Há um Brasil doente que sente falta das execuções de quem pensa diferente
A celebração nas redes sociais das informações estarrecedoras contidas em memorando da CIA revela como estamos doentes. Esse pessoal sonha com os "bons tempos de volta" e o "fim da roubalheira", ignorando a farta documentação que mostra a corrupção em estatais e em obras públicas nos anos militares
Leonardo Sakamoto*
O Brasil lida com o seu passado como se tivesse feito as pazes com o presente. Não, não fez. E o impacto de não resolvermos o que aconteceu durante a última ditadura militar (1964-1985) se faz sentir no dia a dia das periferias das grandes cidades e na porção profunda do interior, com parte do Estado e de seus agentes aterrorizando, reprimindo e torturando parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica). Sejam eles agentes em serviço ou fora dele, na forma de milícias urbanas e rurais.
Em nome de uma suposta estabilidade institucional, o passado não resolvido e anistiado permanece como fantasma. Não são apenas as famílias dos mortos e desaparecidos políticos que vivem assombrados pelas verdades não contadas e os crimes não admitidos daquela época. Diariamente, os mais pobres sofrem nas mãos de uma banda podre da polícia que adota métodos refinados na ditadura a fim de garantir a ordem (nas periferias das grandes cidades) e o progresso (na região rural).
Um documento secreto liberado pelo Departamento de Estados norte-americano mostrou que o general Ernesto Geisel aprovou a manutenção de uma política de execuções sumárias de adversários em 1974. O ditador brasileiro, que governou entre aquele ano e 1979, teria orientado João Baptista Figueiredo – então chefe do Serviço Nacional de Informações e que seria seu sucessor – a seguir com os assassinatos que começaram no governo do general Médici. Ou seja, a autorização vinha da cúpula do governo.
Quem percebeu a importância do documento, no qual o governo reconhece executar dissidentes, e o postou nas redes sociais foi Matias Spektor, colunista da Folha, e professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas. O memorando é assinado pelo diretor da CIA na época, William Colby, e relata uma reunião com Geisel. É citada a execução sumária de, pelo menos, 104 pessoas.
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Contar histórias como a desse documento é fundamental. Os assassinatos sob responsabilidade da ditadura devem ser conhecidos e discutidos nas escolas até entrar nos ossos e vísceras de nossas crianças e adolescentes a fim de que nunca esqueçam que a liberdade do qual desfrutam não foi de mão beijada. Mas custou o sangue, a carne e a saudade de muita gente. E, portanto, sua construção – até agora incompleta e imperfeita – deve ser um esforço coletivo. Mesmo enfrentando ações como o do ”Escola Sem Partido’‘, que tem como consequência equacionar a barbárie com a civilização.
O problema é que, diante da realidade ultrapolarizada do debate público no Brasil, isso parece ser uma tarefa inútil. Pois não adianta mostrar informações como essa para uma parcela da sociedade que defende o retorno da ditadura militar não pelo desconhecimento dos métodos utilizados, mas, pelo contrário, por saudade deles.
Mesmo que não tenha nascido muito após aqueles acontecimentos. Em sites e redes de ultraconservadores, o memorando foi celebrado como um exemplo de algo que deve ser copiado para o futuro e de competência da ditadura em proteger o país. Assim, sem pudor algum.
Essa parcela tem apoiado a candidatura do deputado federal Jair Bolsonaro para a Presidência da República, sonhando que ele traga os ”bons tempos de volta”, botando ordem e acabando com a roubalheira. Ignoram, dessa forma, a farta documentação que mostra a corrupção em estatais e em obras públicas, nos anos militares, ou mesmo o comportamento promíscuo entre empresas privadas e a ditadura.
Vale lembrar que Bolsonaro foi ovacionado nas redes sociais por conta do conteúdo de seu voto pelo impeachment, em abril de 2016, por uma legião de pessoas que cabulava aula de história ou pouco se importa com a dignidade alheia. Após parabenizar o hoje presidiário Eduardo Cunha, homenageou o açougueiro e torturador Carlos Brilhante Ustra – falecido coronel e ex-chefe do DOI-Codi.
Certamente o finado comandante de um dos principais centros de repressão da ditadura não é incensado por seus belos olhos ou pela forma pela qual fazia um guizado de frango ou jogava tranca. Mas por usar a morte como instrumento de controle estatal. Ustra chegou a ser declarado pela Justiça como responsável por casos de tortura e também condenado a pagar indenização por conta da morte do jornalista Luiz Eduardo Merlino.
O conhecimento de História não é um dádiva, mas sim uma maldição. Porque você se torna responsável por dialogar com quem a ignora, por mais impossível que isso pareça ser. Um diálogo que deve ser paciente e não-violento, na esperança de que entendam que a dignidade humana, construção de milhares de anos dessa História, é uma conquista que deve ser defendida a todo o custo.
As Forças Armadas de hoje não são as mesmas do período da última ditadura, da mesma forma que os contextos nacional e internacional são outros. Seus líderes têm, repetidas vezes, confirmado que o comando é e será civil. E o respeito às liberdades individuais e às instituições continuará. De vez em quando, contudo, as declarações estapafúrdias de generais da ativa, mais do que os oficiais de pijama, colocam a pulga atrás da orelha sobre a sinceridade dessa estabilidade.
Os responsáveis pela parte mais sombria da ditadura, seus aliados e seguidores precisam saber que a sua versão da História – de que duas décadas de assassinatos, censura e violência foram necessárias para o bem da coletividade – não vai vingar. Pois não agiram pelo bem do Brasil. Mataram, roubaram e calaram para o bem de si mesmos.
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*Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo