FBI ajuda a solucionar mistério de 4 mil anos através de um dente. Durante vários anos, outras equipes de cientistas tentaram sem sucesso resolver o caso
Nicholas St. Fleur, The New York Times
Em 1915, uma equipe de arqueólogos dos Estados Unidos que escavava a antiga necrópole egípcia de Deir el-Bersha, descobriu uma tumba escondida. Dentro da câmara de rocha calcária, eles foram recebidos por uma visão horrível: a cabeça de uma múmia decepada em um caixão de cedro.
O aposento, que foi denominado pelos pesquisadores de Túmulo 10A, era o lugar do descanso final de um governador chamado Djehutynakht e de sua esposa. Em algum ponto durante o sono de quatro mil anos do casal, ladrões saquearam a câmara, levando todo o ouro e as joias. Os saqueadores jogaram um torso mumificado sem cabeça e desmembrado em um canto antes de tentar incendiar o local para eliminar seus rastros.
Em 1921, arqueólogos foram recuperar os caixões adornados e estatuetas de madeira que sobreviveram ao ataque, enviando-os ao Museu de Belas Artes de Boston. A maior parte da coleção ficou armazenada até 2009, quando o museu a expôs. Embora o torso tenha permanecido no Egito, a cabeça decapitada se tornou a estrela da exibição. Com suas sobrancelhas pintadas, uma expressão sombria e cabelos castanhos ondulados, seu olhar espreita por meio das ataduras esfarrapadas. A cabeça da múmia colocou os espectadores frente a frente com um mistério.
“Ela foi encontrada no caixão do governador, mas nunca tivemos certeza se era a cabeça dele ou de sua mulher“, disse Rita Freed, curadora do museu.
Os funcionários concluíram que apenas um teste de DNA determinaria se haviam exposto o Sr. ou a Sra. Djehutynakht.
“O problema foi que, naquele momento, em 2009, não era possível extrair com sucesso o DNA de uma múmia de quatro mil anos“, disse Freed.
As múmias egípcias representam um desafio sem paralelo, pois o clima abrasador do deserto degrada rapidamente o DNA. Tentativas anteriores de obter DNA antigo ou falharam ou produziram resultados com contaminação de DNA moderno. Para resolver o caso, o museu recorreu ao FBI.
Eles nunca haviam trabalhado antes com algo tão antigo. Se os cientistas do FBI pudessem extrair o material genético da múmia de quatro mil anos, iriam adicionar uma poderosa técnica de coleta de DNA ao seu arsenal de perícia, assim como decifrar uma nova forma para entender o passado do antigo Egito.
“Eu honestamente não esperava que desse certo. Na época, havia a crença de que não era possível obter o DNA de restos egípcios antigos“, disse Odile Loreille, cientista forense do FBI. Mas na publicação Genes de março, ela e seus colegas relataram ter conseguido obter o DNA antigo da cabeça. E depois de quase um século de incerteza, o mistério da identidade da múmia finalmente terminou.
O que havia na Tumba 10A
Determinou-se que Djehutynakht e sua esposa, a Sra. Djehutynakht, tenham vivido por volta de dois mil a.C., durante o Reino Médio do Egito. Eles governaram uma província do alto Egito. Embora as paredes da tumba estivessem nuas, os caixões eram embelezados com belos hieróglifos da vida após a morte.
“Esse caixão é uma obra-prima clássica da arte do Reino Médio. Ele tem elementos de um tipo raro de realismo“, disse Marleen De Meyer, diretora assistente de Arqueologia e Egiptologia no Instituto Holandês no Cairo, que entrou novamente na tumba em 2009.
A equipe que descobriu a câmara profanada de Djehutynakht há mais de um século foi liderada pelos arqueólogos George Reisner e Hanford Lyman Story. Enquanto exploravam a região de Deir el-Bersha, que está a cerca 290 quilômetros ao sul do Cairo, na margem oriental do Nilo, descobriram uma pequena abertura sob pedregulhos que levava a uma vala de 9 metros de profundidade. Com a ajuda de dinamite, conseguiram entrar na tumba.
Em seus relatórios originais, os arqueólogos disseram que as partes do corpo desmembrado pertenciam a uma mulher, presumivelmente da Sra. Djehutynakht. De Meyer suspeitava que a cabeça pertencesse ao governador e não à esposa.
