“Os privilégios só terão fim com o fim do direito, uma vez que são apenas variantes deste.” (Max Stirner)
“Vá, disse o pássaro, que a espécie humana não suporta muita realidade” (T.S.Eliot)
“Ninguém é igual a ninguém. Todos ser humano é um estranho ímpar” (Carlos Drummond de Andrade)
“Existe algo para a psiquê que podemos chamar de ilusão? A psiquê não se preocupa com as nossas categorias de realidade. Para ela, tudo que funciona é real” (C.G.Jung)
Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
Eu acho que é preciso continuar a acreditar na democracia, mas numa democracia que o seja de verdade. Quando eu digo que a democracia em que vivem as atuais sociedades deste mundo é uma falácia, não é para atacar a democracia, longe disso. É para dizer que isto a que chamamos democracia não o é. E que, quando o for, aperceber-nos-emos da diferença. Nós não podemos continuar a falar de democracia no plano puramente formal. Isto é, que existam eleições, um parlamento, leis, etc. Pode haver um funcionamento democrático das instituições de um país, mas eu falo de um problema muito mais importante, que é o problema do poder. E o poder, mesmo que seja uma trivialidade dizê-lo, não está nas instituições que elegemos. O poder está noutro lugar.
José Saramago, in ‘Lancelot (1997)
Os sistemas heteronômicos possibilitaram a emergência de patologias muito desconfortáveis em nossas vidas. Os sistemas heteronômicos são sistemas de poder que abrangem as formas de trabalho, a educação, e as instituições que lhes fazem fronteiras como a saúde, a psiquiatria, a política institucional, os constrangimentos de toda sorte.
Eu as chamo de quatro cavaleiros do apocalipse.
A depressão, que é fruto do arrependimento do que se fez ou não se fez no passado; a ansiedade, que é fruto da ambição de desejar o que não se pode ter ou se pode, mas não agora; a vitimização (o vitimista é um ególatra que acredita que o mundo gira ao seu redor e conspira para o seu malefício), estímulo do ego (o ego clama por justiça, mas a justiça de uma sociedade desigual é em si injusta, daí seu paradoxo), que é colocar a culpa pelos próprios problemas e fracassos nos outros, que nos causa ódio de outrem; e finalmente o empoderamento, que é jogar o direito que se tem como um poder sobre outros, gerando violência, pois esse poder é genérico.
A alternativa é a autonomia, assumir as diretrizes da tua vida com responsabilidade, abdicando do sofrimento como forma de vida, abraçando a simplicidade e recusando o poder.
Para que serve o poder? Para coisificar o outro. É a fonte primária da violência. Transformar um humano numa coisa é usurpar toda sua humanidade.
O direito poder faz parte de um conjunto de recursos para essa etapa histórica do projeto de dominação eurocêntrico.
O sistema de dominação eurocêntrico encerrou formas de viver diversas e colocou um pino uniformizador que consagrou uma única forma diante da qual todas as outras são atrasadas e devem ser superadas pelo progresso e evolução da espécie humana (especismo).
O sistema de dominação eurocêntrico teve sua genealogia na Florença do século XVI com a emergência de uma forma de estado, da centralização do papado em Roma, catolicismo, protestantismo, do surgimento de uma forma de escrita pela invenção de Gutemberg, a civilização da escrita, pelo humanismo, pelo iluminismo, pela escolarização, pelo cientificismo, pelo evolucionismo, pela eugenia, pelo nacionalismo, pelo capitalismo, pelo nazismo, pela revolução, pelo estado de bem estar social, pelos estados totalitários, pelo marxismo, pelo socialismo, pelo comunismo, pelo anarquismo, pela ideologia, pelas hierarquias verticais e horizontais, pelo individualismo, pela economia de mercado, pela democracia, pelo neoliberalismo, em uma palavra, pelo egoísmo.
Revolução copernicanica, cartesiana, industrial, russa, tecnológica são etapas dessa expansão, cada uma voltada para erradicar formas colaborativas de existir.
E qual a função de um sistema de dominação como esse? Simples, porém muito complicado: dividir os homens em gerações e eliminar qualquer vestígio de linhagens tradicionais e dividir os homens em nações e torná-los inimigos, transformar os homens em dependentes do trabalho e fazer com que realizem o que é importante para esse sistema sem a necessidade do uso da força, ou seja, naturalizar a desigualdade entre os homens. O capitalismo é um sistema de desigualdade.
