Professor universitário que nunca foi ao banco pedir um empréstimo contraiu uma dívida de 628 mil reais e luta para renegociá-la. Ele é um dos 25 milhões de superendividados no Brasil, em um cenário que combina juros altos e falta de educação financeira
Nos últimos quatro anos, o professor universitário aposentado Rubens Adorno nunca foi ao banco para pedir um empréstimo. No mesmo período, contraiu uma dívida de 628 mil reais, depois de ser assediado com ofertas de crédito de todas as modalidades e com propostas de aumento de limite. Era tratado como um cliente vip.
Com 120% da renda mensal comprometida com parcelas em quatro bancos, o professor enfraquece o mito de que todo superendividado é de baixa renda e tem pouca instrução. Adorno se tornou um superendividado porque tomou um empréstimo atrás do outro depois de sucessivas ofertas, sem receber orientação sobre os riscos que corria.
O professor pagava as contas em dia e tentava cobrir o rombo financeiro onde entrou. Passou três anos sustentado por empréstimos. Usava todo o salário para pagar as parcelas e integrava o cadastro positivo, lista de bons pagadores dos bancos.
Ao tentar renegociar suas dívidas por telefone, era conduzido de um ramal para outro e ouvia que não era possível fazer a renegociação porque suas contas estavam em dia.
Nas agências, recebia propostas que apenas alongavam o prazo para quitar as parcelas, que o levariam a pagar ainda mais juros. Em uma delas, quatro parcelas se transformariam em 86 prestações.
Adorno é um dos 25 milhões de superendividados no Brasil, em um cenário que combina juros altos, publicidade abusiva na oferta de crédito e falta de educação financeira.
Sua saga na busca de acordos com bancos é contada no documentário “No caminho do superendividamento”, realizado pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e produzido pelo Coletivo Bodoque.
O curta-metragem foi lançado em um evento realizado na última semana, em São Paulo, pelo Idec e pela Faculdade de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV), para debater o superendividamento no Brasil. O documentário estará disponível em breve na internet, mas seu teaser já foi divulgado.
A inadimplência como saída do superendividamento
A história de Adorno mostra que renegociar dívidas é um desafio. Mesmo depois de várias tentativas de renegociação, o professor ainda não conseguiu recuperar totalmente sua capacidade de pagamento.
“Não me sinto uma vítima. Meu problema é coletivo”, diz o professor aposentado. Há um ano, a solução encontrada para começar a sair do superendividamento foi deixar de pagar empréstimos em dia e se tornar um entre os 62 milhões de inadimplentes no país.
Adorno teve o nome negativado por quatro bancos e, hoje, usa 40% da sua renda para pagar a parcela de um empréstimo com garantia de imóvel, oferecido como alternativa por um das instituições financeiras. O imóvel é o seu único bem.
As parcelas dos demais empréstimos estão em atraso, para evitar que ele se endivide ainda mais tomando novos financiamentos. “Na Páscoa, me ligaram sete vezes em um dia para cobrar”, conta.
Atualmente, a renegociação de dívidas é a segunda principal causa de inadimplência no país. A primeira é o rotativo do cartão de crédito.
“As dívidas são renegociadas em condições que as pessoas não têm capacidade de pagar e os bancos desconhecem o histórico de renegociação dos consumidores”, explica Ione Amorim, economista do Idec e idealizadora do documentário.
Assim como Adorno, muitos brasileiros tomam crédito além do que deveriam para pagar as contas em dia e se tornam inadimplentes quando decidem sair do superendividamento.
“Recebemos quatro novos Rubens todos os dias. A sociedade não pode dar as costas para essas pessoas”, diz a defensora pública Patrícia Tavares, coordenadora do Núcleo de Defesa do Consumidor (Nudecon) da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.
O problema da oferta de crédito
Mais do que fruto de um descontrole financeiro pessoal, o superendividamento é resultado de um sistema que oferece crédito de forma irresponsável, segundo especialistas.
“O problema central está na oferta de crédito, não no tomador de empréstimos”, explica o economista Ladislau Dowbor, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) e autor do livro “A era do capital improdutivo”.
Para o professor de direito da FGV André Corrêa, é preciso discutir o processo que torna as pessoas superendividadas. “Estamos tratando o superendividado como um alcoólatra que não pode ir à festa porque vai beber. Só que crédito é positivo quando usado com moderação. Mas o que é moderação?”, questiona.
Uma das maiores estudiosas sobre o tema no país, a jurista Cláudia Lima Marques, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), defende que falta uma lei para tratar e prevenir o superendividamento de forma eficaz. “As normas de autorregulamentação dos bancos não funcionam. Enquanto o superendividamento for lucrativo, vai continuar”, diz.
Um projeto de lei de 2015, nº 3.515, já foi aprovado por unanimidade no Senado, mas está empacado na Câmara. Para a professora, o projeto não incentiva a renegociação de dívidas. No entanto, mesmo com falhas, deve ser aprovado com urgência.
“O superendividamento é tratado como um problema individual e o superendividado, como um excluído da sociedade”, afirma.
O que dizem os bancos
O ouvidor do banco Santander Valdemir Lima, integrante da Comissão de Ouvidoria da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), diz que o superendividamento é um problema de todos e que uma lei reguladora seria bem-vinda pelo mercado financeiro.
O diretor de autorregulação da Febraban, Amaury Oliva, concorda. “A situação não interessa a ninguém: nem aos bancos, nem ao governo, nem ao consumidor”, afirma.
Oliva destaca que uma nova regra de autorregulação da Febraban que entrou em vigor em março pode facilitar a renegociação de dívidas. Dezoito bancos aderiram a essa norma, incluindo os cinco principais: Caixa, Banco do Brasil, Itaú, Santander e Bradesco.
A regra estabelece que os bancos devem renegociar com consumidores que ainda não estão inadimplentes, mas que estão superendividados. Também determina que as instituições financeiras devem dar atendimento especial para casos em que o cliente tiver a capacidade de pagamento reduzida devido a situações como desemprego, morte, doença grave ou divórcio.
O diretor da Febraban também defende que, se aprovado na Câmara, o novo cadastro positivo vai contribuir para que os bancos ofereçam taxas de juros mais baixas para consumidores com bom histórico de pagamento.
O cadastro positivo é uma lista de bons pagadores consultada por bancos e financeiras para conceder crédito. Hoje, o consumidor precisa autorizar que seu nome faça parte do cadastro positivo. Se o novo projeto passar na Câmara, todos os clientes de bancos com contas em dia serão automaticamente incluídos na lista de bons pagadores.
No entanto, o projeto é criticado por entidades de defesa do consumidor. O Idec diz que ele não é claro sobre a utilização de dados de consumidores.
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Júlia Lewgoy, Exame
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