Como um câncer peculiar, o ego dispõe o organismo que forjou de modo a preservar o máximo possível sua perpetuidade. Estabelece um poço, um lago, um oceano de sofrimento para garantir que com a ausência de paz e a promessa da felicidade futura o sujeito se sujeite. Esse poço também pode ser rastreado pela história
Eduardo Bonzatto, Pragmatismo Político
“Quando, em uma família, surge um buscador,
é porque este encarna o desejo de todo o clã de
sair das repetições e do conhecido e ir adiante”
Bert Hellinger
O ego é uma ideologia, não um dispositivo da psiquê.
O ego é uma patologia. Um cancro, um tumor em permanente e eterna metástase. Quer encarcerar as energias livres num organismo, num território.
Foi um fenômeno do humanismo, do deslocamento e da usurpação do centro que estava em deus (mistério, incognoscível) para o centro no indivíduo.
O conceito por trás do termo indivíduo é um mapa: indiviso e dual. De um lado, o território a ser defendido, sem divisão, uno, compacto, duro; de outro, a dualidade, a dicotomia, uma forma pensamento limitante que opera sempre pelo caminho moral do bem e do mal.
Desse núcleo duro, inflexível, isolado, derivado de uma ideologia imprecisa, egoísmo, erigiu-se um mundo inteiro de relações.
Kropotikin (Ajuda Mútua) descreveu o mundo anterior a essa modernidade que é o EU. A colaboração era a forma coletiva e comum da existência. De todas as formas de vida. Sem a colaboração, a vida não teria prevalecido nesse planeta, neste plano, neste platô. Nenhuma forma de vida poderia ser pensada sozinha, isolada. Todos só se completavam com o grupo, com a diversidade, na pluralidade, em complexidade (tecer juntos).
O pior castigo que se pode impor a alguém de tribo, clã ou matilha, ou qualquer grupo gregário, é o exílio. Nas tribos germânicas o exilado fica conhecido como whalrus, o sem paz, a maldição do lobisomem.
Na nossa sociedade cuja ordem é hierárquica e desigual, todos somos exilados, uma sociedade de pequenos tiranos.
O ego não é um fenômeno da psiquê, mas da sociabilidade e da história. Os mecanismos de divulgação e formação do ego são facilmente identificáveis: o pecado e a penitência, o patriarcado e o primogênito, o professor e o aluno, o patrão e o empregado. Essas são algumas relações para a formação do ego.
Submissão e competitividade são seus corolários. As instituições são as estruturas para a divulgação do perfil do ego, pois individualizam o sujeito e a sujeição. O nomeia, o reconhece, o identifica, o seleciona. Tudo como uma unção. Uma marca. Essa distinção é única e irremovível para a formação da personalidade.
O sujeito se vê como um outro, uma outridade, uma diferença e, no computo geral, uma desigualdade que move sua energia em direção a um resgate.
O sujeito quer pra si. Nesse ponto, a partilha que norteava o conjunto de humanos-terra em deslocamento é encerrada e em seu lugar emerge a disputa, o sedentarismo, o território. Farinha pouca, meu pirão primeiro.
Tem início o processo de desumanização que será fundamental para a coisificação que o oportunista sistema capitalista carecia.
No ego se aloja a racionalidade e a partir daí uma inundação de discursos encerra qualquer diálogo. A racionalidade, que é o suporte verificável do ego, sabe tudo, prescreve tudo, suporta tudo.
Quem primeiro nomeou a racionalidade foi Descartes. Afirmava que a existência vinha apenas depois do pensamento. “Penso, logo existo”. Criou uma prisão com isso. E erradicou o sentimento. A prisão cartesiana da razão.
Se antes dessa forma civil de existir era a intuição que palmilhava os encontros, com a emergência da racionalidade como forma social de distinção as linhagens se romperam. O filho se separou do pai e se isolou do irmão.
Depois a família nuclear completou o processo. O pai era a linhagem de mil gerações; o irmão era o parceiro de caça. O sujeito isolado passa a ser um objeto, uma coisa, uma lavra. Ação que prepara a terra para o cultivo. Passará a ser cultivado como um produto.
O ego assume seu potencial de desejo como se fosse uma espécie singular de autonomia. Como se viesse de si, de dentro, de sua lavra. E então se confunde com os deslocamentos fragmentados que os desejos proporcionam. E ego se fecha e se torna uma concha protetora diante de ameaças: de deus, do pai, do padre, do professor, do patrão.