As quatro formas de estado que surgiram na modernidade dão as tonalidades do avanço do poder: estado monocrático, ou absolutista, em que o poder está nas mãos de um; estado aristocrático, ou estado classista, em que o poder está nas mãos de poucos; estado burocrático, ou estados totalitários, em que o poder está nas mãos de muitos; e estado democrático, em que o poder está nas mãos de todos. A resistência à dominação foi sendo vencida não pelas elaborações de formas de opressão, mas pela aliança, pela doação de poder.
Essa etapa, mais conhecida pelo condinome neoliberalismo, sem nenhuma dúvida é a forma mais avançada do capitalismo, em que a desigualdade é mais profunda, em que a resistência, em suas diversas formas, foi praticamente abolida, em que a crítica ao sistema é nula e de difícil formulação. O consumismo que é uma pauta presente nos protocolos neoliberais, com as facilidades de crédito, fez com que a equação da dominação se consumasse com raras exceções.
É nesse cenário que o direito poder foi concebido e sua distribuição está na mesma dimensão da substituição do empregado pelo colaborador.
Por quê colaborar com um sistema injusto?
A passividade com que aceitam as naturalizações da desigualdade só é inversamente proporcional à violência necessária para essa mesma naturalização, violência impetrada por todos contra todos (só no Brasil, são assassinados mais de 400 seres humanos todos os dias. Uma guerra civil sem precedentes no mundo).
E vivemos a plenitude democrática e uma verdadeira sociedade de diretos igualmente plenos. Essa aparente contradição precisa ser desvelada.
Vivemos um tempo em que as patologias sociais estão na moda: depressão, ansiedade, vitimização e empoderamento são as expressões exteriores dessas patologias. Mas é preciso aprofundar para entendermos os mecanismos ocultos dessas endemias.
Tratarei aqui do empoderamento como uma ferramente de ódio e violência entre humanos.
O surgimento do empoderamento coincide com o aparecimento em nossa sociedade do modelo neoliberal. É verdade que Paulo Freire havia já alguns anos antes demandado o uma adaptação do termo em inglês Empowerment significando “dar poder” a alguém para realizar uma tarefa sem precisar da permissão de outras pessoas, o conceito de Empoderamento em Paulo Freire segue uma lógica só aparentemente diferente. Para o educador, a pessoa, grupo ou instituição empoderada é aquela que realiza, por si mesma, as mudanças e ações que a levam a evoluir e se fortalecer. Nos inícios dos anos 90, uma série de dispositivos legais foram criados e comemorados por quantos se beneficiavam deles. Era um presente dos deuses, a caixa de Pandora.
O direito do consumidor foi normatizado e implementado pela aprovação do código de defesa do consumidor em setembro de 1990; o estatuto da criança e do adolescente é do mesmo ano; a lei contra o racismo é de 1989; a lei maria da penha é de 2006; o estatuto do idoso é de 2003; todos esses dispositivos são conhecidos como direito poder.
Todos esses dispositivos atingiram grupos sociais historicamente desprivilegiados das estruturas de poder do sistema patriarcal envelhecido. Fruto de uma profunda crise da autoridade, surgiram como uma dádiva ou como fruto de lutas por direitos. Esse esfacelamento da autoridade encerrava a formulação de Hobbes (auctoritas, no veritas legem, “é a autoridade, não a verdade, que faz a lei”).
Na plenitude do estado de direito, não é mais a autoridade que faz a lei, mas a democratização do poder como expressão do direito. O preço da soberania do povo é justamente o direito subjetivo como uma nova forma de poder. Poder subjetivo de uso indelicadamente preciso. O povo atinge o estado pleno de soberania.
De acordo com Jean Bodin, soberania refere-se à entidade que não conhece superior na ordem externa nem igual na ordem interna. Nas estritas palavras do renascentista francês, “a soberania é o poder absoluto e perpétuo de um Estado-Nação“.
A soberania, nessas condições, é despótica. Em sua aparência, é oclocracia, o poder da multidão, verdadeira configuração democrática.
A partir de agora, a soberania do povo é tirânica, só pode ser, para preservar o poder e a estabilidade da desigualdade que avança sem freios. Não à toa muitos sentem saudades de ditaduras. Metaforicamente, seria como se a democratização do poder blindasse as elites pela naturalização de sua posição. Em seu aparente desaparecimento, os estamentos se consolidam.
Vamos entender o funcionamento do direito poder como agente dessa consolidação.
Diferentemente dos outros recursos jurídicos, o direito poder é bastante eficaz. Exemplos dos direitos constitucionais, que não podem ser demandados, tais como o direito ao trabalho, à dignidade, à habitação, etc.
O direto poder está intimamente ligado às formas democráticas do final do século XX, em que o estado de direito deve ser pleno.
Numa das vertentes para a gestão democrática estão as poliarquias; na outra, a democracia participativa, muito mais interessante, do ponto de vista das repercussões, do que a democracia representativa.