Ossos faciais ausentes
Enquanto Freed preparava os itens da tumba 10A para exposição em 2005, procurou o Hospital Geral de Massachusetts. A tomografia computadorizada revelou que faltavam ossos da face e pedaços da articulação da mandíbula – partes que poderiam potencialmente fornecer insights sobre o sexo da múmia.
“Do lado de fora, não dava para dizer que a múmia tinha sido tão remexida internamente“, disse o Dr. Rajiv Gupta, neurorradiologista no hospital. “Todos os músculos envolvidos na mastigação e no mecanismo de fechamento da boca e os pontos de fixação desses músculos, tinham sido retirados“.
Agora eles tinham um novo mistério: por que a múmia tinha estas mutilações faciais? Juntamente com o Dr. Paul Chapman, neurocirurgião do hospital, Gupta aventou a hipótese de que tudo seria parte de uma prática de mumificação egípcia antiga, conhecida como a “cerimônia de abertura da boca“. O ritual era realizado para que o falecido pudesse comer, beber e respirar após a morte.
“Fizeram um corte muito específico, que foi o que nos surpreendeu. Havia pessoas fazendo coronoidectomia há quatro mil anos“, disse Gupta, referindo-se a remoção cirúrgica da parte da mandíbula.
Alguns médicos e egiptólogos duvidavam que os antigos egípcios pudessem executar essa operação complexa com ferramentas primitivas.
E para mostrar que era possível, Gupta, Chapman e um cirurgião bucomaxilofacial realizaram a remoção do osso em dois cadáveres usando um cinzel e um martelo. Posicionaram o cinzel entre os lábios e gengivas, atrás dos dentes do siso e foram capazes de remover os mesmos ossos que faltavam no crânio mumificado.
Ainda assim, a questão sobre a identidade da múmia permanecia.
Os ladrões do dente
Os médicos e os funcionários do museu determinaram que a melhor chance de recuperar o DNA seria extraindo o molar da múmia. “O núcleo do dente era o que importava“, Chapman disse. Os dentes muitas vezes atuam como pequenas cápsulas de tempo genético. Os pesquisadores os utilizaram para contar as histórias de nossos primos pré-históricos, os chamados denisovanos, bem como para fornecer informações sobre o histórico médico de pessoas que morreram há muito tempo.
“Nossa sorte é que tínhamos um furo no pescoço, por conta da cabeça ter sido arrancada“, disse Chapman.
Eles introduziram uma longa sonda com uma câmera na parte de trás da boca. O primeiro dente que tinham como alvo não se mexeu. Assim, o Dr. Fabio Nunes, que na época era biólogo molecular do Hospital Geral de Massachusetts, tentou um molar diferente. Suando, ele manipulava o fórceps odontológico. Deu algumas mexidas no dente e, em seguida, algumas torcidas e “pop” – estava solto
“Minha principal preocupação era: não deixe cair, não deixe cair, não deixe cair“, disse ele. Depois de retirar com êxito o dente, a sala relaxou e observou o prêmio. “Parecia um dente absolutamente livre de cáries, perfeitamente preservado. Eu pensei que talvez fosse a Sra. Djehutynakht que tinha morrido durante o parto. Especulação total“, disse Freed.
O FBI resolve um caso histórico
Durante vários anos, outras equipes de cientistas tentaram sem sucesso obter DNA do molar. Então, a coroa do dente foi enviada a Loreille no laboratório do FBI em Quantico, Virginia, em 2016.
Loreille se juntou ao FBI depois de 20 anos estudando DNA antigo. Anteriormente, havia extraído material genético de um urso de 130 mil anos e também trabalhou no caso para identificar vítimas da guerra da Coreia, além de uma criança de 2 anos que se afogou no Titanic e dois filhos dos Romanov que foram assassinadas durante a Revolução Russa (embora não tenha conseguido confirmar se um deles era a famosa Anastácia).
No laboratório do FBI, Loreille perfurou o núcleo do dente e coletou um pouquinho de pó, dissolvendo-o para fazer uma biblioteca de DNA que lhe permitisse ampliar a quantidade de DNA com a qual estava trabalhando, como uma máquina fotocopiadora, para conseguir níveis detectáveis. Para determinar se o que havia extraído era DNA antigo ou contaminação de pessoas modernas, ela analisou o nível de comprometimento de sua amostra. Como sinais de danos severos foram encontrados, confirmou-se tratar de material genético da múmia.
