O cidadão de bem vocifera contra o roubo ao erário, mas faz de tudo pra burlar o IRPF e não avisa a Prefeitura do quiosque que está construindo nos fundos de casa. Já considera abusivo o valor que paga de IPTU.
Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político
Conversando com um bolsonete sobre a possibilidade de liberação de armas para a população, eu o indaguei quem, na visão dele, poderia então possuir porte de arma (obviamente ele era favorável à liberação das armas. Os bolsonetes seguem um padrão: além, claro, de defender o armamento da população, acham que todas as políticas afirmativas para as minorias são mimimis; acreditam mesmo que o PT quer implantar o comunismo no Brasil; e, nas redes sociais, seus principais argumentos são os memes). Ao que ele me respondeu: “ora, os cidadãos de bem”.
Há tempo me ocupo com isso. Qual a definição disso, ser um “cidadão de bem”?
Uma resposta objetiva e simples para a pergunta é que o cidadão de bem é aquele que não praticou nenhum crime. Daí já questiono se alguém que tenha cometido um delito, digamos, leve e que tenha cumprido sua pena e, depois disso, realmente nunca mais teve problema com a polícia/justiça pode ser considerado um cidadão de bem.
Conversando com os defensores desse seleto(?) grupo, concluímos que o cidadão de bem deve observar uma conduta moral. Até pode ser homossexual, que longe do cidadão de bem ser preconceituoso. Só que “eles”, os homossexuais, devem guardar discrição. Demonstrações públicas de afeto, mesmo que ser andar de mãos dadas, já o exclui do clube dos cidadãos de bem, conforme o inexistente regulamento.
Ainda sobre moralismos, nem passa pela cabeça dum cidadão de bem regulamentar a profissão de prostituta, cujos serviços ele procura com frequência. Coisas de homem.
Não raro, é adicionado ao honorífico título outra característica, pagador de impostos. O cidadão de bem se sente um mártir cada vez que a Fiesp – aquela do pato – atualiza os dados do impostômetro. O cidadão de bem defende saúde pra todos, pois lhe sensibiliza ver no Jornal Nacional velhos à míngua nos corredores dos hospitais; educação de qualidade, embora concorde com o parcelamento de salários e é radicalmente contra a greve dos professores; e segurança pública, pois o cidadão de bem não quer ver furtado seu carro cujo financiamento é 30% do seu salário. Questão de status social. Ele quer tudo isso, só não explica como o estado conseguirá suprir as demandas sem dinheiro.
O cidadão de bem é contra toda e qualquer corrupção. Ele até faz postagens contra o Aécio Neves, contra o Fora Temer e outros. Pro cidadão de bem, todos os corruptos devem ser presos, ele sempre diz isso nos comentários facebuquianos. Agora, se a denúncia recai contra o PT, o cidadão de bem bate panela, sai às ruas com a camisa da seleção e fica em volta do gigante Pato da Fiesp, o venerando como se ele fosse o Deus da Probidade no Panteão dos Ilibados.
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As festas de comunidades mesmo religiosas, por exemplo, estão abarrotadas de cidadãos de bem. Eles levam suas famílias, que o cidadão de bem constitui família, e passam o dia conversando sobre essa corrupção que ninguém mais aguenta e tomando cerveja. No fim da tarde, ele embarca no seu carro cujas características foram descritas nas conversas de antes e, bêbado, vai pra casa. Geralmente chega bem ao destino. Mas se ocorrer de ele matar alguém atropelado, mesmo que não tenha culpa direta, ele deixará de ser um cidadão de bem e se rebaixará ao nível daqueles que merecem morrer na cadeia, já que cometeu um crime.
O cidadão de bem vocifera contra o roubo ao erário, mas faz de tudo pra burlar o IRPF e não avisa a Prefeitura do quiosque que está construindo nos fundos de casa. Já considera abusivo o valor que paga de IPTU.
Dito isso, fico me perguntando, será que me encaixo nos requisitos para ser um cidadão de bem? E, se sim, o dilema, será que quero ser um?
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*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”
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