“This is America”: Uma mensagem que ultrapassa fronteiras
Lucien de Campos*, Pragmatismo Político
Se ainda não assistiram, sugiro-vos a assistirem o novo vídeo “This is America”, de Donald Glover (também conhecido como Childish Gambino), e que ultrapassou 30 milhões de visualizações após dois dias de estreia. É, de longe, a música do ano até agora, não por causa da qualidade da letra, e sim pela reprodução de imagens que abriram espaço para debates e interpretações sobre problemas sociais nos Estados Unidos. Mas, além disto, sua mensagem pode ultrapassar fronteiras, basta adaptá-la à nossa realidade. Bem mais do que expor minha curta e simples opinião, escrevo este texto na intenção de despertar um debate, um pensamento crítico, valor cujo devemos exercer como cidadãos.
O vídeo já inicia com Gambino executando um senhor afrodescendente com um tiro na cabeça. Antes de atirar, o cantor faz uma espécie de careta ao arregalar o olho direito, provavelmente fazendo referência à Uncle Ruckus, um personagem de uma história de quadrinhos norte-americana que pensa ser branco e com tendências racistas. Em ótima performance, diga-se de passagem, o cantor continua a cantar e se distanciar da vítima como se nada tivesse acontecido, enquanto figurantes arrastam o corpo para fora das câmeras. Aliás, Gambino continua a utilizar armas no decorrer do vídeo. Talvez um dos seus objetivos seja demonstrar que as armas valeriam mais que a vida dos afrodescendentes.
“Yeah, this is America! Guns in my area!”.
Armas em todas as áreas. É assim na América, onde armar-se torna-se em uma ação cultural. É assim na América, onde um adolescente menor de idade consegue adquirir uma arma mais facilmente do que comprar cerveja. É assim na América, onde famílias têm como hobby sair para comprar armas. É de fato uma ação cultural enraizada na sociedade e estimulada pela elite política e industrial.
Quem sabe o porte de armar seja um dos pontos de reflexão do vídeo que podemos relacionar com a realidade brasileira, visto que surge um presidenciável cujo carrega o discurso de liberalização do porte de armas em território nacional. Passível de reflexão e adotando um ar satírico, o canal de humor “Embrulha para Viagem” lançou um vídeo a respeito deste tema. Seja você contra ou a favor, vale a pena conferir:
Voltando ao vídeo, Gambino também arrisca passos de dança Gwara Gwara com estudantes negros. A seguir, em mais uma cena de sublime manifestação antirracista, Gambino novamente atira contra um coral de cantores afrodescendentes de uma igreja, fazendo alusão ao massacre de Charleston em 2015.
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Seguindo o roteiro do vídeo, o cantor volta a sobresair-se num ambiente de revolta popular com presença de aparato policial. Jovens filmam o enfrentamento entre manifestantes e polícia no exato momento em que a canção disserta:
“This is a celly, that’s a tool”. Porém, enquanto nos ocupamos a ver Gambino dançando com os estudantes, talvez não nos demos conta da desordem que se instala no plano de fundo. Grande parte do público tem interpretado essa cena como uma mensagem de que o entretenimento consegue distrair a sociedade dos reais problemas sociais. As manifestações em sua maioria são intencionalmente abafadas pela grande mídia simplesmente quando não convém aos seus interesses. Neste meio-temo, é provável que sejamos levados a permanecer consumindo a absorvendo novas tendências propositalmente criadas para consumo e distração. É o fenômeno que o filósofo e sociólogo Jürgen Habermas denomina como des-razão social, gerado por um consumismo cego e alavancado pela indústria cultural.
Este fenômeno afeta toda a sociedade civil global. Não há compatibilização dos interesses, uma vez que preferimos seguir as tendências lançadas pelo Instagram, Facebook e Youtube. Isto não significa que as pessoas deveriam deixar de seguir o entretenimento. Significa não cair na tentação de uma completa distração que o entretenimento acarreta. É desejável, portanto, procurar compatibilizar interesses pessoais com os de cidadania.
Ter consciência dos problemas sociais e manifestar-se para resolvê-los é um valor democrático ultimamente adormecido. Facilmente são esquecidas tragédias das quais revelam ser a ponta de um ‘iceberg dos problemas sociais’, como Marielle Franco, Marcondes Namblá, entre outros. Facilmente é permitido que a distração de memes e vídeos virais tomem conta da nossa consciência.
No final do vídeo, um homem aparece com o rosto coberto com um lenço montado em um cavalo branco. Esta cena pode estar correlacionada ao Novo Testamento da Bíblia, onde o cavalo branco de um dos quatro cavaleiros do Apocalipse simboliza a morte e a vitória na sequência de um confronto violento.
Através deste vídeo Gambino faz um favor ao nosso pensamento crítico ao trazer os problemas do racismo, do porte de armas e da violência policial como uma mensagem que não só se insere na realidade norte-americana.
Perguntado sobre a repercussão do vídeo, o cantor afirma: “só gostaria de fazer uma boa música na qual as pessoas pudessem ouvir no dia quatro de julho“.
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*Lucien de Campos é doutorando em Relações Internacionais pela Universidade de Lisboa e colaborador em Pragmatismo Político.