O direito poder tem duas conformações eficientes: de um lado, a cobrança por direito nele estabelecida. Direito do consumidor, estatuto da criança e do adolescente, direito contra injúria, proteção à mulher, cotas raciais, proteção ao idoso.
Nesse sentido, o direito poder encontra respaldo jurídico para sua realização plena. Nesse sentido é uma compensação e um privilégio.
Mas no outro extremo do direito poder está o poder e como seu usuário utiliza esse poder.
Se na sua forma jurídica de direito há respaldo e sustentação, na utilização do poder há também eficiência.
Mas o uso do poder estabelece contra quem ele pode ser efetivado: contra o igual, sempre. Aqui a soberania monta sua fortaleza, pois não há iguais no uso da soberania.
O direito poder foi concebido para empoderar os até então fracos sociais, e aqui devemos colocar aspas.
Democratização do poder?
Crianças, mulheres, negros, consumidores, velhos, que até então sofriam com o abuso e o descaso, encontraram nesse conjunto de direitos acolhida contra seus opressores.
Mas também receberam a dádiva de utilizar tais ferramentas como compensação de poder extra, ou até então inexistente.
A questão importante é que na prática esses contra quem utilizam o poder são também seus equivalentes sociais.
São brancos, hétero, adultos, pais, e em todos, as expressões são de rancor por um passado supostamente vivenciado pelas novas gerações empoderadas.
Se, enquanto estiveram na posição de vítimas, cultivaram o ódio, agora, na posição de algozes, são violentos e cruéis.
A equação do direito poder é racionalmente vivaz. Investidos do direito, que também é direito à retribuição, que está depositado num passado supostamente histórico e verdadeiro, portanto, inflado de lutas em favor de sua institucionalização, lutas estas que também são imaginadas, pois o direito poder, com exceção de algumas questões muito pontuais, foi uma dádiva democrática do legislador, essas compensações, portanto, encontram sujeitos que embora não tenham nunca vivenciado nem a luta nem a injúria, podem agora reivindicar um lugar na história das vítimas e, portanto, utilizar o poder disponível com toda razão histórica disponível.
A relação tensa entre o direito e o poder faz desaparecer a história em nome de uma justiça natural, muito embora todo o poder seja direcionado contra os iguais da sociedade desigual, aprofundando assim a desigualdade.
Claro está que esse poder não pode ser direcionado contra as elites dominantes. Aí eles não encontram nenhum respaldo. Até porque as elites dominantes são inacessíveis. É um poder subjetivo e só se torna eficaz diante de outras subjetividades, quando recriam novas hierarquias opressivas.
É empoderamento como há o colaborador. Uma espécie de divertimento para a distancia que se encontra entre o trabalhador subalterno e o colaborador subalterno. Se um é obrigado a cumprir certos protocolos porque o gerente o obriga, o outro encontra na missão da empresa e no árido mercado de trabalho as motivações para colaborar sem que se precise obrigá-lo a isso. Suas dívidas são suficientes para mantê-lo sob estrito controle auto imposto.
Da mesma forma, o fraco social empoderado se torna um vigilante dos valores que lhe foram investidos.
Exemplos suficientes não faltam.
Usuários de cotas sociais investem contra todos aqueles que não compartilham o mesmo fenótipo que serviu para o benefício. Feministas ferozes investem contra héteros, brancos como se essa característica fosse sintoma de paternalismo e de opressão. Crianças denunciam os pais por deslizes geracionais tradicionais, como a palmada e outros detalhes inadmissíveis nesse tempo de empoderamento.
Mas o resultado dessa contenda em si nova é que no nível da subjetividade, dentro do lar ou nas ruas, esse empoderamento também gera reações violentas. O número de mulheres mortas depois da lei maria da penha aumentou vertiginosamente. E não são as denúncias de abuso só que aumentaram. Assassinatos são estatísticas inquestionáveis.
Os crimes de homofobia também aumentaram depois dos sistemas de empoderamentos.
Os territórios estão agora em disputas. As forças conservadoras reagem ao empoderamento, ao jogo de poder permissivo. Quase não dá para saber como era antes disso, pois o passado se revela como um conjunto de cicatrizes que agora foram abertas para a luta.
O resultado é um massacre, uma guerra civil sem juízo. Todo mundo tem razão. Um justiciamento com propósito. Dividir para conquistar.
O direito poder beneficia a estrutura desigual, não resta dúvida. Não traz justiça, nem compensação, mas coloca os que estão no mesmo nível social em confronto. Estamos no território do fascismo quando evocamos o empoderamento. Tem sua manifestação primeira no fascismo.
