmulo de todos esses chefetes que existiram?
Mas não é patrimônio acumulado, e sim de capital de giro do tráfico.
Eles não têm dinheiro acumulado. Como é que você acumula dólar? Vemos muitas simplificações quando se fala sobre o tráfico. Aí mostram a mansão do chefete que foi preso na favela. É ridículo isso. A cobertura dele é num terceiro andar com piscina na laje. Perto dos prédios que existem na Vieira Souto, na Delfim Moreira (na orla de Ipanema e Leblon). Qual é o conceito de mansão?
Fala-se que que eles acumulam dinheiro e estão bem organizados. Onde, se estão disputando boca por boca (de fumo)? Onde há crime organizado com disputa de território permanente? Não existe. Se o cara tivesse dois milhões de dólares disponíveis, ele saía da favela e ia ser rentista (risos).
Vemos sucessivos exemplos de traficantes presos que continuam a dar ordens de dentro da prisão, com o Nem da Rocinha. Como isso ainda acontece?
Essa condição quem dá é o sistema de segurança. O cara faz o controle por meio de agentes penitenciários. Ou é só o ex-governador (Sérgio Cabral) que tem acesso a uma comida especial (no presídio)? O mesmo caminho é usado no Rio, no Paraná ou em qualquer Estado. O sistema de segurança é vazado.
A classe média tem uma visão distorcida disso. Acha que a ponta está se organizando. Nada disso. É a desorganização do sistema penitenciário que permite que ordens saiam dos presídios.
Nós vivemos muito de ilusão. É muita ficção. A tomada do Alemão foi uma ilusão. O Complexo do Alemão nunca foi tomado. Mas por um momento aquilo (a operação de ocupação realizada por forças de segurança em 2010) gera uma sensação de segurança, e você se ilude.
Quem detém o controle? Quem recebe a corrupção ou o cara que paga? É o agente que recebe a corrupção. É quem recebe a grana. Se não pagar para a polícia, de duas uma, ou você se muda, ou vai para a vala.
Sem pagar a polícia, não se pratica crime no Rio de Janeiro.
Os problemas de segurança no Rio hoje não parecem muito diferentes da sua época à frente da Polícia Civil, nos anos 1990. Que perspectiva o senhor vê para o futuro?
Eu sou otimista. Acho que essas crises são crises de avanços. Não estamos em uma situação horrível. Quem viveu nos anos 60, 70 sabe que jamais se podia apontar o dedo para um senador.
Tudo que está acontecendo (os casos de corrupção) acontece há muito tempo nesse país. Sempre houve, mas agora nós sabemos. Agora vem a público. O Marcelo Odebrecht passar quase dois anos numa prisão é simbólico. A exposição do Judiciário com o caso do auxílio-moradia é simbólico.
Ainda é pouco, mas estamos avançando. Os desdobramentos são feitos à brasileira. É uma revolução republicana sem sangue. Aos poucos, a república vai se instalando.
Assista ao documentário:
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