1º de Maio de 1968: cinquenta anos atrás, tumulto na Praça da Sé refletiu momento político e terminou com "chuva" de paus e pedras. Governador teve de se refugiar, e manifestantes tomaram o palanque
Vitor Nuzzi, RBA
Era quarta-feira, uma manhã de tempo bom em São Paulo, com temperatura acima da média na Praça da Sé, região central, onde acontecia o ato de 1º de Maio de 1968. A manifestação, porém, terminou com “chuva” de paus e pedras, forçando a retirada do então governador, Abreu Sodré, e com tomada do palanque por manifestantes.
O episódio de 50 anos atrás reflete o momento político no mundo e no Brasil, e especificamente uma divisão do movimento sindical da época. Eram tempos de efervescência política.
No Brasil, em março, o estudante Edson Luís havia sido assassinado durante protesto no Rio de Janeiro. A inflação estava em alta (fecharia o ano em torno de 27%), e a política salarial da ditadura corroía os salários. O governo acenava com um abono, criticado até por apoiadores.
No ano anterior, 1967, formou-se o Movimento Intersindical Antiarrocho, o MIA, com participação das principais entidades, reunindo “pelegos“, “revolucionários” e dirigentes de tendências políticas diversas.
Em sua própria origem, o 1º de Maio reflete movimentos anti-patronais e também de contestação. O historiador José Luiz del Roio conta que a data está ligada à luta pela jornada de oito horas diárias: o lema era oito horas de trabalho, oito de repouso e oito para a educação.
Em livro sobre o tema, ele demarca a primeira data comemorativa em 1886, nos Estados Unidos, quando acordos de redução da jornada foram assinados, mas também muitos trabalhadores foram atacados e mortos – e alguns líderes levados à forca.
Contagem e Osasco
Em abril de 1968, durante 10 dias, a partir da paralisação na Belgo-Mineira, operários de Contagem (MG) fizeram greve por aumento salarial, em movimento que se repetiria, com impacto, em Osasco, na região metropolitana de São Paulo, em julho.
Osasco teve participação decisiva no 1º de Maio da Sé. Liderado por um jovem dirigente, José Ibrahim, com apenas 19 anos, o Sindicato dos Metalúrgicos daquela região foi um ponto de partida dos protestos que culminaram com a ocupação do palanque das autoridades. Nesta quarta (2), o sindicato de Osasco lança uma biografia de Ibrahim, no dia em que sua morte completa cinco anos.
Havia divisão dentro do MIA: uma posição, majoritária e conciliatória, era pela presença de autoridades, como o governador. Outros defendiam que o ato fosse apenas dos trabalhadores, para não configurar algum tipo de apoio ao governo. Prevaleceu a primeira – mas um grupo, liderado por Osasco, decidiu expulsar as autoridades.
Sodré mal pôde falar. “A nossa posição era clara: não pode ser uma festa da ditadura, tem de ser um dia de luta dos trabalhadores“, afirmou Ibrahim, em depoimento de 2007. “O Sodré, sem entrar no mérito se era mais democrático – e eu acho que era, tinha posições diferenciadas em relação ao poder de Brasília –, naquele momento simbolizava a ditadura.”
Em seu livro de memórias (No Espelho do Tempo), Sodré conta que sabia dos riscos de sua presença, pois serviços de informação “haviam interceptado o rascunho do roteiro da ação provocadora“. Segundo ele, seu objetivo era “impedir a aliança entre operários não subversivos e estudantes adeptos da subversão“. E disse ter recebido, após o episódio, “apoio de líderes sindicais mais esclarecidos, não contaminados pelo marxismo“.
O discurso do governador foi interrompido por vaias. Paus e pedras começaram a ser arremessados, o policiamento, ostensivo, avançou sobre os manifestantes, e o governo se refugiu na catedral, logo atrás do palanque, e o tumulto tomou conta da praça.
O número de pessoas no ato foi estimado entre 10 mil e 15 mil. Um dos que estavam na Praça da Sé era José Campos (Zequinha) Barreto, na época funcionário da Cobrasma, de Osasco – em setembro de 1971, ele seria assassinado no sertão da Bahia, ao lado do capitão Carlos Lamarca, que até 1968 servia no quartel de Quitaúna, também na região de Osasco, e aderiu à luta armada contra a ditadura.
Na Sé, pouco depois das 11h, não havia mais nada, nem palanque, que acabou destruído. Parte dos manifestantes decidiu fazer uma passeata pelas ruas do centro. À tarde, uma comissão de dirigentes, incluindo os sindicatos dos Bancários e dos Metalúrgicos de São Paulo, foi ao Palácio dos Bandeirantes, sede do governo estadual, manifestar solidariedade a Sodré.
Até o compositor Geraldo Vandré esteve no palácio, em ato que depois seria criticado por movimentos ligados à esquerda. Dois meses depois, ele iria compor sua canção mais conhecida, Pra não dizer que não falei de Flores (Caminhando).
Era uma possível reação do artista à Passeata dos 100 mil, realizada em 26 de junho, no Rio, por democracia e contra a violência, depois de um episódio conhecido como “sexta-feira sangrenta“, com número até hoje controverso de mortos e feridos. Pouco antes dessa manifestação, e logo depois daquele 1º de Maio, estudantes na França iria iniciar um movimento que conquistaria corações e mentes mundo afora.
Foi um ano de movimentos libertários pelo mundo – e também de aumento da violência da linha-dura. Basta lembrar, por exemplo, do ataque do CCC (Comando de Caça ao Comunistas) a atores da peça Roda Viva, em São Paulo e em Porto Alegre, do assassinato do ativista Martin Luther King, nos Estados Unidos, e o fim da chamada Primavera de Praga, na Tchecoslováquia. No Brasil, o paradigmático 1968 terminaria com a edição do AI-5, inaugurando o período mais agudo do regime autoritário.
‘Olha eu aqui’ – a história recontada de uma fotografia
Em 26 de junho de 1968, a Cinelândia seria o ponto de partida da histórica Passeata dos 100 mil. O Jornal do Brasil destacou o repórter fotográfico Evandro Teixeira para acompanhar o então líder estudantil Vladimir Palmeira. E assim nasceu uma das imagens mais clássicas do período: uma faixa com os dizeres “Abaixo a ditadura – povo no poder” cercada de rostos por todos os lados, a maioria nitidamente identificável. Depois de décadas convivendo com a frase “Olha eu aqui“, Evandro decidiu ir atrás das histórias daqueles rostos e reuni-las no projeto 68: Destinos. Passeata dos Cem Mil (Editora Textual, 120 páginas). Relembre o processo de construção desse trabalho.
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