No museu do holocausto uma placa denuncia o fascismo em termos muito próximos dessa discussão:
Esse cartaz está afixado no museu do Holocausto em Washington, para alertar as pessoas sobre os perigos do fascismo e como identificar seus primeiros sinais.
1. Empoderamento nacionalista contínuo.
2. Desdém por direitos humanos.
3. Identificação do inimigo como causa unificadora.
4. Supremacia militar.
5. Sexismo desenfreado.
6. Controle de mídias de massa.
7. Obsessão com segurança nacional.
8. Governo e religião interligados.
9. Poder/direitos corporativistas protegidos.
10. Poder/direitos de trabalhadores suprimidos.
11. Desdém pelos intelectuais e pelas artes.
12. Obsessão por crime e punição.
13. Corrupção e nepotismo desenfreado.
14. Eleições fraudulentas.
Somos todos fascistas?
Esses elementos são fundamentos do velho fascismo, mas podem ser atualizados para compreendermos o novo fascismo. Sempre que estão disponíveis aos indivíduos democráticos e são por eles manuseados, o fascismo emerge. Pouco importa se entendem isso ou não.
“O inimigo maior, o adversário estratégico, é o fascismo. E não somente o fascismo histórico de Hitler e de Mussolini – que tão bem souberam mobilizar e utilizar o desejo das massas -, mas o fascismo que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora”, Michel Foucault.
Todo fascista tem razão e sabe onde mora a verdade. Para o fascista não há diferença, só desigualdade. Portanto, nunca é possível estabelecer algum diálogo. Ou a igualdade, entre os fascistas, pois todos pensam igual. O que define essa igualdade? O poder da verdade que pronunciam juntos. O fascismo é também a face de Janus, um espelhamento autofágico. O gatilho que dispara sua emergência é sempre o poder, seu uso, mesmo inadvertido, seu uso como direito. O direito poder.
Então a bússola moral se alinha para afirmar o que é o certo, o que é verdadeiro, o que deve ser proscrito, substituído, prescrito e seguido por todos. O ponto sinóptico que deveria ser variável, agora é duro, inflexível, luminoso: o panóptico ressurge em permanente vigília com seus novos vigilantes.
Nas velhas hierarquias as pessoas “sabiam bem o seu lugar”. Com o empoderamento, assumem outro lugar, que por sua natureza, ameaça o velho poder, o afronta, o desafia, o confronta.
O poder das velhas castas, embora exaurido, sem mais a autoridade que lhes autoriza a praticar a injúria legalmente, sentem o momento de alinharem suas hostes e impor a velha força e recolocar no seu lugar os importunos. Janus sorri, feliz.
As duas vertentes do direito poder atuam de modo distinto. Quando se demanda o direito, a relação é institucional, ou seja, quando injuriado, o prejudicado (negro, mulher, criança, consumidor) encaminha no órgão competente (delegacia da mulher, denuncia de racismo, abuso, etc.) e há repercussão nessa denúncia, ou seja, salvo incompetência do agente institucional, o assunto será levado adiante.
Quando se utiliza do poder disponível, contudo, o sujeito de poder só pode fazê-lo intersubjetivamente, só coloca em funcionamento o seu poder contra o outro, o diferente, agora também desigual. E também há repercussão. Ser acusado de homofóbico, de machista, de racista é sempre uma exposição pública.
Ora, essa exposição se dá justamente no controle absoluto da fala. Então, o politicamente correto se torna o dicionário dos vigilantes empoderados. Qualquer vestígio, qualquer interpretação cruzada é motivo para a exposição daquele que ousou afrontar o empoderado.
Os velhos poderes, os novos poderes. Inaugurado um novo território de lutas, os velhos poderes também se agigantam e matam. Segundo Luis Mir, dos 60 mil assassinatos anuais ocorridos no país, mais de 70% são de assassinos e vítimas que nunca tiveram passagem pela polícia. É o humano comum o protagonista da guerra civil. E é também ele a vítima.
Aqui a questão democrática é relevante. Diante do fracasso democrático pós anos noventa, em que a democracia teve que se adaptar com o governo global neoliberal, em que a expansão democrática é exportada pela força das armas fazendo emergir o individualismo democrático com a força do empoderamento crescente pelos mecanismos do direito poder, encontramos um teto histórico que precisa ser melhor compreendido para não mergulharmos no fim da história e das ideologias, essa falácia.
Enfrentamos as forças do individualismo democrático que é ainda heteronômico, aprisionado nas forças simbólicas apenas falsamente fragmentárias, mas que uniformizam os indivíduos em escalas inesperadas de heteronomia.
