Após todo estado de suspensão, há sempre uma quarta-feira de cinzas. Era o que se esperava do Brasil pós manifestações de junho de 2013, mas isso não aconteceu
João Elter Borges Miranda*, Pragmatismo Político
O governo Temer não quer mais ser o governo Temer. Ao menos na aparência. Com a imagem abalada pelos escândalos de corrupção, adoção de medidas impopulares e aprofundamento da miséria social e da crise político-econômica, Michel Temer decidiu fazer o que os marqueteiros chamam de “rebranding” – é uma estratégia de marketing, no qual uma organização decide alterar a sua denominação, ou o seu logotipo, ou o seu design, ou outros elementos identificativos, para formar uma nova identidade.
Foi com esse objetivo que o partido do presidente voltou a adotar a sua sigla original, MDB (Movimento Democrático Brasileiro), legenda que carrega a identidade de ter feito oposição à ditadura militar, além de ter reunido os interesses e ações dos movimentos sociais e sindicais que faziam resistência ao regime.
Esse caminho – recurso metodológico que é, cá entre nós, no mínimo duvidoso – foi adotado também para buscar uma nova identidade ao governo. Temer recentemente resolveu se comparar a Juscelino Kubitschek para “comemorar” os dois anos de governo. “O Brasil voltou, 20 anos em 2”, dizia o convite para a festa no Palácio do Planalto, um esforço capenga com o objetivo de buscar se assemelhar com o bordão de JK que prometeu fazer o país progredir “50 anos em 5”. Como bastava tirar a vírgula para definir o óbvio, rapidamente trocaram o slogan para “Maio/2016 – Maio/2018: o Brasil voltou”.
O resultado foi, portanto, muito pouco fértil, senão grotesco. E, vale ressaltar, esse esforço do governo golpista se dá para perpetuar o processo de implementação de medidas antipopulares que promovem a intensificação da acumulação da renda nas mãos da burguesia. Temer faz isso porque, como sabemos, ele é um lacaio do capital. Nesse sentido, o nosso principal inimigo não é somente esse político e o seu governo, mas também o capital que, historicamente, está encastelado no Estado.
Mas, cabe perguntar: voltou para aonde? Nas minhas poucas luzes, eu diria que, com Temer à frente do Planalto, migramos da lama para o caos.
Digo que saímos da lama porque não pauto a análise da história recente do Brasil na retórica de que há uma descontinuidade profunda entre os governos do PT e o governo atual. Portanto, não considero que antes da chegada de Temer, via golpe, à cadeira da presidência, estávamos vivendo em um mundo maravilhoso. Essa mistificação do período anterior é perpetrada, em grande medida, por uma parcela da esquerda que está machucada e traumatizada com o golpe que tirou Dilma do poder.
Para essa esquerda, tudo que vivenciamos após a queda de Dilma, tudo que acontece de negativo no Brasil desde 2016, é reflexo do golpe. Ou seja, após o golpe, “todo dia é um 7 a 1”.
Mas não é bem assim. “Da lama ao caos, do caos à lama, um indivíduo nunca se engana”, nos ensina a música.
Vale recordar que em 2014 somente a Dilma se elegeu, as suas ideias não. Como vimos, ela promoveu um “cavalo-de-pau”, ou, nas palavras dos cientistas políticos, um “estelionato eleitoral”, que é um giro político em que candidatos eleitos com uma plataforma ideológica adotam, logo após as eleições, um programa de signo ideológico contrário. Qualquer um que ouse refletir sobre esses problemas, logo é taxado de “a esquerda que a direita gosta”, “isentão”, “golpista”.
Na contramão do interesse público, o que Temer promoveu foi o aceleramento e aprofundamento de medidas neoliberais, muitas das quais já vinham sendo implementadas ainda no Dilma II, como o ajuste fiscal. A ponte para o passado de Temer é responsável, assim, pela aceleração e intensificação do processo de retirada dos direitos dos trabalhadores; pela ampliação do fluxo de capitais da nossa riqueza para o sistema financeiro internacional; pela consolidação do domínio econômico, político, cultural e da propriedade intelectual norte-americana sobre a América Latina; pelo arrocho salarial; pelo aprofundamento da privatização do Estado brasileiro; enfim, o governo Temer é responsável pela implementação de um programa efetivo de mudanças neoliberais, com prazos e caminhos, que preserva os interesses dominantes, em detrimento de nós – os “de baixo”.
Em resultado, vemos altos índices de rejeição; destruição de direitos trabalhistas; flagrantes de corrupção; aumento de impostos; congelamento dos investimentos sociais por duas décadas; deturpação da educação; crise econômica.
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Em termos práticos, isso significa que o preço da passagem de ônibus subiu, a gasolina, gás, diesel e cesta básica também. Temer concentrou ainda mais a renda, aumentou a mortalidade infantil, fez o brasileiro voltar a cozinhar no fogão a lenha, aumentou o número de desempregados e não passa um dia sem ser novamente alvo de denúncias. A versão barata do Nosferatu não pode, então, nem sair da tumba, tamanho repúdio que inspira.
