Foto de Marielle Franco que viralizou com comentários sobre sua morte escritos por uma historiadora portuguesa que mora no Brasil e se reivindica 'de esquerda' é uma das manifestações mais reacionárias sobre o assunto
Daniela Haj Mussi, Opera Mundi
Existe uma foto de Marielle Franco circulando, com mais de 2,3 mil curtidas e 1.770 compartilhamentos, com comentários sobre sua morte escritos por uma historiadora portuguesa que mora no Brasil e que se reivindica de esquerda. Trata-se de uma das manifestações mais reacionárias sobre o assunto que eu li, exemplar do tipo de discurso ao qual se é possível chegar quando se rejeita a centralidade da negritude e do feminismo negro nas discussões sobre a vida política brasileira hoje.
Para negar o uso do conceito de “lugar de fala”, que chama jocosamente por “treta”, o texto constrói a imagem de Marielle e dos moradores de favelas no melhor estilo “povo do abismo” de Jack London, desprovidos de qualquer forma de inteligência ou mesmo de capacidade expressiva. Em outras palavras, para negar o conceito a historiadora se vale dele em uma versão completamente mistificada e conservadora: Marielle seria um golpe de sorte, uma “mãe adolescente saída do buraco”, não poderia ser a representante legítima de um movimento autônomo dos de baixo, não teria individualidade política alguma. Em seguida, o texto articula o espaço de fala dos jovens de classe média, os brancos, como aqueles que deveriam começar a se mover, “tomar as dores” dos pretos humilhados e sem capacidade política própria. O texto é puro “lugar de fala”, já que não se trata do lugar de fala enquanto espacialidade e subjetividade contraditórias e históricas, mas como lugar subjetivo construído a priori e abstratamente.
O texto é tão violento em sua investida contra a categoria analítica, que termina por abraçar-se com ela e absolutizá-la em uma narrativa “engajada” mas conservadora (e tal engajamento parece encontrar seu público).
Esse é um excelente exemplo, cristalino, do problema político dos intelectuais. Todo/a intelectual está conectado/a a lutas e grupos sociais específicos, por escolha, por vivência ou pelos dois. O que não existe é intelectualidade “desconectada”. Contudo, muitas vezes os/as intelectuais se negam a reconhecer suas conexões sociais, acreditando ser possível existir apenas como “intelectual”, como crítico de conceitos tomados “em si”, sem história. Esta é uma atitude típica, aliás, da intelectualidade nascida e formada em meios culturais “tradicionais”. (No caso português, isso poderia ser estudado tomando como hipótese a forte e duradoura influência da contrarreforma em certos grupos intelectuais, inclusive socialistas).
Como nenhum/a intelectual pode ser desconectado da história, já que não existe história intelectual fora da história dos grupos sociais, quanto mais “engajado/a” e ativista se torna o discurso do intelectual “puro”, mais evidentes são as conexões que este nega ou tenta esconder.
O que leva ao segundo aspecto do problema da intelectualidade brasileira hoje, tanto a acadêmica quanto a intelectualidade ativista dos partidos, organizações políticas e movimentos sociais. Trata-se de estabelecer de maneira precisa quais conexões sociais estão estabelecidas e quais precisam ser construídas. No caso das organizações políticas, isso é um problema urgente já que o que as diferencia de qualquer outra forma de associação civil é fato de que estas “elaboram os próprios componentes”. Ou seja, tem como principal característica partir do “senso comum” no qual todos nascemos e crescemos para desenvolver o “bom senso” ativista e coletivo.
Contudo, apenas molecularmente esta “função” específica pode ser realizada “fora” dos ciclos de protestos e de seus repertórios (para emprestar uma terminologia especializada). Quando realizada dentro destes ciclos, à quente, essa função se potencializa e se amplia em escala, para ser depois consolidada e racionalizada em textos, programas, documentos, etc.
Conclusão: a crise é também um momento de desenvolvimento ativo (em grande escala) de intelectualidades e subjetividades políticas novas. Quem não apostar nisso vai colher o velho, num lugar de fala há muito cantado entre nós:
“Eu é que não me sento no trono de um apartamento
Com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar.”
(*)A postagem com o texto e a foto pode ser visto aqui.
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