Servidora pública falta ao trabalho para "viajar o mundo com o marido"
Servidora e esposa de diretor da Record falta ao trabalho para viajar pelo mundo com o marido e continua recebendo dos cofres públicos
Ricardo Chapola, The Intercept | Via DCM
Raissa Caroline Lima Tavolaro é mulher do vice-presidente de jornalismo da Rede Record, Douglas Tavolaro. E costuma acompanhar o marido em diversas viagens que ele faz para o exterior – Tavolaro também é autor da biografia de Edir Macedo e frequentemente participa de reuniões e eventos por causa do livro. Entre 2016 e 2017, por exemplo, a advogada mineira esteve em Lisboa, Joanesburgo e Moçambique. Fez questão de registrar cada andança em suas redes sociais. Tudo estaria absolutamente em ordem se Raissa também não fosse funcionária da Assembleia Legislativa de São Paulo e não tivesse feito as viagens em dias nos quais ela deveria estar trabalhando.
É o que mostram, pelo menos, as fotos que a própria Raissa publicou em seu perfil público do Instagram – e que tornou privado depois que descobrimos sua conta e começamos a ir atrás da história para entender se ela é, de fato, funcionária fantasma da Assembleia.
Nós fomos investigar Raissa nas redes sociais depois de termos recebido uma denúncia. Com seu nome em mãos, confirmamos que Raissa é servidora da Alesp. Segundo o Portal de Transparência da casa, a advogada ocupa o cargo de “assessora especial parlamentar da liderança do PRB” desde o dia 11 de setembro de 2015 – com um salário bruto de R$ 15,08 mil e líquido de R$ 11,17 mil.
Depois disso, localizamos o perfil da advogada no Instagram e nos deparamos com uma série de fotos dela em viagens pelo mundo. Analisando uma a uma, percebemos que algumas foram publicadas na rede social em dias de semana, dentro de períodos em que, em teoria, a funcionária paga com dinheiro público deveria estar dando expediente no gabinete da liderança, na sede da Assembleia paulista, conforme determinação do regimento interno.
Mundo pequeno
Dia 26 de outubro de 2016. Uma quarta-feira: um dos dias mais movimentados na Assembleia e data de uma das sessões da CPI que investigou a Máfia da Merenda. Raissa deveria estar na casa tratando das atividades da bancada do PRB. Mas o Instagram da advogada dizia que ela estava em Lisboa, curtindo a vista para o Rio Tejo que seu quarto no Myriad by Sana Hotel oferecia. Na timeline de Raissa, encontramos fotos dela em Lisboa ao lado de Douglas Tavolaro até o dia 30 de outubro.
Dia 22 de novembro de 2016. Terça-feira: dia da semana em que ocorre a reunião do colégio de líderes das bancadas. Nessa mesma data, a CPI da Merenda ouviu o presidente da Cooperativa Orgânica Agrícola Familiar e o governador Geraldo Alckmin sancionou a lei que criava o Dia da Mulher Cristã Evangélica. Foi uma vitória para partidos evangélicos como o PRB, que é o braço político da Igreja Universal do Reino de Deus – liderança para a qual Raissa, em tese, trabalha. A julgar por seu Instagram, a advogada estava, no entanto, em Joanesburgo, na África do Sul. Nesse dia, a funcionária publicou uma foto do hall do The Michelangelo Hotel. No dia seguinte, postou outra, na qual aparece abraçada a um filhote de leão. Colocou três coraçõezinhos como legenda.
Dia 29 de novembro de 2016. Outra terça-feira com agenda lotada na Assembleia: prestação de contas do então secretário do Meio Ambiente Ricardo Salles, debate sobre a atualização dos valores de bolsas de residência no Estado, reunião da frente parlamentar pela habitação e sessão da comissão de transportes. Raíssa publicou uma foto de um garotinho em Moçambique e escreveu: “Foi uma honra conhecer pessoas de tanta fé, sede de viver e amor para dar!”.
