Formar-se em algo é uma forma de garantir o futuro? O pós-formado e sua pungente realidade.
E mais tarde, muitas vezes em sua vida ele estremeceria ao perceber o quanto há de desumano no ser humano, quanta grosseria feroz existe às escondidas num ambiente culto, requintado e, meu Deus!, até naquelas pessoas que a sociedade reconhece como nobres e honradas. (GÓGOL, Nikolai. In: O capote).
Marconi Severo*, Pragmatismo Político
Preâmbulo provocativo. O que é mais corriqueiro: (1) formar-se e ingressar ativamente no mercado de trabalho, (2) continuar estudando e se especializando (com outras graduações, especializações, mestrados e doutorados, isto sem contar os cursos técnicos) e, por fim, (3) ter de se sujeitar a trabalhar em uma atividade diversa daquela em que se formou, por obrigação e/ou necessidade? Afinal, seriam ingênuos aqueles que pensam que a maior dificuldade consiste em formar-se, como ficou demonstrado na polêmica repercussão do discurso de Michele Alves, formada em Direito na PUC-SP? Ou o incerto “depois” é ainda pior? É de se refletir, até mesmo porque “vencer” às sucessivas etapas de seleção/exclusão (consagradas no ato da formatura) não repercute para muito além dos efêmeros e eufóricos sentimentalismos de ocasião.
Para todo efeito, o diploma é uma forma de atestar para os devidos fins (ou não), que o seu porte evidencia a posse de determinadas capacidades intelectuais e/ou profissionais, seja em uma área específica ou em variadas áreas do conhecimento. Tal posse é um pré-requisito legítimo e legitimador de diversos status sociais e de estereótipos profissionais (capacetes brancos para engenharias, juridiquês para direito, botinas para as agrárias, etc.). Por mais semelhantes que os diplomas possam ser em termos de profissão, assim como de instituição formadora, os portadores de tais recursos simbólicos podem variar em significativas proporções com relação ao nível de conhecimento ora atestado. Em outras palavras, basta considerar a possibilidade de homogeneização, concedida por um diploma, das discrepâncias intelectuais e culturais existentes entre os alunos de uma mesma sala de aula. Disto resulta a posse formal e equitativa de diplomas, conquanto as distinções entre os diplomados variem do imperceptível ao colossal.
O que se quer dizer com isto? Que, hipoteticamente, 10 pessoas que possuam exatamente o mesmo diploma podem ter níveis de conhecimento distintos. Tal complexidade, evidentemente, não se limita à plúmbea medida do conhecimento humano; trata-se, também, de uma distinção social. Retomemos o caso anterior, o qual é um excelente exemplo de uma área profissional que fora tradicional nas classes dominantes alhures, ou seja, o bacharelado em Direito.
Como houve uma maior acessibilidade a esta área, os privilégios de classe (principalmente os simbólicos), bem como as distinções sociais e profissionais, foram seriamente comprometidos e, consequentemente, tornou-se mais difícil de manter a antiga distinção social. Inclusive, há queixas de que o endógeno dialeto juridiquês encontra-se vilipendiado pela sociedade atual e que, por isto, somente a graduação já não é suficiente enquanto fator de distinção – inclusive, há boatos que legislação é debatida por pessoas que não são necessariamente formadas em Direito, a começar pelos próprios legisladores… Um crime hediondo! Eis o porquê das diferenças serem tão importantes, pelo menos para alguns – os profissionalmente mais inseguros.
Bem, vamos à prática: (1) uma pessoa advinda de uma condição socialmente desfavorecida que porte o mesmo diploma de (2) uma pessoa da classe dominante. Certamente o ingresso no macabro e pérfido mercado de trabalho acontecerá de formas diferentes para cada um dos casos. Não se trata apenas de medir o conhecimento, mas do potencial de exclusão/inclusão que um diploma possui em relação às distinções sociais. Para a obtenção de determinados diplomas (considerando todo um complexo social contido nesta palavra), há ao mesmo tempo incentivos e barreiras. Quanto aos principais obstáculos, pode-se destacar a limitação de vagas, a escassez de recursos econômico-financeiros e a falta de capital social, cultural e simbólico, além das desigualdades genético-hereditárias pessoais e sociais (da cor de pele às minorias marginalizadas). Inclusive, até mesmo o “incentivo” fornecido pela qualidade e gratuidade de uma universidade pública não é capaz de garantir, por si só, a permanência do aluno em seus quadros.
