Redação Pragmatismo
Mundo 17/Mai/2018 às 12:38 COMENTÁRIOS
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Arma que matou Marielle Franco tem rastro obscuro até a Alemanha

Publicado em 17 Mai, 2018 às 12h38

Arma que matou Marielle tem rastro obscuro até a Alemanha. Submetralhadoras da alemã Heckler & Koch estão no arsenal de grupos de elite pelo mundo – e também de criminosos. Ex-funcionários estão sendo julgados por exportações ilegais, e ativistas exigem fim de vendas ao Brasil

Arma que matou Marielle Franco tem rastro obscuro até a Alemanha

Jean-Philip Struck, DW Brasil

Na comunidade de entusiastas de armas de fogo, os produtos da Heckler & Koch são considerados lendários. Fazem parte do arsenal de alguns dos mais famosos grupos de elite do mundo, como a Swat e os Navy Seals nos EUA. Um de seus fuzis foi usado para matar Osama bin Laden.

No cinema, Bruce Willis usou uma das submetralhadoras da empresa para matar vilões em Duro de Matar. Em 2016, o controlador da Heckler & Koch (H&K), Andreas Heeschen, definiu a empresa como a “Porsche das armas“.

Mas a Heckler & Koch também ostenta outras marcas: seus produtos alimentam guerras e estão entre alguns dos favoritos de criminosos e de forças que violam direitos humanos. E uma das submetralhadoras produzidas pela empresa, segundo investigações, foi usada no assassinato da vereadora carioca Marielle Franco e de seu motorista Anderson em março.

O caso Marielle acendeu mais uma vez o alarme de ativistas que cobram controles mais severos para a exportação de armas pela Alemanha e o banimento de vendas para países acusados de violar direitos humanos.

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Segundo apontou a Polícia Civil do Rio de Janeiro, Marielle foi atingida por disparos de uma HK MP5, uma submetralhadora de uso restrito no Brasil. Teoricamente, só deveria ser encontrada nos arsenais das polícias Militar, Civil, Federal e de alguns grupamentos das Forças Armadas. Não está claro se a arma foi desviada de um desses arsenais. Não é raro que armas da H&K sejam encontradas em poder de criminosos no Brasil.

Exportações ilegais e processo

A associação dos produtos da H&K com crimes em países em desenvolvimento, como o caso Marielle, é rotineira para ativistas que acompanham a trajetória da empresa e cobram mais responsabilidade em suas vendas.

Segundo eles, a Heckler & Koch não é uma mera fabricante que se mostra incapaz de rastrear o destino de seus produtos e que não pode controlar como eles vão ser usados. Em alguns casos, membros da empresa sabiam muito bem que suas vendas poderiam alimentar o crime ou conflitos.

No momento, seis ex-funcionários da empresa – incluindo dois ex-executivos – estão no banco dos réus de um tribunal de Stuttgart. A acusação: vender ilegalmente fuzis de assalto para autoridades de alguns estados do México, violando decreto do governo alemão que proibia esse tipo de transação. O julgamento começou nesta terça-feira (15/05) e deve terminar em outubro.

O caso envolve a venda de 4.700 fuzis HK G36 por cerca de 4 milhões de euros. Eles não poderiam ser vendidos em certas regiões do México onde foram registradas violações de direitos humanos por forças de segurança. As transações ocorreram entre 2006 e 2009 e foram reveladas em 2015. Segundo a acusação, a empresa chegou até mesmo a treinar policiais locais mesmo com embargo em vigor.

No primeiro dia do julgamento do caso, ativistas lembraram ainda o caso dos 43 estudantes mexicanos que desapareceram no Estado de Guerrero em 2014. Investigações mostraram que armas da H&K foram usadas no crime, que contou com a participação de policiais corruptos.

Negócios com Brasil na mira de ativistas

Não há registros detalhados sobre as últimas vendas da H&K ao Brasil. A empresa não informa sobre seus negócios no país. Dados do Departamento Federal de Controle Econômico e de Exportações também são vagos. Anualmente, o departamento divulga informes sobre exportações de armas da Alemanha, mas se limita a apontar o número de transações e os valores envolvidos – não há identificação de fabricantes e detalhes das armas. No caso do Brasil, o último relatório aponta 37 exportações para o país entre janeiro e abril de 2017, que envolveram mais de 10 milhões de euros.

Em novembro de 2016, já na esteira do escândalo mexicano, a empresa manifestou intenção de se converter em um “fabricante de armas ético” e de não vender armas para países que não fizessem parte da Otan ou não fossem associados com a aliança, ou que não se enquadrassem em índices satisfatórios de democracia e combate à corrupção.