A essa altura, tivemos uma dúvida: será algumas dessas viagens teriam sido feitas por Raissa durante suas férias, legalmente? Mas nossas suspeitas duraram pouco. Algumas fotos adiante na timeline, no dia 26 de dezembro de 2016, a própria advogada publicou uma imagem no Instagram ao lado de Tavolaro, duas crianças e uma jovem na escadaria da Universal Studios, na Flórida. Na legenda, escreveu: “Férias em família!!! #amoresdaminhavida”.
O Instagram da servidora revela que ela também viajou durante dias da semana em 2017. Foi em 30 de junho – uma sexta-feira – quando ela postou uma foto de um pôr-do-sol na África do Sul.
Outra hipótese seria que a servidora tivesse direito a tirar algum tipo de licença, mas descobrimos que a advogada não cumpria requisitos básicos para gozar desse benefício.
Segundo nota enviada pela assessoria técnica da Alesp, os funcionários que podem tirar licença prêmio são os que trabalham ininterruptamente por cinco anos – o que não é o caso de Raissa. Aos técnicos da Alesp, questionamos também se ela poderia realizar viagens para o exterior sendo assessora especial parlamentar. Em resposta, a Assembleia disse que “não há impedimento desde que o funcionário não esteja no exercício de suas funções” e que a viagem seja custeada “com recursos próprios”. Na prática, o que a Alesp afirma é que, se advogada estivesse em férias, ou ausente, ela poderia viajar pelo tempo que tivesse combinado com a liderança do PRB, mas não poderia receber salário por isso.
Como a advogada não estava de férias nem de licença prêmio, fomos verificar se houve algum tipo de desconto no pagamento de seus salários nos meses em que ela viajou em 2016 e 2017. De acordo com o portal da transparência da Assembleia, a advogada continuou recebendo o salário em seu valor integral e de forma constante mesmo quando seu Instagram mostrava fotos fora do país.
Reunimos todas essas datas em que Raissa publicou as fotos e procuramos a liderança do PRB na Alesp para perguntar o que constava nos cartões de ponto da funcionária nesses dias. A primeira vez que pedimos informações ao PRB na Assembleia foi em 6 de março, depois que fui pessoalmente até a Assembleia para levantar informações sobre a servidora. Era uma uma terça-feira: dia de reunião do colégio de líderes e de uma votação importante que decidiria o reajuste salarial de várias categorias do funcionalismo público paulista. Nesse dia, ligamos para o gabinete à procura de Raissa e ela não estava. Foi então que ela restringiu o acesso público ao seu perfil do Instagram, meia hora depois de termos perguntado por seu nome.
Nem na Assembleia, nem no escritório
Insistimos por três dias para saber se havia alguma justificativa para as viagens. Eram oficiais? Ela estava viajando a trabalho? Eram folgas combinadas com o partido? Se sim, por que ela recebeu salário integral?
O cartão-ponto de qualquer servidor é de caráter público e deveria ter sido prontamente repassado a quem perguntasse por ele. A liderança do partido, no entanto, nos ignorou. Mas quem nos procurou foi o próprio vice-presidente de jornalismo da Rede Record e marido da servidora, Douglas Tavolaro. Ele ligou para o meu celular às 16h29 do dia 9 de março para termos uma conversa “off the records”, segundo me disse, sobre a reportagem que eu estava fazendo a respeito de sua mulher. Aproveitei o telefonema e pedi uma entrevista com Raissa, mas Douglas afirmou que ela não iria se manifestar e nem me deu qualquer explicação sobre minhas dúvidas.
Douglas e Raissa se conheceram em 2014, se casaram em cartório em 2015 e, em dezembro de 2017, em uma cerimônia celebrada pelo bispo Edir Macedo, líder máximo da IURD, dono da Record, e de quem Tavolaro é bastante próximo. O jornalista é autor da biografia do bispo, publicada em 2007 pela editora Larousse, e co-escreveu a autobiografia de Edir Macedo, publicada em 2013. Ele é vice-presidente de jornalismo da emissora desde 2009.
Leia também:
Governo expulsa mais de 300 servidores por corrupção em 2015
Funcionário de UPA é flagrado assistindo pornografia
Temer autoriza afastamento de servidor concursado por até 6 anos sem remuneração