Iludido pelo fragmento, o ego anseia desesperadamente ser íntegro. E cultiva dentro de si a ilusão das pérolas. Mas é já de feridas que trata. Enovelando esse corpo estranho, o organismo, o território se defende dos ataques externos.
Perdeu sua perspectiva de grupo, de parte, de complemento. Deixou de ser uma singularidade para se transformar numa metáfora. Abdicou das metamorfoses da vida pela concessão do pertencimento, da aceitação, da distinção.
Dessa forma, o ethos se degenera. Aquilo que era parte, aceitação das diferenças, reconhecimento da generosidade se transforma em hierarquia, em ordenamento, em dominação.
E diante do novo ethos, das hierarquias agora naturalizadas pelos esforços institucionais, nesse mesmo movimento acompanha uma moralidade que reafirma que a desigualdade é boa e deve ser reconhecida, respeitada.
A ideologia do egoísmo, que diz que isso é natural e é irrevogável, se fortalece com outros discursos ideológicos similares: evolução, progresso, desenvolvimento, consumismo.
Respaldados pelas instituições verticais da modernidade, os valores se consolidam e serão transmitidos de geração para geração, pelo pai, pela mãe, convictos que o ego é natural do ser humano.
Como um câncer peculiar, o ego dispõe o organismo que forjou de modo a preservar o máximo possível sua perpetuidade.
Estabelece um poço, um lago, um oceano de sofrimento para garantir que com a ausência de paz e a promessa da felicidade futura o sujeito se sujeite.
Esse poço também pode ser rastreado pela história. O martírio da culpa pelo pecado, de não ser reconhecido pelo pai a quem se honra, de negligenciar aquilo que o professor espera, de não prover a continuidade da família, de não agradar ao patrão.
O trabalho em sua forma muito específica, como tortura e doença, se apresentou como uma forma de dignidade. Nesse momento histórico, o ego se consolidou como uma ferramenta completamente internalizada e a psicologia surgiu para lhe dar suporte e virtualidade.
Toda sua simbologia passou então a prevalecer como um apêndice, uma inerência, e não como uma contingência que poderia ser subvertida.
Instado a se apresentar como um aparelho psíquico, o ego se dilui na naturalização da desigualdade e se oculta no interior do EU. Assim camuflado pode se dar a ver apenas como racionalidade.
A racionalidade então ganha autonomia. Cercada por dispositivos e uniformização e de padronização, a racionalidade, que num primeiro movimento pode indicar singularidade, aquilo que o indivíduo pensa, de sua elaboração exclusiva, a racionalidade entra em movimento para pautar um sistema.
Nesse ponto, o que era aparentemente singular passa a ser coletivo novamente e todos pensam e se movimentam segundo um ritmo genérico.
Agora é já uma visão de mundo compartilhada por muitos. A racionalidade, que habita cada um e todos, produz um sistema de dominação que, pelo desdobramento das instituições, tende a se tornar hegemônico. E se alastra numa colônia de egos coordenados. Se num primeiro movimento é voluntarismo, depois opressão, depois emulação, depois voluntarismo novamente, pois a racionalidade é o ego mas é também o poder que submete e convida a submeter e promete.
A heteronomia é exatamente o movimento da racionalidade. Uma forma de ver o mundo pautada, coletiva, sinóptica, gerenciada por cada ego como se fosse uma colônia, partes de um todo, elemento da totalidade. A racionalidade é o panóptico, a lente que orienta a percepção.
Essa estratégia de primeiro isolar o indivíduo, capacitar sua forma pensamento e depois reunir num todo coerente em que os conceitos estão já previamente traçados, faz com que o desmantelamento do ego seja um desafio, pois cada um imagina que o ego é o eu e que o eu é uma unidade de isolamento e competição com outros eus concomitantes.
O deslocamento de tais individualidades formando um todo e recebendo dessa totalidade as informações para prosseguir segundo um protocolo padrão faz da luta contra o ego uma forma épica de suavidades. Qualquer resistência contra o ego é inútil, pois é também do ego resistir. Ele se aloja onde houver dureza.
Como o ego está encouraçado pela racionalidade, tudo que for pensado será do ego, de sua lavratura. Ele é soberano no reino do pensamento. Então não se iluda quanto às dificuldades de esboroá-lo. O ego precisa de um inimigo muito mais formidável para se encolher. Esse inimigo sempre esteve aí dentro, sorrateiro, tímido, temerário pela soberania do ego. Esse inimigo é o sentimento. Sempre oculto pela sombra do ego.
O sentimento não formula hipóteses. Vive num fluxo permanente, em cujo trânsito se realiza de modo sempre incompleto. Está sempre de passagem por nós. Trafega por entre as fibras e as colônias que vivem dentro de nós.
Como o ego é a própria racionalidade, fica confuso com o sentimento que não pode explicar ou sequer rastrear. O sentimento é puramente intuitivo e, portanto, caótico. O sentimento não está preso ao circuito das configurações.
A racionalidade está em tudo que produzimos. Barthes diz que a língua é fascista não porque impede de falar, mas porque nos obriga a dizer de uma certa maneira.
Nisso, está muito distante do modelo de pensamento da racionalidade que é dicotômico, simplório, ambíguo. É justamente diante das táticas dos sentimentos que o ego produz o assombro. Como uma zona de indeterminação.
Mas o assombro pode se transformar em permanente rodopio para o tráfego dos sentimentos. É uma zona de interstício, de indefinição, de ruídos incongruentes que normalmente fazem rodopiar outros sentimentos ainda mais estranhos.
É aceitável para o ego, desde que por instantes, por um átimo, para logo depois se recompor em voláteis combustões.
Mas o sentimento é, ou pode vir a ser, uma outra forma de nos ligarmos ao mundo. Pois o sentimento é movido por energias, exclusivamente. E é também gerador de energias leves.
O sentimento é o responsável pelas conexões que são muito diversas das relações hierarquizadas pela racionalidade. As conexões são despretensiosas e fluidas como os próprios sentimentos que se encontram com os sentimentos daqueles que passam por nós durante nossa jornada pela vida.
Esse sentimento pode também ser gerado pelo serviço, nossa capacidade de servir incondicionalmente a tudo e todos que estiverem próximos de nós. O ego quer reconhecimento e retribuição, quer o obrigado a devolver o favor. O ego não compreende que a gratidão é ao cosmos e não a nenhum outro ego em particular.
O cosmos é a egrégora, essa abóboda das energias leves que se formam com os sentimentos em comunhão de tudo e de todos. O ego acredita que todo o mérito é seu mesmo e que é causa de tudo que promove.
Anular a manifestação do ego é fundamental para vivenciar uma vida boa, em plenitude, sempre em alegria e felicidade. Não se negocia com o ego, apenas devemos ignorar sua existência.
O sentimento é a comunicação absoluta entre os seres vivos. O sentimento não carece de tradução e é universal. Sentimos simplesmente.
Ao encarcerar as energias num organismo, num território, o ego transforma o etéreo num bloco, o coletivo num corpo, a legião num ser, a simbiose num resíduo e a diversidade num poço.
O ego dispõe o saco de tijolos como um apêndice, o poço sem fundo numa morada, a vitimização num hábito, o empoderamento numa armadura.
O sentimento, por outro lado, está sempre nu, é sempre livre, leve, solto em sua confusa jornada por entre as vidas, invadindo sem pedir licença os espaços mais secretos, vibrando em energias todas as sincronicidades.
O sentimento é sempre o ethos (a forma da relação) horizontal, a circulação energética das coletividades, a morada do homem, do animal, do espiritual, a constância do agir. Não pode ser rastreado nem aprisionado.
Está em serviço e seu deslocamento é intangível. O sentimento se desdobra sem capricho e se metamorfoseia em planos de equívocos, em estáticas sonoras, em movimentos deturpados.
O sentimento não tem memória e nem produz narrativas. Sutil, apenas transita todo o tempo, vagabundo e prosaico. Os sentimentos estão sempre em diáspora. Migram com a facilidade dos pássaros e deixam ocasos de sementes, húmus cautelosos, metamorfoses. Por isso os sentimentos são universos e cantam na língua do universo.
Enquanto a racionalidade é da terceira dimensão, os sentimentos são da quinta. Se ela é esforço e dureza, eles são suaves e minúsculas expansões. Se a racionalidade tem sua própria genealogia, os sentimentos são eternidades e infinitudes.
A racionalidade é colonizadora e produz sensações que podem ser confundidas com os sentimentos. Essas sensações produzem sofrimento, geradas pela ilusão imposta pela racionalidade como uma descarga química capaz de gerar energias densas. Por isso é importante não confundir sentimentos com sensações. Os sentimentos são vibrações que não podem ser explicadas, pois nutrem-se do cosmos.
