Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político
Uma câmera de segurança registrou a morte do preto. O nome dele é desconhecido. Mas é da cor preta, segundo consta na certidão de nascimento do em-questão.
O preto nasceu na favela. O nome do seu pai também é desconhecido. Mas era um preto que se envolveu com outra preta. Ambos pobres. A mãe, que virou mãe-solo, ficou ainda mais pobre.
A mãe do preto em-questão, que também teve outros pretos, seguiu a cartela de instruções de criação dos filhos, inclusive lhes distribuindo tapas, de vez em quando. Como eram pretos, sempre era bom, também consta na tácita cartilha, apanhar mais.
Mas fato é que o preto mais novo enveredou proutros lados. Viciado, começou cometendo pequenos furtos, ainda na escola, antes de ser expulso.
Depois, resolveu investir e comprou um trinta-e-oito. Como tinha que ter retorno no gasto, aumentou a vulta e a frequência dos crimes, agora, assaltos.
A empresa estava indo bem. Ele conseguia sustentar seu vício e ainda lhe sobrava pra algumas extravagâncias.
Mas como ele poderia imaginar que naquele sábado de manhã – estava até um dia ensolarado, propício, ele julgou, a assaltos ligeiros -, em frente à inocente escola de ensino fundamental, estaria uma desfardada agente da lei? Sim, pra desviar ainda mais sua desconfiança, era uma mulher. Pois ele queria só dois ou três celulares e algumas notas soltas. Mas a mulher – uma cabo -, sacou a sua arma e abriu fogo contra o preto.
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Foram dois tiros. O preto demorou ainda alguns minutos pra morrer. Momentos de pura falta de ar e de arrependimento. Teve ainda tempo de lamentar a primeira vez que mandou a professora enfiar o giz na bunda.
Gostou da sensação de equivocado deslumbre que causou aos colegas do sexto ano. Desde então, não mais teve uma conduta condizente com o que a sociedade espera. Sobretudo a parte branca dela. Branca como era a policial que lhe desferiu bala à queima-roupa.
A cabo, por sua vez, sempre fora exemplar aluna. Longe de ser rica, teve que estudar muito pra passar no concurso da Polícia. Trabalhasse no Rio Grande do Sul, estaria com seus salários parcelados. Não gostava de bandido, por óbvio. Mas Deus sabe como ela lamentou ter que reagir ao assalto. Até tentou não mirar no coração, mas as armas de fogo são feitas pra matar. E matou. Ela gritou pra alguns transeuntes pedindo que ligassem pro SAMU e pro 190. Mas quem quer se envolver? Quando o socorro chegou, o preto já jazia na contramão atrapalhando tráfego. Ao chegar seus colegas de farda, ganhou abraços de conforto e dizeres de congratulações pela ação corajosa e heroica.
A sociedade aplaudiu.
A mãe do preto chorou. Meus pêsames a ela que, embora lhe digam o contrário, se sente culpada.
O Governador, senso de oportunidade, condecorou a militar.
Um preto-pobre virou bandido. Comprou uma arma. Usava-a.
Uma policial em folga teve que agir, pondo sua vida em risco. Parabéns a ela.
O Presidente anunciou que o Brasil voltou(,) vinte anos em dois.
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*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”
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