Os discursos que atualizam a função do colaborador imaginando que a interdependência das corporações e de seus agentes microscópicos é um arremedo de autonomia, demonizando a independência como atributo do caos devem ser melhor mapeados.
Chegamos no tempo da autonomia, da independência, do caos e da colaboração.
Um outro ethos deve ser imaginado.
O ethos da dominação eurocêntrica é hierárquico, o que equivale a afirmar que a desigualdade é natural nas sociedades contemporâneas.
O caos, por outro lado, emite sinais de indeterminação e pode promover encontros entre sujeitos autônomos que compartilham destinos inesperados.
Exemplo dessa forma de autonomia posso dar de minha própria lavra.
Claro que isso tem a ver com o livre arbítrio, heresia, escolhas de cada um de nós no final das contas.
O livre arbítrio é uma região. Mas ao mesmo tempo é um sentimento e um propósito. Um sentimento de que a tua vida é realmente da tua conta e risco, de que tudo que acontecer é culpa e responsabilidade tua e de mais ninguém. Ter a vida nas mãos é um sentimento único e intransferível. Mas também é um propósito, já que todos os sistemas existem para retirar o teu arbítrio e para aprisioná-lo em compromissos escusos (heteronomia).
Escuso é um termo que supõe obscuridade, falta de transparência, de entendimento. É um lugar recôndito, que não quer se mostrar, um lugar com vontade. Nesse lugar se trama a heteronomia. Todos os sistemas são heteronômicos. Emana a heteronomia para que você se isente de usar teu arbítrio. E quando você não usa teu arbítrio já está aprisionado nas teias da heteronomia.
Heteronomia é equivalente a abdicar do teu arbítrio porque é se submeter a regras e valores externos a ti. Heteronomia é viver eternamente sob alguma tutela. Tua vida não é tua, mas de outrem.
Somos solicitados desde cedo a ceder nosso arbítrio. Nascemos com o livre arbítrio, mas aos poucos e insistentemente o deixamos no fundo de nosso ser, soterrado pelas regras e pilastras da heteronomia. De tal sorte que passamos a viver melhor sob essas ordens. Nos sentimos confortáveis assim.
Como uso o meu livre arbítrio?
Isso acontece porque o livre arbítrio é uma zona de autonomia. Um lugar no coração e na mente que pode extravasar para fora do ser e se manifestar como um incômodo para os sistemas. A autonomia provoca esse incômodo pois deixa ver para todos que vivem sob as ordens de outrem que a liberdade existe e se manifesta. Para os heteronômicos, a liberdade é uma afronta. A liberdade se manifesta na capacidade de escolher entre a autonomia e a heteronomia. Uma vez que a heteronomia é parte de um processo longo de aclimatação, geralmente a escolha não é sequer concebida e o sentimento de vislumbrar alguém livre ofende por incompreensão e por tocar no sentimento de submissão.
Sentir-se submisso é avassalador. A reação é muito rápida: reprova-se a autonomia como se fosse um crime contra nossa humanidade.
Mas veja que esse é um artifício paradoxal, já que a heteronomia desumaniza o humano ao reduzi-lo a um ser que por princípio não pode pensar livremente. Não pode exercer e vibrar sua autonomia, região das escolhas.
A heteronomia é privada enquanto a autonomia é pública. A heteronomia é normatizada como o normal, a norma, e vivenciar a normalidade é viver dentro de uma forma peculiar de aprisionamento, a prisão euclidiana da razão. A heteronomia é a própria racionalidade, soberania do homem nesse tempo histórico preciso. A racionalidade normatiza tudo e todos. E vive dentro de nós como se fosse nossa peculiaridade. Nos exaltamos nela, intimamente. Nos orgulhamos de pertencer a essa humanidade racional, pensante, obediente. As vezes até nos insurgimos, gritamos revolução, protestamos contra as instituições de poder que vibram a heteronomia. Nada disso muda nada, exceto, talvez, um gosto de que podemos fazer o que quisermos com nossas vidas. Mas tudo continua exatamente igual depois que passa a rebeldia. É um estado de latência. Precisamos extravasar o peso da eterna obediência. Seguir as regras de outrem é cansativo. Ainda que não nos demos conta disso. Essa normalidade é patológica. Depressão, ansiedade, vitimização, empoderamento são seus corolários. Sofrimento é seu imperativo. Mas como todo sofrimento, nos encolhemos com ele, sobre ele, como uma concha que diante do grão de areia dolorido, constrói uma pérola durante uma vida inteira e é abatida justamente por ter vivido a camuflar seus sofrimentos.
