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Quem acusa a esquerda de “não fazer autocrítica”?

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Não sei se vivemos num divã de psicanálise, num confessionário católico ou numa sessão de terapia para casais, mas o fato é que nos últimos quatro anos a esquerda vem sendo acusada e vilipendiada por “não fazer autocrítica”

Fernando Horta, Jornal GGN

Não sei se vivemos num divã de psicanálise, num confessionário católico ou numa sessão de terapia para casais, mas o fato é que nos últimos quatro anos a esquerda vem sendo acusada e vilipendiada por “não fazer autocrítica”. Os setores da direita não usam esta rebuscada palavra, preferem mesmo que a esquerda se imole em praça pública. Os pedidos incessantes (e irritantes) vêm de pessoas da própria esquerda que acreditam que política advém da legitimidade ética. Assim, tomar banho na rua, lavando suas partes pudendas (como diria minha avó) traria, de alguma forma, um enfraquecimento dos setores fascistas e golpistas.

Definitivamente eu não entendo esta lógica, muito porque os mesmos grupos que fazem esta defesa não conseguem – com suas supostas trajetórias límpidas e alvas – se colocar contra o golpe ou o crescimento do fascismo no Brasil com alguma efetividade. Parece que as evidências não ajudam à tese da pureza da alma transmutando-se em pureza política e mais uma vez em votos. Há qualquer coisa aqui, mal explicada ou mal-entendida, que faz com que este caminho não seja nem direto nem evidente. E os resultados ainda mais duvidosos.

A tese da autocrítica é filha da tese do sequestro da ética pela esquerda. É uma filha caçula da errônea ideia de que toda a esquerda é ética e toda direita vil. Eu usei o termo “toda” para dar uma força ao argumento que ele não tem. Contudo, diminuir a força da generalização não diminui o erro do argumento. Toda esta linha narrativa, que força a entrada de uma moral cristã nos caminhos da esquerda, é parte da criação política que foi usada para atacar Stalin, depois da segunda guerra. Quatro figuras retóricas aqui são essenciais: uma releitura de Maquiavel negando-se que os fins justifiquem os meios, a construção mítica do revolucionário ético e superior perseguido e morto pelo estalinismo (Trotsky), o apelo à moral religiosa cristã em oposição ao comunismo ateu (marca de uma das linhas de ataque mais usadas contra a URSS) e o ato fundador da autocrítica inicial, exaltada pelo ocidente e que foi causa das fraturas na esquerda. Falamos, por óbvio, das “denúncias” de Krushchev, no famoso 20º Congresso do Partido Comunista.

Ocorre que estes quatro fatores são construções falhas com dados empíricos tremendamente errados. Fruto de uma luta de narrativas entre 45-60, momento em que o capitalismo ocidental temia – com fundadas razões – ser superado pelo socialismo real soviético.

O mito do revolucionário eticamente impecável, o qual encarnou em Trotsky após sua morte, é uma terrível construção baseada em erros imensos. As pesquisas atuais mostram que Trotsky foi tão brutal quanto Stalin na construção do modelo soviético. Trotsky defendia, por exemplo, castigos físicos e prisão para trabalhadores que não alcançassem metas, no início da URSS. Trotsky foi responsável direto pela dizimação dos soviets na Ucrânia, quando provocou o exército alemão ao extremo, sem aceitar seus termos e nem ter condições de se opor a eles na negociação de Brest Litovsky. Diversas fontes mostram os contatos de Trotsky com o mundo ocidental (especialmente a Inglaterra) ainda quando dentro da URSS. Após seu exílio, Trotsky aumenta o tom das críticas ao modelo soviético, ao mesmo tempo que dissimula seus contatos com o ocidente. O objetivo de Trotsky era semelhante ao dos EUA, Inglaterra, França e mesmo da Alemanha: fazer cair o regime de Stalin. Mas Trotsky já havia dado inúmeras provas de que seu idealismo turvava suas análises. Ele acreditava poder controlar a remoção de Stalin para “recolocar” a “revolução” em seu prumo, com ele, Trotsky, na figura de timoneiro. Stalin não pagou para ver o quanto haveria de boa vontade do ocidente para com a URSS.