Na época do processo de derrubada de Dilma, Temer dizia que o país precisava novamente se unir e se afirmava como o líder que cumpriria essa tarefa. Pois ele conseguiu, mas foi contra o seu governo. Basta balançar qualquer árvore que dela cairá dois ou três que querem ver a cabeça de Temer rolar ladeira afora.
Por isso, como uma barragem de gelo tentando segurar uma represa de lava, o governo Temer, extremamente autoritário e autocrático, faz de tudo para controlar, reprimir ou neutralizar a inquietação, a revolta e a pulsão popular, como vimos recentemente na repressão promovida contra a greve dos caminhoneiros. Aliado aos interesses do grande capital, Temer faz de tudo para empurrar as pessoas para a adaptação, mas não consegue.
As pessoas instintivamente sentem que o capital prende-os com mais firmeza à absurda lógica do consumo do que as correntes de Hefaísto agrilhoaram Prometeu ao rochedo; presas aos gigantescos engarrafamentos das grandes cidades, diante da crescente poluição do nosso mar, nossos rios, nosso ar, diante da destruição da nossa natureza, sentem que a nossa civilização criou formas de vida que beiram a inviabilidade, regidas por inúmeras necessidades que nunca serão preenchidas a contento.
Buscam racionalizar sobre como chegamos até aqui; buscam nos jornais, na televisão e noutros meios uma explicação. Raros os momentos em nossa história em que tenha se falado tanto de política quanto agora. Quando as pessoas não estão nas ruas brigando contra o sistema, deslocam a raiva nos xingamentos proferidos nas ruas de bytes e asfalto, na ironia com piadas, nas relações cotidianas simbolicamente violentas, ou buscam fugir da realidade pelas portas de escape disponíveis na Netflix, na TV, no templo que clama à salvação, no videogame, nas substâncias lícitas ou não que prometem nos transportar para além da realidade massacrante.
Contudo, nem sempre essas mediações conseguem aplacar a força da revolta popular, o que gera explosões espontâneas como as manifestações de junho de 2013 e a greve dos caminhoneiros. Emoção. Comoção. Excitação. Surpresa. Medo. É a confluência e o entrechoque desses e de outros tantos sentimentos que compõe as multidões sincréticas e singularizadas que dão corpo àquelas grandes manifestações e outras tantas que veremos se formar no país.
Nesses momentos, o homem sério que contava dinheiro para, o faroleiro que contava vantagem também para; e a namorada que contava as estrelas compõe a marcha, empoderando-se.
Normalmente, após todo estado de suspensão, há sempre uma quarta-feira de cinzas. Era o que se esperava do Brasil pós manifestações de junho de 2013, mas isso não aconteceu.
A realidade concreta brasileira evidencia que o estado de suspensão não se encerrou desde então. Pelo contrário, aprofunda-se cada vez mais, provocando verdadeiros terremotos na ordem instituída, cavando um vazio de poder que se aprofunda cada vez mais. Cinco anos depois, junho de 2013 em vários sentidos ainda não se encerrou.
Nas universidades, nas favelas, nas aldeias indígenas, nos quilombos, nas periferias, nos coletivos e ocupações urbanas, nos empreendedores criativos, enfim, em vários lugares existe um turbilhão de energia transformadora que se retroalimenta constantemente.
Desde 2013, vemos em nosso país a população intensamente ativa. As exigências de reconstrução política, de eliminação da corrupção, além de um descontentamento muito difundido com relação aos mecanismos políticos, percorrem de alto à baixo a população brasileira e são manifestadas a todo o momento, principalmente no mundo sem lei chamado “redes sociais”.
Junho de 2013 significa, assim, o fim de um ciclo histórico que começou após o fim da ditadura, a chamada “Nova República”. Ao invés de se formar um novo ciclo, entretanto, vivenciamos desde então um vácuo como nunca visto na história brasileira; vivenciamos um Estado de Suspensão que percorre o Brasil até hoje – e que, provavelmente, não se encerrará tão cedo.
Vale lembrar que, na história de nosso país, sempre que um ciclo se encerra, outro que já estava em gestação acaba por se tornar hegemônico. Foi assim com o fim da República Velha, substituída pelo Estado Novo. Foi assim com a Ditadura Civil-Militar, substituída pela Nova República.
Após a Nova República se desmanchar no ar, nada a substituiu, deixando o país em um estado de suspensão, no qual não somos uma coisa nem outra e as formas como estamos acostumados a lidar com os desafios da realidade não funcionam mais. E as novas formas, que substituiriam as antigas, ainda sequer estão engatinhando. As eleições de 2018, obviamente, estão longe de ser um grande fechamento desse interregno, compondo um novo ciclo.
Diante dessa falta de um horizonte definido, não temos ainda uma visão de longo prazo e as nossas ações consistem quase que exclusivamente em reagir às crises mais recentes.
O fato de nós brasileiros vivermos em estado de suspensão é uma questão nacional que está longe de ser meramente nacional. É parte de uma crise de hegemonia mais ampla, a da própria estrutura capitalista, que entrou em um colapso estrutural a partir dos anos 1970.