A autonomia é uma região, pois todos que estão à sua volta sentem seu bem-estar. É uma forma intensa de felicidade a autodeterminação e contagia. Ela afronta os sofredores. A autonomia é uma região em constante deslocamento, em persistente conexão com tudo e todos.
Lança seus fios de abraços impunemente. Claro que quem recebe esses eflúvios ora acaricia a generosidade ora denuncia o afastamento.
Mas não fica nunca indiferente.
Vivo na autonomia há muito tempo. A heteronomia sempre me incomodou. Então fui buscando às cegas uma forma de viver melhor longe desse incômodo. Um dia entendi que nasci pra ser autônomo.
E passei a viver nessa jornada cada vez com maior tranquilidade. Não nego que passei da incompreensão íntima e pessoal para a incompreensão dos outros, acionando seus preconceitos contra minha forma arbitrária de viver. Até que também passei a não mais me incomodar com nada.
Como professor, sou o arauto da autonomia. Ela me define. É, portanto, parte de meu propósito como professor. Uso a autonomia internamente e também externamente, nas minhas relações educacionais.
Aqueles que vivem sob essa influência ficam confusos. Pois a autonomia que é minha solicita também a autonomia de cada um. Mas vivem mergulhados na heteronomia. Só fazem o que tem a fazer sob alguma pressão. Pressão da chamada no diário, pressão do conteúdo confirmado, pressão de avaliações.
Eu, que sou nutridor e irradiador da autonomia não posso operar com a heteronomia pois isso me vilipendia. Aquele que vive no território da autonomia vive absolutamente com essa forma enraizada de significados. Não pode de maneira nenhuma ser o que emite ordens, regras, formulários. Não aceita ser o bedel do estado, o que obriga cada um a fazer o que tem que ser feito. Vivencia sua autonomia na conexão com todos.
Os outros, bem, lidam com a autonomia minha com dificuldades, pois estão habituados às regras e denúncias da heteronomia. São já porta vozes e replicadores das ordens. Querem as regras e as suas repercussões. Querem a punição para quem não segue as regras. Mas como não existem regras, ficam desconcertados e emitem sinais de desconforto.
Autonomia de quem?
Então temos duas situações distintas quando o território da autonomia encontra o território da educação formal: os que usam sua própria autonomia de modo a se afastar do ambiente hostil; e os que sentem-se injustiçados por cumprirem regras internas, das vozes heteronômicas que vibram naturalmente dentro de si. Acreditam que alguma forma arbitrária de autoridade deve ser imunizada para punir os que escaparam do compromisso proposto por mim.
Não aceitam que à autonomia que manifesto, uma parte simplesmente recuse o compromisso e evada do território, lugar de desconforto também para eles. Os que ficam, municiados por suas ordenações internas, não entendem por que fazem os deveres, se outros se recusam impunemente.
Mas independente disso, durante o percurso experimentam da conexão com a autonomia e isso é uma novidade em suas vidas. Nunca haviam provado disso e embora condenem por razões diversas, experienciam do sentimento que se estende a cada um, sentimento de abraço fraterno, de independência, de pertencimento. Sem adulação, sem mimimi, sem cuidado, pois a autonomia é da ordem política e não admite preocupação com os conflitos que provoca. Segue alimentando seu território despreocupadamente.
Por razões óbvias, o sentimento conflituoso no campo da autonomia é sempre desconfortável, já que a heteronomia é a expressão do conforto, do hábito, da normatização.
Lutando contra o enraizamento da autonomia, cada um se previne como pode, mas o contágio é poderoso demais e reflete no pensamento o tempo todo, ativando os neurônios com uma luminescência transbordante. Ali se hospedarão seus filhotes e provocarão uma luta interna vigorosa. Um dia se alastram por todo o organismo e decretam a falência da heteronomia que, como um vampiro prosaico, escorre do organismo para o chão frio de cimento.
Eu, que cultivo o território da autonomia, sigo tranquilo. Os que somem da sala de aula pautados por uma ordem interior que lhes diz “fujam”, “há coisas mais importantes a fazer”, “descanse”, são incapazes de tocar em minha autonomia que, de outra maneira, seria heteronomia se quisesse perseguir alguma resposta, algum resultado esperado. A autonomia é nutridora do pensamento do caos, da imprevisibilidade portanto. A autonomia é inimiga do ego e sem o ego a ser ferido, nada há a ser atingido. Os que reclamam de serem injustiçados com o peso leve com que recompenso a todos, sofrem de um desconforto moral que é deles, como um tesouro do espírito e também não podem atingir nada em mim.
