Política

Brasil vive fenômeno político sem precedentes

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O fenômeno político em curso no Brasil é, sob diversos aspectos, original. Trata-se da ruptura unilateral de um pacto constitucional por forças conservadoras cuja ação política se caracterizou desde sempre por produzir uma sociedade miserável, excludente, inculta e subalterna. O fenômeno fascista clássico não estabelece paralelo

Ion de Andrade, Jornal GGN

O fenômeno político em curso no Brasil é, sob diversos aspectos, original. Trata-se da ruptura unilateral de um pacto constitucional por forças conservadoras cuja ação política se caracterizou desde sempre por produzir uma sociedade miserável, excludente, inculta e subalterna.

O fenômeno fascista clássico não estabelece paralelo, pois uma de suas marcas mais fortes foi o nacionalismo exacerbado e xenófobo. Embora autoritário e violento o fenômeno em curso no Brasil corresponde mais a um retorno pela força da ilegalidade (o desrespeito continuado da ordem constitucional convertida num simulacro) a uma condição anterior de subalternidade, exclusão e miséria.

A América do Sul está toda ela mergulhada nesse teste histórico de um novo formato de autoritarismo subalterno, um neocolonialismo surpreendentemente sucedâneo de Estados de direito com razoável grau de maturidade e organização.

Como uma nova doença ele é possivelmente uma ameaça mundial, certamente não no que toca à subalternidade de que é portador, que é o nosso papel na divisão do Poder mundial, mas certamente sim no que toca à conversão cínica da democracia participativa em democracia procedimental que poderá inspirar outras experiências do gênero.

Porém esse processo ainda está em curso, não foi concluído e, ao menos no Brasil, não passou ainda pelas provas de fogo de legitimidade dos sistemas políticos contemporâneos: as eleições. As próprias eleições são apenas um momento pontual de sincronização entre a vontade popular, legitimidade última do Poder na democracia, e toda a superestrutura governamental que, de princípio deve curvar-se a ela. A própria vontade eleitoral poderá ser maculada, pervertida, deturpada, originando uma continuidade do Poder ilegítimo até quando esse possa manter o simulacro.

Para além da vontade matematicamente expressa nas urnas, há mais, há uma hegemonia real das forças em disputa na sociedade que, nem sempre está sincronizada com a vontade eleitoral expressa nas urnas que pode ser deturpada e corrompida. No entanto é essa hegemonia real que definirá, cedo ou tarde, a vontade política capaz de moldar o governo. Na ditadura o campo democrático tornou-se hegemônico antes de chegar ao Poder e o fez através de várias mediações como a Campanha pelas Diretas ou a participação no Colégio Eleitoral da ditadura. O processo desembocou, por fim, numa Constituinte de pacto e compromisso cheia de insuficiências decorrentes de concessões legitimamente estabelecidas em troca de conquistas: balizas historicamente definidas e portadoras de alcances e limites em consonância com uma correlação de forças reais existentes na sociedade.

Então o que está em curso é um processo no qual as diversas forças que compuseram o golpe, embora pareçam muito sólidas no domínio do Poder que exercem a partir da superestrutura governamental do Estado, não conseguem estabelecer uma base social mínima para passar pelo teste de fogo da legitimidade eleitoral e ainda menos são capazes de produzir no horizonte do futuro um esboço qualquer de hegemonia com base num Projeto Nacional de consenso onde os diversos, trabalhadores, patrões e setores médios tenham assento.

No campo democrático, agora nucleado por uma Frente Democrática oficial, reinam tensões sobre o que fazer e como conciliar a candidatura Lula com outras candidaturas que talvez tenham que desempenhar papel protagonista dada a própria natureza de ausência de um Projeto Nacional sustentável por parte dessas Forças que querem manter Lula preso e inocente ainda que isso possa, como a história tantas vezes mostrou, vir a produzir um fenômeno imponderável, e é imponderável no Brasil sobretudo porque sem paralelo em 518 anos de história. Apenas não sabemos o que é essa imponderabilidade que a História ainda não revelou.

A hora portanto é da Frente Democrática reunir o seu Estado Maior para uma discussão a sete chaves sobre esse complexo cenário do Campo de Batalha, preenchido por variáveis que desconhecemos que peso terão na definição do futuro, (como a prisão do candidato virtualmente eleito e flagrantemente inocente) e com o objetivo de definir compromissos, tempos e a estratégia comum para a abordagem dessa batalha, parte de uma guerra maior em que já se enxergam como aliados de longo prazo. É hora desse alinhamento de Estado Maior a sete chaves para que possamos gerar sinergia onde a fragmentação já começa a ameaçar.

Me parece, como observador, que se construir a estratégia comum a Frente Democrática tende a derrotar as forças golpistas de forma esmagadora.

A grande aposta do golpe desrespeita tudo o que foi aprendido em termos de exercício do Poder no Ocidente nos últimos 350 anos. Ninguém sabe do que o futuro é feito, mas essas inovações têm, em geral, mais chances de dar com os burros n’água do que de serem coroadas de sucesso.

No incêndio ocorrido em São Paulo, a acolhida de, vejam bem, vítimas que haviam perdido tudo, do representante do Poder Público que, em condições normais deveria representar alguma esperança de saída da tragédia, é por demais emblemática. Quem tiver ouvidos que ouça.

Irresponsavelmente as forças golpistas construíram, portanto, por um lado o imponderável e por outro uma incapacidade completa de alçar-se legitimamente ao Poder na prova de fogo das eleições.

Se acertar a estratégia, e é claro que isso deve ser feito a sete chaves, a Frente Democrática estará posicionada de maneira muito forte para virar a mesa e recuperar a democracia no Brasil.

E há um partido que deve puxar esse “brainstorming” que o Estado Maior da Frente Democrática deverá fazer e cujo propósito é o desenho da estratégia comum que permitirá ação sinérgica e evitará a fragmentação e o desgaste das eventuais lutas internas. Força mais forte e sobre quem repousa uma responsabilidade histórica, além de partido de Lula que personifica o povo vitimado pelo golpe, o PT da Senadora Gleisi emerge como o maior protagonista político no Brasil atual. Não se trata obviamente de discutir a retirada da candidatura de ninguém, mas de uma cronologia a ser seguida com minúcia para que decisões de peso estratégico, como essa, possam ser tomadas no tempo mais apropriado em função de variáveis que ainda não foram esgotadas. Significa compartilhar a subjetividade de cada força no que toca as eleições para garantir as necessárias conexões e apoios recíprocos e reforçar a plataforma de diálogo.

Se as forças democráticas se sentarem para discutir futuro, eleições e o exercício do Poder no longo prazo, é possível e mesmo muito provável que isso produza muito mais do que hoje podemos imaginar.

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