11 anos depois da intervenção militar no México, país vivencia aumento progressivo da violência. Socióloga aponta que Rio de Janeiro corre risco de seguir o mesmo caminho
Em 10 de dezembro de 2006, menos de duas semanas após assumir a Presidência do México, Felipe Calderón, do Partido de Ação Nacional (PAN), anunciou que o governo faria uma investida contra o tráfico de drogas por meio de intervenção federal na segurança pública de Michoacán, seu estado natal.
A decisão foi tomada em reação ao surto de violência registrado a partir de 2005, com o acirramento das disputas entre cartéis de drogas. Exemplo atroz veio da Familia Michoacana, grupo responsável por episódio em que cinco cabeças decapitadas foram arremessadas em uma pista de dança em 2006.
Calderón argumentou à época que somente uma abordagem “mano dura” (punho de ferro) conseguiria reduzir o crime. Parte significativa da opinião pública, todavia, viu no decreto uma tentativa de o presidente legitimar seu mandato, conquistado por diferença mínima de votos, por meio de uma demonstração de força.
Na primeira fase da intervenção, mobilizaram-se cerca de 6.500 soldados para suplementar ou até mesmo substituir as forças policiais locais, com enfoque na “decapitação” dos cartéis (a eliminação de seus chefes). Secretaria de Segurança Pública e do Interior, procurador-geral da República, Exército e Marinha supervisionaram as ações de combate ao crime.
Tropas atuaram em áreas de Michoacán que se encontravam sob o controle do crime organizado. Soldados e policiais federais conduziram buscas e detenções, além de estabelecerem pontos de controle ao longo das principais rodovias e estradas.
Ao longo de dois meses, os habitantes da região, cansados da violência e da corrupção, receberam os quase 20 mil militares como heróis.
Mas a percepção popular logo mudou. Percebeu-se que a violência não foi contida; pelo contrário, intensificou-se e assumiu novas formas com a presença ostensiva das forças nacionais nas ruas de Michoacán.
A despeito de leve queda no início da operação militar, o número de homicídios quase dobrou no estado em uma década, chegando a 1.287 em 2016. O mesmo fenômeno verificou-se em níveis nacionais.
Desde o início da intervenção, o México já contabiliza cerca de 200 mil assassinatos, milhares de desaparecidos e violações coletivas emblemáticas, como o massacre de 43 estudantes de uma escola rural da comunidade de Ayotzinapa em 2014. Segundo o governo mexicano, os assassinatos no país subiram de 11.806, em 2006, para 25.339, em 2017 —o maior índice em 20 anos.
Sem data para terminar, a intervenção teve somente um efeito a longo prazo: o incremento da criminalidade.
Erros de estratégia
Por que a intervenção federal mexicana resultou em aumento da violência? Em primeiro lugar, a estratégia de decapitação dos cartéis revelou-se desastrosa. Quando Calderón assumiu a Presidência, Michoacán ganhava importância para o narcotráfico, tanto pela produção crescente de metanfetamina quanto por sediar o porto Lázaro Cárdenas, ponto estratégico de distribuição para os cartéis.
A proposta do governo federal era estrangular a produção e também a distribuição de drogas. Acreditava-se que eliminar os grandes traficantes enfraqueceria as organizações criminosas.
Dos 37 chefões mais procurados do país, 25 foram capturados ou mortos, o que trouxe, inicialmente, ótima repercussão midiática.
No médio prazo, contudo, a neutralização dos antigos líderes resultou na ascensão de seus subordinados e na proliferação de cartéis. Os grandes grupos de Michoacán, segundo estimativas, teriam se fragmentado em até 80 gangues menores. A atuação do governo, longe de eliminar o tráfico, provocou novas disputas em torno do mercado de metanfetaminas.
Os grupos recém-criados, mais ágeis que os antigos cartéis, expandiram sua área de atuação, iniciando extorsão de companhias mineradoras e de atividades portuárias. Muitos deles, aproveitando-se das falhas no sistema de inteligência da intervenção, passaram a alimentar novas rivalidades e disputas territoriais, recorrendo a táticas cada vez mais predatórias e violentas, inclusive tortura de civis.
Em 2010, o governador de Michoacán, Leonel Godoy Rangel, admitiu publicamente que os índices de criminalidade no estado haviam piorado desde o início da intervenção e pediu que a estratégia fosse alterada, incorporando mais investigações, por exemplo.
Nada de fato mudou e, a partir de 2013, fortaleceram-se os chamados grupos de autodefesa, compostos por cidadãos que se armaram para enfrentar o narcotráfico. Muitos deles acabaram envolvidos em confrontos entre si e são, também, acusados de cometer crimes violentos contra a população.