Ser autônomo não depende de ninguém mais a não ser de mim. É uma decisão e um cultivo íntimo e embora os sinais que emito por vezes se confundam com incompetência, com excesso de generosidade, com injustiça, entendo que tudo isso faz parte de um caminho que é dos outros, não o meu. Sigo tranquilo pois as ervas, as frutas, as folhagens que crescem no meu território são suficientes para me nutrir generosamente e para nutrir todos que entram em contato comigo, embora não compreendam bem como tudo isso funciona.
O termo livre arbítrio significa exatamente isso: possibilidade de decidir, escolher em função da própria vontade, isenta de qualquer condicionamento, motivo ou causa determinante.
Posso explicar isso de uma maneira um pouco diferente que talvez faça mais sentido.
Dentro das instituições, o que funciona, via de regra, é a heteronomia, ou seja, fazer aquilo que outros mandam, ou que a missão da empresa determina, ou o que já é consagrado pela inércia e pela tradição (como a escola, por exemplo).
Mas isso engloba muitas coisas. No cenário da instituição existem as tarefas e as relações. As tarefas, geralmente, são a base das relações institucionais. Elas, no entanto, podem carregar outros valores que não os esperados pelas instituições.
Podemos realizar bem nossas tarefas e entretanto podemos criar uma rede colaborativa cujo valor é o respeito e a aceitação integral do outro, com seus defeitos e maravilhas, acolhendo e cuidando daqueles que estão ao nosso redor.
Nesse sentido, trocamos o valor da relação institucional por uma forma de conexão horizontal e inesperada. Essa decisão só depende de nós mesmos.
Pode ser que no processo longo da experiência da conexão, as tarefas se tornem menos importante que as conexões. Então o valor muda radicalmente e a autonomia começa a estabelecer um sutil deslocamento. As tarefas passam a ser um pretexto para viabilizar esse novo valor da conexão não vertical. O curioso é que com esse novo valor, podemos realizar as tarefas com menos esforço e mais fluência e vamos nos movendo para que o valor da conexão se torne excelência.
Subversão pode ser pacífica?
Aí começamos a subverter a razão institucional que é instrumental, pois na base de toda instituição repousa a hierarquia e os desdobramentos da dominação.
Mas esse novo valor tece no interior mesmo da instituição a solidariedade e a colaboração, ou seja, a conexão virtuosa que humaniza um ambiente desumanizador. Nesse sentido estamos subvertendo a instituição, sem que os senhores da heteronomia se deem conta disso, pois as tarefas estão sendo realizados e todos estão felizes, inclusive eles.
O curioso é que todos tem essa autonomia, mas como a função da instituição de produzir desigualdade e poder é tida como natural, ninguém ousa estabelecer outras formas de relação que não a desigual.
Acreditamos que a ordem institucional hierárquica é natural, pois a experimentamos desde cedo na instituição da família, da escola e por fim do trabalho e a reproduzimos depois com nossos filhos e em nossas vidas sem questionarmos.
Mas ao mudar a forma da relação pela conexão horizontal e humanizadora tudo muda, pois a ordem do poder é bem frágil, ao contrário do que imaginamos e toda a alteração advinda da mudança da percepção é totalmente invisível para os vigilantes do poder.
Percebemos o mundo e a realidade de acordo com experiências muito coordenadas e que moldam nossa visão de mundo. Mas ao perceber o mundo e a vida como uma teia de conexões que liga humanos, animais, plantas, pedras e a espiritualidade numa rede omnienglobante, a resultante é que o mundo todo muda de uma forma gigantesca.
Quem vê o mundo da forma habitual só vê vitimização, sofrimento, desumanidade e poder.
Quem, ao contrário, utiliza sua autonomia para tecer as conexões aqui descritas, se torna invencível, pois ninguém mais o submete já que a forma com que nos ligamos ao mundo passou por uma heresia, termo que significa escolha: tecer conexões não mais pautados pela oferta do poder.
A escolha que precisa ser efetuada no cenário fascista que esse tempo nos convida é abdicar do livre exercício do poder.
Eliminar o anelo do poder que o direito poder carrega é um ato político gigantesco, pois utiliza as artimanhas da dominação para tirar dos sistemas nacos de possibilidades sem a contrapartida da tirania e da dominação, que esse mesmo exercício nos exige.
Quando um policial atira num jovem negro, não é o estado que autoriza o crime. As contas são subjetivas e dentre as inúmeras variáveis também devem ser consideradas o empoderamento desse policial. Quando um grupo de jovens negros que ingressaram pela via das cotas numa universidade cobram o justiciamento de jovens cuja tez não seja adequada ao direito demandado, o faz pautado num comportamento de quem está investido do direito de julgar e condenar, sem o auxílio da estrutura para tanto. Quando as curvas de assassinato de mulheres crescem exponencialmente depois da implementação da lei maria da penha, e veja, as estatísticas de feminicídio e não as denúncias, é preciso procurar no efeito que o empoderamento feminino gera entre as famílias de tradição patriarcal.