A leitura de que “o fim NÃO justifica os meios”, se opondo inicialmente a Maquiavel é outra tremenda incongruência. Primeiro porque não se encontra em Maquiavel esta frase ou mesmo esta ideia da forma como está posta. Diversas leituras de Maquiavel imputam a ele pensamentos que não foram seus e, especialmente, preocupações que não estão expressas nos livros do italiano renascentista. Gramsci ajuda nesta crítica ao fazer a releitura a partir da ideia do “príncipe moderno”. Em Maquiavel, a centralização do poder não tem como objetivo outra coisa que não afastar a barbárie, ainda que haja a necessidade do uso moderado dela. A figura do centauro, constante nos escritos de Maquiavel, explica o papel do governante. Ora racional como homem, ora bestial como o cavalo. A forma do argumento contra Maquiavel era destinada especificamente a Stalin. No sentido de que a imagem futura do comunismo e todas as suas vantagens morais, materiais e históricas não poderia valer a violência do presente. Ocorre que o ocidente nunca agiu conforme esta regra. E, enquanto financiava diversos materiais propagandísticos com este argumento, a CIA mandava matar Jacobo Arbenz, Patrice Lumumba e Chê Guevara, por exemplo.

A denúncia de Kruschchev no 20º congresso é também outra parte deste quebra-cabeças que foi usada de forma errada. O discurso “secreto” foi conseguido pelas agências de inteligências de Israel e repassada aos EUA. Nele Kruschchev denuncia Stalin por “crimes” e racha toda a esquerda do mundo. Até hoje, quase a totalidade do que se conhece dos “números” das “atrocidades” de Stalin vem somente daquele discurso! A partir de 2005, com a abertura de arquivos e documentos sensíveis, as pesquisas empíricas mostram que Stalin não se diferenciou de NENHUM líder da época. Nem Roosevelt, Churchill, Truman ou De Gaulle quanto ao uso civil da violência ou o uso das instituições jurídicas contra opositores. Para os amantes da morte, que eu chamo de “necrocontabilistas”, as fontes atuais colocam as mortes do período de Stalin na casa das centenas de milhares (e não dezenas de milhões). Nestes números incluem-se o resultado de políticas ou de ações de governos locais que hoje sabe-se tinham muito maior autonomia frente ao governo central soviético do que se supunha na década de 70. Neste novo contexto, a monarquia da Inglaterra e o rei da Bélgica se tornam os maiores genocidas da História. Qualquer pesquisa sobre a África ou a Índia vai mostrar que aqueles tempos eram monstruosos para todos os lados e a História foi usada como propaganda.

O quarto elemento que compõe a tese que sustenta a “autocrítica” da esquerda é a moral Cristã. Interessantemente o mais fraco e mais conhecido argumento de todos os quatro. Primeiro porque se sabe de toda a construção narrativa sobre Jesus. A história fala em “Cristo histórico” para se referir ao agitador social que teria nascido na Galileia por volta do ano 7 antes de Cristo. Sim, por erros de matemática, Cristo nasceu no ano 7 antes de Cristo. E este homem – frise-se homem – é fantástico pelo seu valor histórico. Mas, era preciso recontar a sua história, apagando as qualidades de questionador dos poderes constituídos, humanista, justo, e voltado para a coletividade e inseri-lo numa narrativa de justificação das diferenças sociais, da promessa de vida eterna em troca de submissão na vida terrena a uma moral conservadora e da outorga a ele do título de “rei”. Sabemos, pelas pesquisas atuais que o Cristo histórico jamais aceitou ser colocado na condição de separação simbólica entre os homens. Como que portador de um direito de superioridade por nascimento (que depois viria a criar a noção do direito divino dos reis e mais adiante ser transformado num dos princípios do poder do Estado). De qualquer forma, por muito tempo a Igreja trabalhou para construir um elemento moral aglutinador que não está presente no Cristo histórico, nem na história da Igreja antiga, nem na Igreja moderna e muito menos neste bando de Pastores contemporâneos que exploram a boa fé das pessoas mais humildes com o silêncio cúmplice do Estado brasileiro.

A esquerda e especialmente o PT precisam sim fazer autocrítica. Mas isto é uma questão apenas interna. E eu espero que ela seja feita nos termos mais clássicos do pragmatismo marxista. Espero que ela seja feita com vistas à manutenção e aperfeiçoamento das utopias que deram origem à esquerda, mas sem deixar de perceber a materialidade política. Mais do que isto, não dou o direito a nenhum apoiador do capitalismo, das ditaduras ou da sociedade atual de cobrar em bases morais uma “autocrítica”. E também não dou o direito de dissidentes intelectuais idealistas que repetem estes mesmos ataques morais sem, contudo, nunca terem tido a responsabilidade ou experiência real de governo de cobrarem “autocrítica” de quem quer que seja. A História se encarregará de criticar a tudo e a todos, até lá é à senhora Política que devemos responder. E ela é pragmática e certamente não vê sentido de que alguém, no meio do campo de batalha, se ajoelhe e peça perdão pelos seus pecados. A menos, claro, que seus defensores queriam com este ato dar a “extrema-unção”.

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