No entanto, algumas ações podem atrair os sentimentos para dentro de nós. Masturbação, autoconhecimento, servir incondicionalmente, palavras-mantra SÓ ALEGRIA E FELICIDADE.
O ego é meticuloso e incansável, enquanto o sentimento é fluido e desinteressado. Enquanto o primeiro se aloja e se apega, o segundo transita, indiferente aos obstáculos. Se o ego é volume e espaço, o sentimento é sutil e permissivo. O sentimento não se liga a nada e passa por entre as frestas, invisível.
O ego é nocivo e tóxico; o sentimento é benfeitor e repleto de alegria e felicidade. Um é forte e indeterminado; o outro é frágil e peculiar.
Mas, sobretudo, o ego é dispensável como uma roupa velha e puída. E o sentimento liberta como a nudez primeira, a pele sobre a carne, as carícias suaves do amor.
Podemos traçar um inventário para os recursos do ego: sofrimento, altivez, inveja, orgulho, soberba, capricho, desdém, indiferença, ódio, desprezo, manipulação, vitimização, apego, apropriação, usurpação, cobiça, posse e por
aí vai.
Mas a negligência do ego é causa de grandes sofrimentos. Tomemos como exemplo as relações ordinárias que todos compartilhamos e os abusos que cometemos uns com os outros.
O abuso sempre começa sem razão e se torna razoável. Alguma agressão fortuita, feita em público ou de modo privado, sendo que o acerto é sempre privado. Então a parte que agride convence a parte agredida que deve relevar, pois a relação é satisfatória.
É uma relação de poder muito sofisticada porque não é imposta de cima pra baixo, mas se gesta na horizontalidade da relação afetiva. Está quase sempre travestido por um cuidar do outro. Os abusadores quase nunca são arrematadamente cruéis e tem uma autoimagem muito elevada de sua peculiar generosidade.
O abusador opera exclusivamente no nível da racionalidade, enquanto o abusado vivencia o emocional. E o relacionamento abusivo acontece quando o racional prevalece sobre os sentimentos. Há um menosprezo pelo sentimento do outro.
O abuso tem muitas formas, desde um safanão, uma patada, uma grosseria descuidada, um gesto sútil. Não precisa se manifestar como violência física para ser abuso, mas sempre nega a humanidade do outro.
Depois de um tempo, o evento se repete, mas agora só no âmbito privado. Então começa a relação abusiva. A parte ofendida faz o cálculo que a relação ainda vale a pena e releva uma vez mais.
Na vez seguinte, a vergonha entra no jogo da relação: a parte ofendida se envergonha de si e do outro e se cala, produzindo uma resiliência tóxica. Aqui começa uma simbiose, uma forma perversa de cumplicidade em nome dos benefícios da relação, mas principalmente se torna um segredo. E aqui vira rotina, pois ciclicamente voltará a acontecer. Passa a ser um hábito.
A parte que ofende se torna cada vez mais negligente, embora saiba do abuso, pois ele só acontece no âmbito privado e nunca mais no público: cada um sabe que há ali uma indignidade corrosiva e latente. Normalmente, nas relações abusivas, toda reação é aplacada com a lógica da relação satisfatória. Há sempre uma contabilidade que reafirma a continuidade.
O abuso está potencialmente presente em todas as formas de relação e degenera a todos os envolvidos, mas a pessoa abusada vê minando sua estima enquanto o abusador naturaliza a relação tornando normal a toxidade.
Nesse sentido, é sempre uma patologia e como tal será somatizada pelo organismo. Mestre Pastinha é mais que adequado a essa situação: “quem bate não se lembra, quem apanha nunca esquece”.
Como estou num caminho de autoconhecimento, só depois de ter passado pela experiência daquele que sofre o abuso pude perceber que também sou um abusador. Agora começa minha jornada para deixar de sê-lo.
John Milton, em seu libelo contra a monarquia inglesa, escreveu O Paraíso Perdido no séc. XVII também como um arauto do isolamento do homem operado pelo ego. Sua metáfora religiosa era a única válida e plausível então.
A obra de 1667 narra o aparecimento do ADVERSÁRIO, significado hebraico do termo Satanás, da árvore do conhecimento (a educação, a ciência, o trabalho) como representação da queda do homem (sua desumanização, sua coisificação, sua reificação) e de sua separação da natureza divina a que pertencia, implicando em todo sofrimento que daí adviria.
O ego é o único adversário a ser vencido.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade do Sul da Bahia, permacultor e colaborou para Pragmatismo Político
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