E, embora o Brasil ainda não tenha uma legislação que criminalize atos de homofobia, o empoderamento também atendeu esse grupo social e registra hoje o maior número de crimes homofóbicos em todo o mundo.
Quando sistemas legais atuam para promover posturas fascistas, o fascismo engrandece em todas as frentes e o resultado é um encadeamento de sintomas patológicos: arrependidos pelo passado, nos tornamos depressivos; ansiosos por um futuro distópico, nos encharcamos de ansiolíticos; incapazes de assumir nossa própria vida, nos sentimos como eternas vítimas sociais de todo tipo de incompetência e o ódio assume sua forma mais dura, quando atinge os humanos em sua frustração. Daí, a violência gerada pelo empoderamento é avassaladora, pois é sempre jogada do fascio, um conjunto de varas juntas, que não quebram (historicamente legitimados), contra o outro. Primeiro pela linguagem: racista, homofóbico, machista, etc., pronunciadas diante da menor suspeita, como uma vingança histórica. Então o homem adulto, branco, hetero, etc é a figura mais odiada, pois contém em si todos os vestígios do agressor clássico contra o qual se insurgem os empoderados. Os velhos fascistas reassumem seus lugares históricos e bradam suas lâminas.
Os projetos de arianização nazistas, os camisas pretas fascistas italianos, a juventude para a qual era direcionado esse empoderamento nos anos trinta do século passado, foram estratégias para estabelecer uma percepção de que existem nós e eles entre os próximos e que o nós e melhor que o eles e que o nós precisamos punir o eles, matar o eles, exterminar o eles. Bom, lá nós pudemos testemunhar o resultado. Aqui estamos chegando rápido e uma forma de luta social tátil, presente, dentro de escolas, no quarteirão, dentro de casa.
Juventude, onde?
A juventude é a faixa mais suscetível aos apelos do empoderamento, justamente porque está num trânsito geracional que o poder seduz com facilidade. Mesmo na crise de autoridade, é o grupo em que os sistemas de autoridade são mais sensíveis, problematizando relação com pais, professores, patrões, mas não só: relações entre amigos, bulling, namoros, insegurança, dificuldades com afeição, dentre tantos outros problemas dos relacionamentos.
O sentimento de impotência diante da vida faz com que mais facilmente se apeguem ao clima fascista do empoderamento. Parece que a leitura psicológica do empoderamento é uma resposta à impotência. Esse é um paradoxo do empoderamento, pois a impotência diante da vida continua plena para todos aqueles que não aceitam a autonomia e o empoderamento é apenas um paliativo contra seus semelhantes, criando uma ilusão de pertencimento, de atitude política, de crítica social validada pelo uso da força em direção ao outro.
É a plena maturidade do sistema de dominação eurocêntrico, quando os dominados, empoderados, defendem os valores da morte e do extermínio contra o seu próximo.
Assim, o sistema de dominação erradicou todas as forças que poderiam lhe fazer resistência normatizando completamente as forças da vida, leucemizando as energias de eros.
A relação entre democracia e extrema desigualdade só pode estabilizar com violência. O fosso social brasileiro é o maior do mundo (Seis brasileiros concentram a mesma riqueza que a metade da população mais pobre; estudo da Oxfam revela que os 5% mais ricos detêm mesma fatia de renda que outros 95%; mulheres ganharão como homens só em 2047, e os negros como os brancos em 2089) e isso explica porque aqui a violência é a maior do mundo. E isso não tem relação entre pobreza e violência. Mas tem a ver com pobreza e repressão. E tem muita relação com os valores da classe média: competitividade, indiferença, egoísmo, alheamento social, pensamento dicotômico, dentre outros.
Janus é o deus da dupla face. Não há como aceitar uma sem a outra. E aqui compreendemos como fechar uma equação que se apresenta como irresolvível: como ordenar uma sociedade desigual sem a presença da autoridade: com soberania, fundando uma democracia dos pequenos tiranos.
O sistema de dominação eurocêntrico é o elogio de thanatos, o deus da morte. Quando as forças da morte, o preconceito, o ódio, a violência prevalecem, a vitória está completa.
Jung afirmava de modo bem sabido: ONDE O AMOR IMPERA, NÃO HÁ DESEJO DE PODER; E ONDE O PODER PREDOMINA, HÁ FALTA DE AMOR. UM É A SOMBRA DO OUTRO.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade do Sul da Bahia, permacultor e colaborou para Pragmatismo Político
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