Como pode ser observado, não se trata apenas de possuir um diploma, mas essencialmente o que fazer com ele e, o pior, como. Veja-se que apenas o seu porte, sem os mecanismos necessários à sua legitimação, o torna apenas mais um papel de pouco valor prático. E isto possui forte correlação. Em meio a atual sociedade, pode-se facilmente encontrar pessoas com alto grau de conhecimento e que façam jus ao seu diploma, mas mesmo assim à margem do mercado de trabalho, enquanto, ironicamente, por outro lado temos diplomas comprados, cujo porte atesta pouco ou nenhum saber, mas que estão ativamente presentes nisso que os economistas chamam de mercado de trabalho. Embora não caibam generalizações, não é difícil de encontrar exemplos desta situação.
Não se trata unicamente de formar-se, mas sim de, uma vez formado, como atuar profissionalmente com base no capital simbólico contido neste diploma? Afinal, formar-se é relativamente mais fácil do que atuar, com as devidas responsabilidades e recompensas, naquilo em que se formou. Esta é a razão pela qual geralmente conhecemos alguém com nível de escolaridade/capacitação muito além do que aquilo que, na prática, trabalha. Seguindo este raciocínio, torna-se ingênuo pensar que uma pessoa advinda de uma classe ou grupo socialmente desfavorecido tenha como usufruir plenamente do seu diploma pelo simples fato deste ser fornecido por uma instituição tradicional. Trata-se de uma perspectiva sobre quem está deslocado neste cenário, assim como quais suas pretensões reais e/ou potenciais e a chance de efetivá-las – fato que ficou evidenciado no caso do médico que pressionou um estudante que, mesmo aprovado, estaria “socialmente deslocado” por retirar uma vaga que seria, por tal lógica de privilégios, de seu filho.
A complexidade empresarial presente na “certificação de conhecimento” (leia-se formação profissional como reflexo da demanda de mercado) pode ao mesmo tempo favorecer uma enorme vantagem e maleabilidade para o ingresso e formação de carreiras no mercado de trabalho como pode, também, contribuir para que tenhamos pessoas altamente capacitadas, mas à deriva, senão obsoletas. E é justamente na questão de capacitação profissional e certificação que os dúbios, plúmbeos e cômicos discursos de meritocracia são rudemente exaltados, como se o mero porte deste simples papel fosse o penhor para ingressar no idílico El Dorado. E, como todo adepto da meritocracia defende, se acaso o sucesso não for atingido, a culpa deste suplício de Tântalo é unicamente da própria pessoa. Decepcionante saber que, mesmo com milhares de anos de evolução, ainda há quem pense assim…
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O fenômeno da “certificação” é ilustrativo desta dinâmica de uma economia altamente competitiva, pois faz com que o indivíduo aposte (por opção e/ou obrigação) naquilo que muitas vezes é só o que possui: a sua força de trabalho; e quando esta é física, há ainda mais dificuldade em especializá-la. A busca pelo diploma, neste viés, nada mais é que o investimento em um ativo corporificado e vendável por melhores preços – isto quando há o ingresso, para posterior oferta no mercado de trabalho. Em outras palavras: esta é a triste realidade de muitas pessoas ansiosas e, em alguns casos, desesperadas pela oportunidade em “poder ser explorado” e, com isto, ganhar o mínimo para suprir suas necessidades.
Todavia, há ainda o rol socialmente desfavorecido que é formado por aqueles que têm a opção de escolher (às vezes, minimamente), mesmo que disto resulte, em não raras as ocasiões, em uma formação que não é necessariamente aquela que se queria, mas a que estava ao alcance. Como pode ser percebido, o contexto social exerce forte influência sobre o indivíduo e, muitas vezes, de forma inconsciente (“isto não é para você”; “o dinheiro só dá para isto”). Estas são algumas peculiaridades que, para muitos, somente tornam-se visíveis quando, após a formatura, apagam-se as luzes da ribalta.
Ser formado consiste, dentre outros fatores, em aproximar-se do exercício de uma profissão, desejada ou não; no entanto, esta proximidade não é uma garantia – o que reflete no poder que há, especialmente no Brasil, em uma indicação. Por tais razões, dentre tantas outras, que é sempre bom termos em mente que uma formatura pode até equalizar a todos, mas a pós-formatura (isto para não considerar o processo em si), se encarregará de ressaltar as distinções, especialmente aquelas com base nas posições sociais. Afinal, por que alguns têm emprego garantido antes mesmo de se formar e outros não? É fato que há muita grosseria e ferocidade, mas também medo, mesmo entre aqueles reconhecidos como cultos…
*Marconi Severo é Cientista Social & Político e colaborou para Pragmatismo Político
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