O diálogo do direito e da neurociência no enfrentamento à violência sexual
Apesar do avanço significativo na proteção da liberdade sexual, os tribunais encontram dificuldade para a aferição de provas que permitam a responsabilização do agressor
Luciana Lopes Rocha* e Regina Lúcia Nogueira*, Congresso em Foco
O estudo da Neurociência aplicada às práticas jurídicas tem ampliado nas últimas três décadas. O campo de estudo interdisciplinar entre a neurociência e o direito, Neurodireito (Neurolaw em inglês), estuda a relação entre o cérebro e o comportamento como uma nova dimensão dos fenômenos legais. A grande evolução das tecnologias tem permitido aos neurocientistas conhecerem o cérebro com um nível de detalhamento antes não era possível.
Como pesquisadoras, temos dialogado, em especial, sobre a violência sexual e compartilhado esse diálogo com profissionais do Direito, Segurança, Saúde e Educação em diferentes partes do país. A sociedade está em constante transformação de costumes e conceitos. Os crimes sexuais foram considerados como crimes contra os costumes, ou seja, contra a moral pública sexual até a primeira década do século 21. Antes da Lei nº 11.106/2005, a punibilidade dos crimes de estupro era extinguida pelo casamento do agente com a vítima ou pelo casamento da vítima com terceiro, já que o bem jurídico protegido pela legislação era a moralidade pública. Apenas com a reforma introduzida pela Lei nº 12.015/2009, o objeto de proteção passou a ser a liberdade sexual, dignidade sexual e desenvolvimento sexual.
A partir de tal mudança, o crime de estupro consiste no fato de o agente “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Assim, em termos legais, no estupro, é indispensável a prova do dissenso (não consentimento) da vítima, ou seja, que não houve o seu consentimento para a prática do ato sexual, devendo o dissenso ser sério e firme, capaz de demonstrar efetiva oposição ao ato sexual, a ser suplantada pelo emprego de violência física ou grave ameaça. Apenas nos casos de vulnerabilidade da vítima, como por exemplo no caso de menores de 14 anos, despreza-se a prova de dissenso, mesmo havendo concordância da vítima é caracterizado o estupro.
No entanto, em muitos casos a prova de dissenso é de difícil comprovação. A juíza lembra que as relações sexuais não são unidimensionais e dicotômicas, ou seja, não são apenas caracterizadas pela presença/ausência “sim” ou “não”. O consentimento ou o dissenso pode ser verbal ou não verbal, bem como pode estar presente em um dado momento e não em outro. Ademais, é necessário se ter em mente que o fenômeno recebe impacto de estruturas sociais como as relações patriarcais de gênero; por crenças socialmente compartilhadas sobre os papéis e direitos (ou não) das mulheres (estereótipos de gênero); bem como sobre mitos sobre o estupro, dentre ele o de que uma mulher adulta saberia se defender de uma investida masculina e que sem hematomas ou graves machucados, não se poderia pensar em violência sexual.
Diante dessa complexidade, especificidades dos crimes sexuais podem desafiar a produção de provas de autoria e materialidade. Ademais, é comum o crime ocorrer na ausência de testemunhas, pode ocorrer sem o emprego de violência física, bem como no âmbito doméstico, familiar e de intimidade. Além disso, embora um laudo pericial possa demonstrar a ocorrência de relação sexual, ele não pode provar se existiu ou não consentimento da relação sexual.
Portanto, apesar do avanço significativo na proteção da liberdade sexual, os tribunais encontram dificuldade para a aferição de provas que permitam a responsabilização do agressor. Nesse contexto, o diálogo do Direito com a Neurociência favorece uma maior compreensão das especificidades da violência sexual e suas consequências sobre a vítima.
Um exemplo é a importância do conhecimento sobre as possíveis reações de defesa apresentadas pelas vítimas. Diante de uma situação de perigo, o cérebro é ativado e coordena um conjunto de respostas comportamentais e fisiológicas que variam de acordo com o tipo da ameaça. As respostas de luta e fuga são as mais conhecidas. No entanto, dentre as respostas está o congelamento/imobilidade tônica, apresentado por cerca de 37% a 70% das vítimas de violência sexual. Essa perda involuntária da capacidade de se mover e gritar durante uma agressão sexual pode ser má interpretada com um “consentimento” da vítima, a excluir a tipicidade da conduta.
Outro exemplo é o efeito traumático da violência sexual. A exposição a um episódio concreto ou a uma ameaça de violência sexual é reconhecida no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM V 2014) como um dos critérios para o diagnóstico de transtorno de estresse agudo ou transtorno de estresse pós-traumático. Estudos mostram que a gravidade dos sintomas está correlacionada a alterações de estruturas cerebrais responsáveis pela aprendizagem e memória sobre estímulos perigosos e expressão de medo; reconhecimento de contextos seguros; regulação de afeto e interações sociais; realização das funções executivas.
Por consequência, a vítima pode apresentar sintomas que podem não fazer sentido sem o conhecimento sobre os impactos do trauma sobre o cérebro. São comuns reações e comportamentos como amnésia dissociativa – a vítima lembrar de alguns aspectos importantes do evento, mas não se lembrar de outros, o que pode fazer com que a vítima seja desacreditada e sua palavra perca o valor como prova. Podem estar presentes alterações cognitivas que levem a vítima a se autoculpabilizar, reforçando estereótipos de gênero e mitos sobre o estupro. As respostas emocionais podem ser muito variadas, de sofrimento psicológico intenso e prolongado, a estupor, agressividade ou ataque de risos, dificultando o acolhimento à vítima e sua credibilidade. Reações de evitação também podem estar presentes como evitar pessoas, recordações, lugares que lembram o ocorrido, o que pode ser confundido com uma vítima não colaborativa.
Assim, a presença de perguntas durante a instrução processual, fundamentadas no conhecimento neurocientífico sobre os efeitos da violência sexual sobre o cérebro, pode favorecer o acolhimento da vítima e a credibilidade à sua palavra, por consequência permitir a adequada valoração da prova, a caracterização ou não de estupro e a responsabilização do agressor.
O Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Fonavid), reconhecendo a importância do diálogo com ouras ciências, aprovou em sua VII edição (2016) recomendação de que todos os tribunais “promovam a formação multidisciplinar destinada a magistrados(as) e servidores(as), incorporando a perspectiva de gênero e o impacto dos diferentes tipos de violência contra as mulheres, sobre a saúde mental e efeitos do trauma, a fim de propiciar melhor valoração da prova a partir do conhecimento e estudo de outras ciências”. Além disso, sua última edição (2017) teve como tema a “Violência Doméstica como Fenômeno Mundial e Multidisciplinar”.
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*Luciana Lopes Rocha é juíza titular do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Taguatinga, coordenadora do Núcleo Judiciário da Mulher do Distrito Federal (NJM/DF-TJDFT) e presidente do X Fonavid (Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher).
*Regina Lúcia Nogueira é pós-doutora em Neurociência, psicóloga cínica, terapeuta e supervisora certificada em EMDR. É psicóloga e neurocientista do Núcleo Judiciário da Mulher do Distrito Federal (NJM/DF-TJDFT).