"É ilícito abordar consumidores como suspeitos de furto de forma vexatória, sem qualquer amparo fático a não ser a cor da pele, pois a prática equivale a tratá-los como seres invisíveis e sem valor", diz decisão judicial que condenou grande supermercado de Porto Alegre
Consultor Jurídico
É ilícito abordar consumidores como suspeitos de furto de forma vexatória, sem qualquer amparo fático a não ser a cor da pele, pois a prática equivale a tratá-los como seres invisíveis e sem valor. Assim entendeu a juíza Karla Aveline de Oliveira, da Vara Cível do Foro Regional da Tristeza (RS), ao condenar um grande supermercado de Porto Alegre por revista abusiva em três jovens negros, menores à época dos fatos.
Cada um deles deverá ganhar R$ 20 mil de reparação. A empresa ainda foi condenada a pagar multa por litigância de má-fé por negar veementemente os fatos e, após mais de dois anos, ao final do processo, juntar DVD com as imagens do circuito interno de segurança.
O fato ocorreu em 2013, quando o trio de estudantes comprou alguns pacotes de biscoito no estabelecimento. Depois de pagarem pelos produtos no caixa, foram abordados por cinco seguranças, que mandaram os jovens abrirem as mochilas e esvaziarem os bolsos.
Como nenhum produto de furto foi encontrado, os seguranças ordenaram que eles saíssem imediatamente do local, na frente de todos os clientes. Os jovens, então, registraram boletim de ocorrência e moveram ação contra o supermercado.
Em sua defesa, a empresa alegou que nenhum fato foi registrado ou ocorreu na data e hora alegadas pelos estudantes. Sustentou que a história narrada pelos estudantes era “fantasiosa”, constituindo-se numa “aventura jurídica para auferir lucro”.
Após a instrução do processo, em memoriais, a empresa ré mudou a linha de defesa e confirmou a abordagem aos autores. Segundo a versão, eles haviam colocado na mochila um energético para induzir os seguranças a erro.
Uma testemunha, que estava na fila do caixa, disse que os seguranças se referiram aos meninos como “esses neguinhos”. Também afirmou que os rapazes ficaram nervosos com a situação, que gerou um tumulto. A empresa não arrolou testemunhas, ainda que os nomes de dois dos seguranças tenham sido informados na inicial.
A juíza afirmou que a abordagem foi desmotivada, abusiva e truculenta e resultou em abalo moral e psíquico. “Foi em horário de pico, em estabelecimento muito próximo à escola onde estudavam, frequentado por colegas, amigos e pais de colegas, de modo que foram expostos, a não ser pelo fato de serem negros, à situação vexatória, humilhante e violenta”. A sentença foi proferida em 30 de abril.
Herança do escravagismo
Karla Aveline de Oliveira fez uma espécie de análise antropossociológica do racismo no mundo e no Brasil. Para ela, entender o que se passou no supermercado exige que se compreenda, primeiro, o histórico do país, “herdeiro de um passado escravagista e indigno”.
A julgadora falou sobre características do Brasil colônia, privilégios de determinados grupos, racismo e a “figura do negro e da negra como estranhos o imaginário coletivo brasileiro”.
Para Karla, os fatos mostram que ficou configurado o agir ilícito da empresa, que não se preocupou em preservar a imagem, a integridade emocional e a honra dos adolescentes. “Ao contrário, em total desprezo, abordou-os como se suspeitos de furto fossem, na frente de todos os clientes, sem qualquer razão, a não ser a discriminação e o preconceito racial”.
Indenização e multa
Ela também fez referência ao fato de que a empresa tratou de resguardar as imagens da abordagem para usar no momento oportuno, já que demorou mais de dois anos para entregar o DVD à Justiça e ainda mudou a versão do fato.
A sentença considera que foi uma conduta “pensada e planejada” pela ré, para não disponibilizar detalhes sobre o conflito. “Sem justificar o aparecimento repentino do DVD, ousou referir que a ação da empresa, além de não ter produzido qualquer dano, deu-se porque a segurança foi induzida em erro pelos adolescentes para provocar uma abordagem”, concluiu.
Diante disso, a magistrada também condenou o supermercado a pagar multa no valor equivalente a 10 salários mínimos aos autores da ação por má-fé, já que “alterou, vergonhosamente, a verdade dos fatos, procedendo, inclusive, de modo temerário”. Da decisão, cabe recurso. Com informações da Assessoria de Imprensa do TJ-RS.
Clique aqui para ler a sentença: Processo 001/1130173208-8
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