Houve, ademais, uma mudança na dinâmica da corrupção. Os novos cartéis passaram a demandar pagamentos dos políticos, criando um poder paralelo capaz de manipular mecanismos estatais. Integrantes ou comparsas dos traficantes assumiram postos nas administrações municipais.
A integração perversa entre o narcotráfico e o Estado contribuiu para agravar atos de violência contra políticos. Entre 2006 e 2016, quase cem prefeitos e ex-prefeitos foram assassinados. No final de 2017, oito políticos morreram a tiros em Michoacán.
Os efeitos sobre a democracia são nefastos. As taxas de violência aumentaram de tal modo que, em junho de 2011, os partidos cogitaram lançar uma candidatura única ao cargo de governador de Michoacán, para evitar eleições em clima tão inseguro. A ideia acabou descartada, e defensores de direitos humanos e jornalistas continuam alvos de execuções.
A intervenção federal mexicana também pecou por várias falhas em seu desenho institucional, como falta de transparência, planejamento fraco e uso ineficiente dos sistemas de inteligência.
O erro mais grave está na indefinição de parâmetros básicos. As operações foram conduzidas sem prazo claro e, a cada afronta, o governo federal mexicano respondia com mais soldados, sem refletir acerca de sua estratégia.
Exceção vira regra
Diante dos resultados desastrosos da intervenção, causa preocupação que o atual presidente mexicano, Enrique Peña Nieto, não apenas insista na estratégia “mano dura” como ainda se esforce para transformar a exceção em regra.
Peña Nieto promulgou em dezembro do ano passado a Lei de Segurança Interior, que regulamenta a atuação das Forças Armadas no combate ao crime organizado em nível nacional.
A lei teve sua constitucionalidade contestada e está sob análise da corte suprema mexicana. Aplicada, permitirá que as Forças Armadas, a polícia federal e os serviços de inteligência identifiquem ameaças à segurança no plano doméstico e realizem operações, inclusive de coleta de informações, junto a entidades civis.
O governo afirma que a nova legislação esclarece os parâmetros das intervenções e fortalece a confiança da população nas instituições. Outros defensores alegam que terão fim quase 12 anos de improviso das tropas que atuam sem missão ou prazo definidos.
Os críticos da medida —que incluem ONGs e organizações internacionais, tais como a ONU e a Organização dos Estados Americanos—, por sua vez, argumentam que ela tende a enfraquecer a estrutura federalista do país, pois esvazia o mandato das forças policiais, responsáveis pela segurança pública segundo a Constituição.
Também contestam a falta de mecanismos de monitoramento, inclusive civis, e a regulamentação inadequada das Forças Armadas. Para eles, a lei também reduziria a urgência de uma reforma no setor, medida estrutural sem a qual as instituições locais permanecerão incapazes de assumir a responsabilidade pela segurança.
O principal argumento desses grupos, porém, são os dados estarrecedores de violência, com abusos cometidos por agentes do Estado, incluindo tortura e execuções. Um relatório da Human Rights Watch de 2016 afirma que as forças de segurança mexicanas estão associadas à morte de milhares de pessoas e ao desaparecimento de 27 mil indivíduos desde 2006.
Cerca de metade da população de Michoacán continua a viver em condições de extrema pobreza, com acesso precário a serviços e infraestrutura. Programas governamentais com o objetivo de promover o desenvolvimento inclusivo e diversificar a base econômica de estados afetados pelo narcotráfico foram deixados de lado.
Existe um paradoxo evidente na segurança pública: embora seja um tema urgente, não pode ser resolvido a curto prazo, só com medidas e gastos em policiamento. No México e no Brasil, diversos atores, inclusive das Forças Armadas, perceberam essa contradição.
Da mesma forma que a Lei de Segurança Interior encontra resistência no intenso desconforto de muitos militares mexicanos em participar de uma guerra que julgam assimétrica, a experiência brasileira ecoa esse discurso. O general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército brasileiro, já manifestou preocupação com a intervenção no Rio.
No México, como no Brasil, é urgente alterar os próprios fundamentos econômicos e sociais que estruturam o funcionamento do tráfico de drogas. É igualmente fundamental a formulação de uma política nacional de segurança clara e bem implementada, sempre em diálogo com a sociedade civil.
Caminha-se para a perpetuação de uma solução fracassada no México. O conhecimento acumulado demonstra que uma intervenção sem metas claras, sem transparência e sem dar impulso a reformas estruturais resulta, muitas vezes, no incremento do crime violento, da corrupção e da impunidade.
Saiba mais: A intervenção militar no México foi um fracasso e deveria servir de exemplo para o Rio
Esse é o rumo a ser evitado no Rio de Janeiro. Cabe a nós brasileiros aprendermos também com as experiências alheias, tirando lições de medidas malsucedidas e desenvolvendo métodos mais democráticos, duradouros e efetivos para o grave problema da segurança pública.
Adriana Erthal Abdenur, FolhaPress
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