A medida deve afetar países como o Egito e a Arábia Saudita – mercados tradicionais da empresa. À época, o então presidente da empresa, Norbert Scheuch, chegou até a apontar que a Turquia, apesar de ser membro da Otan, não poderia mais comprar por causa do crescente autoritarismo do governo local. O anúncio de 2016 não especificou se o Brasil foi enquadrado na lista, mas as condições estabelecidas sugerem à primeira vista que seria o caso.

Em abril de 2017, no entanto, a empresa manifestou interesse em uma licitação da Polícia Militar de São Paulo para a compra de cinco mil pistolas semiautomáticas. Segundo a PM, um representante da empresa explicou que o diferencial da empresa era o suporte técnico de pelo menos 20 anos na manutenção de peças. Pouco depois, a licitação foi cancelada por suspeitas de direcionamento para favorecer a italiana Beretta. A H&K não chegou a apresentar proposta oficial.

Mesmo antes da morte de Marielle, outros episódios no Brasil já haviam chamado a atenção de ativistas na Alemanha. Em 1992, oito submetralhadoras HK foram usadas pela PM na chacina de 111 presos do Carandiru.

O ativista veterano Jürgen Grässlin, que ajudou a montar o caso judicial sobre as exportações ilegais para o México, afirma que pelas regras anunciadas pela empresa em 2016, a H&K não deveria mais tentar fazer negócios no Brasil. Grässlin vem há mais de três décadas sendo uma pedra no sapato da empresa ao cobrar mais responsabilidade e transparência. Ele chegou a comprar ações da H&K para poder questionar os diretores nas reuniões de acionistas.

Segundo ele, o Brasil não é diferente do México e não deveria poder comprar armamento de firmas alemãs. “Pelas suas próprias regras, o governo alemão não poderia autorizar vendas para países como o Brasil, que não fazem parte da Otan, mas isso é regularmente ignorado, exceções são abertas o tempo todo quando é levantada a justificativa de que há ‘interesses alemães’ em um determinado país. Levando em conta a situação dos direitos humanos no Brasil, quem autoriza isso está contribuindo para piorar a situação“, disse ele.

Grässlin também vê com preocupação o fato de que a H&K manifestou interesse em vender armas para a PM paulista mesmo após o anúncio da nova política. “Ainda estamos esperando para ver como a empresa pretende agir daqui para frente, mas isso é mais um motivo para suspeitar das intenções“, disse. “É preciso também que Berlim pare de quebrar suas próprias regras com tantas exceções em autorizações que ainda permitem a venda de tanto armamento ao Brasil.”

Trajetória construída no pós-guerra

Na Alemanha, exportação de armas é tema controverso. A cultura pacifista interna que caracteriza o país desde a Segunda Guerra Mundial impulsiona ativistas que querem mais transparência nas transações. Ao mesmo tempo, o governo é regularmente acusado de dar tratamento especial para as fabricantes e de não agir para reforçar o controle. A Alemanha é o quinto maior exportador de armas do mundo e o setor emprega 80 mil pessoas.

A H&K, por exemplo, é maior empregadora de Oberndorf am Neckar, pequena cidade do sul do país. Fundada em 1949 por ex-engenheiros que trabalhavam para a Mauser, empresa que fabricou fuzis para o regime nazista, a H&K teve seu primeiro impulso ao vender armamento para a Bundeswehr, as Forças Armadas da Alemanha Ocidental.

Nos anos 1950, desenvolveu o fuzil de assalto HK G3, que passou a rivalizar com o soviético AK-47, ou Kalashnikov, em vendas internacionais. O G3 logo passou a ser facilmente encontrado em dezenas de conflitos no terceiro mundo durante a Guerra Fria. Entre os anos 1960 e 1980, a Alemanha Ocidental ainda autorizou a H&K a emitir licenças de fabricação do G3 para 16 países, como Irã e Paquistão, entre outros Estados que figuraram regularmente como violadores de direitos humanos.

Nos anos 1990, a H&K desenvolveu o sucessor do G3, o HK G36. Em 2008, Berlim autorizou acordo de licenciamento para instalação de uma fábrica do novo fuzil na Arábia Saudita.

Na última sexta-feira (11/05), dias antes do julgamento dos seus ex-funcionários, a Heckler & Koch voltou a afirmar que não pretende mais vender armas a países que não se enquadrem nos critérios estabelecidos. O interesse que a empresa manifestou na licitação da PM paulista em 2017, no entanto, levanta dúvidas se a empresa está mesmo disposta a desistir de um mercado como o Brasil.

E mesmo o anúncio sobre as restrições autoimpostas só veio na esteira de novos obstáculos que o governo alemão impôs à venda de armas ao Oriente Médio e à Rússia. A empresa também continua a atuar livremente nos EUA, que consumiu 33% das suas exportações entre 2012 e 2016. Em feiras americanas, representantes da empresa apresentam produtos para compradores civis com um desembaraço que seria impensável na Alemanha, onde o controle de venda de armas para cidadãos é rígido.

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