Então ela colocou sua base de dados em um software de computador que analisou a relação dos cromossomos na amostra. “Quando se trata de uma mulher, temos mais leituras do X. Quando é um homem, temos X e Y”, explicou.
O programa determinou que era um homem.
Loreille descobriu que a cabeça mumificada pertencia de fato a Djehutynakht. Ao fazer isso, ajudou a estabelecer que o DNA antigo do Egito pode sim ser extraído de múmias.
“Conseguir coletar dados de múmias egípcias é um dos cálices sagrados do DNA antigo. Foi emocionante ver que Odile conseguiu um material que parecia realmente ser DNA antigo autêntico“, disse Pontus Skoglund, geneticista no Instituto Francis Crick, em Londres, que ajudou a confirmar a exatidão da constatação enquanto era um pesquisador de Harvard.
Revelando a história genética da múmia
O exame feito por Loreille também mostrou que o DNA de Djehutynakht dava pistas para outro mistério. Durante séculos, os arqueólogos e historiadores debateram as origens dos antigos egípcios e como estariam intimamente relacionados às pessoas que vivem no norte da África atualmente. Para surpresa dos pesquisadores, o DNA mitocondrial do governador indicava sua ascendência no lado da mãe, ou o haplogrupo, como sendo euro-asiática.
“Ninguém nunca vai acreditar em nós. Há um haplogrupo europeu em uma múmia antiga“, Loreille lembra-se de ter dito à colega Jodi Irwin.
Irwin, bióloga supervisora na unidade de apoio de DNA do FBI, tinha preocupações semelhantes. Para verificar os resultados, enviaram uma parte do dente para um laboratório de Harvard e em seguida para o Departamento de Segurança Interna, para novos sequenciamentos.
Então, no ano passado, enquanto os cientistas do FBI trabalhavam para confirmar os resultados, outro grupo afiliado ao Instituto Max Planck de Ciência da História da Humanidade, na Alemanha, relatou a primeira extração bem-sucedida de DNA antigo de múmias egípcias. Seus resultados mostraram que as amostras egípcias antigas estavam mais perto de amostras de pessoas do Oriente Médio e da Europa moderna do que dos egípcios modernos, que têm mais ancestralidade da África subsaariana.
“Foi ao mesmo tempo. Caramba! Nós não fomos os primeiros a divulgar. Mas também estamos felizes em ver que eles tinham mesmo essa ascendência eurasiana“, disse Loreille.
Alexander Peltzer, geneticista populacional no Instituto Max Planck e autor do primeiro livro sobre DNA de múmias egípcias, disse que as descobertas genéticas de Loreille se encaixam bem com o que sua equipe encontrou.
“Claro, precisamos ter cuidado para deduzir muitas coisas de genomas únicos e de apenas dois locais“, disse ele.
Irwin também expressou apreensão em relação a como o público interpretará os resultados de sua equipe, dizendo que o DNA mitocondrial proporciona “apenas um pequeno vislumbre da ascendência de alguém“. O futuro do trabalho com DNA antigo fornecerá material que poderá mostrar como diversas populações se movimentaram e se misturaram pelo Egito milênios atrás, de acordo com Verena Schunemann, paleogeneticista da Universidade de Zurique, na Suíça, que liderou o estudo de DNA da múmia egípcia publicado antes do trabalho do FBI.
A obtenção de amostras para o sequenciamento genético pode se revelar difícil para os investigadores fora do Egito, já que o governo do país veda a saída de artefatos e restos humanos antigos do país desde 1983. Assim, muitas investigações irão depender de amostras disponíveis em museu, como a cabeça decapitada de Djehutynakht.
Além de ajudar a estabelecer um terreno para a futura exploração da história da migração no antigo Egito, o trabalho de Loreille e sua equipe pode ser benéfico para o trabalho forense do FBI.
“Estamos testando técnicas que no futuro podem ajudá-los a trabalhar com restos humanos altamente degradados, como os encontrados no deserto ou de queimados.”
Mas para os egiptólogos e profissionais médicos encantados com a Tumba 10A, o maior prêmio foi finalmente resolver o mistério da cabeça mumificada.
“É quase como a sensação de descobrir o sexo do bebê. É um menino!“, exclamou Nunes.
Freed concordou: “Agora sabemos que temos o próprio governador. Já exibíamos a cabeça no museu, mas agora vamos ter que mudar a etiqueta“.
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