Após isso, as crises cíclicas são cada vez mais frequentes, entre períodos progressivamente mais curtos, enquanto que as retomadas são mais frágeis e débeis. São crises recorrentes, com diferentes epicentros, ora latino-americano, ora russo, ora asiático, ora americano. Obviamente, a acumulação não foi interrompida. Contudo, não houve mais e, provavelmente, não existirá mais, acumulação próxima aos patamares históricos anteriores.
Em consequência, no mundo todo são realizadas manifestações anti-sistêmicas, principalmente após a crise de 2008, que pode ser considerada como a maior após o início da crise estrutural. O capitalismo patina para recuperar-se à custa da intensificação das relações de opressão. O povo, diante disso, reage.
Na Europa, o emblema disso foi o movimento chamado de Indignados e, nos Estados Unidos, de Ocupe Wall Street. No Oriente, a Primavera Árabe. De diferentes maneiras e abordagens, os ativistas culpavam os governos e as instituições financeiras pelo crescimento das taxas de desemprego e da desigualdade em países atingidos pela crise de 2008 – e continuam culpando. Junho de 2013, nesse sentido, é parte de uma eclosão muito maior, mundial, de insurreições contra o sistema.
Na política institucional, o resultado disso foi a radicalização dos lados, dos posicionamentos, dos partidos, das ações. Consequentemente, em grande parte do mundo, observa-se que esquerda e direita estão migrando para os extremos, radicalizando-se. Vemos isso com Trump, nos Estados Unidos; com Le Pen, na França; com o Partido (de extrema-direita) Nacional Britânico (BNP); com Bolsonaro, no Brasil.
Em 2017, pela primeira vez desde 1945, a extrema direita entra no Parlamento alemão. Criado contra o euro em 2013, o partido Alternativa para Alemanha (AfD) obteve 12,9% dos votos com discurso islamofóbico e anti-imigração.
Portanto, a extrema direita fortalece sua presença no mundo. Dos EUA à Ásia, passando pela Europa e pela América Latina, os extremistas ganham força.
Diante disso, o que fazer?
Num mundo cada vez mais de extrema-direita, “o que fazer? ” é a difícil pergunta, a grande questão, que nós de esquerda precisamos caminhar na construção de respostas, se quisermos sobreviver.
Precisamos aliar todo o acúmulo gerado em anos de atuação e inventar novas formas de organização, articulação e participação, com o intuito de construção de um movimento massificado globalmente. Para isso, não basta dialogar somente com os pares. Temos que ir além e dialogar com pessoas que não fazem parte do nosso cercadinho. Para estabelecer diálogo, precisamos derrubar os muros e grades que nos separam e nos unirmos, não para dar fim às diferenças que nos caracterizam, e sim para repensarmos e refundarmos, juntos, um lúcido projeto de sociedade que não deixará espaço para que haja mais irregularidades e barbáries.
Unidos encontraremos respostas para transcendermos as aporias de nossa realidade atual; teremos mais forças para lutar contra a corrupção que permeia partidos, ideologias, poderes, instituições; vislumbraremos mundos novos e infinitas possibilidades de renovação do sistema político e fortalecimento da democracia.
Portanto, não se trata simplesmente de retornar às velhas estéticas e formas de organização, que em grande medida já estrangulou suas possibilidades, repete-se no automatismo e vive a ressaca dos seus excessos. Do mesmo modo, deve ser visto com ressalvas o discurso do horizontalismo absoluto e a recusa de qualquer conexão institucional. De todo modo, a falsa crença de ser o detentor da “verdade absoluta” não pode inviabilizar a errância experimental, assim como os possíveis erros não podem ser a contraprova da importância de experimentar e justificativa para a volta aos velhos princípios.
Ou seja, precisamos construir um movimento de massas, pautado por uma lógica regida de baixo para cima. Existem muitas potencialidades abertas a partir de uma rede mais distribuída e com as possibilidades mais plásticas de organização orientadas por segmentos heterogêneos numa composição em pontilhado.
Precisamos refletir uma gramática e estética avassaladora que conquiste corações e mentes. Para tanto, precisamos lotar parques, auditórios de empresas, entrar em contato direto com as pessoas, ouvir mais, ideologizar menos.
Sem dúvida fazer o trabalho de base é muito mais difícil do que ficar no conforto das decisões de cúpula. Num misto de culpa cristã e preocupação política, qualquer bom militante de esquerda se pergunta hoje: “Ah, se usarmos a abordagem certa, se adotarmos o discurso que os desperte, se marcarmos em um horário e local mais adequado, se encontrarmos formas de lhes falar diretamente, se eles nos escutassem”.
Sem dúvida é difícil, mas, já dizia Brecht, muitas coisas são necessárias para mudar o mundo; a paciência fria e a infinita perseverança são algumas delas.
É preciso massificar, globalmente. Por isso, sempre me causa irritação ver as pessoas falando mal de intelectuais como o Leandro Karnal. Ele é alguém que desperta a curiosidade intelectual e a dúvida em pessoas que, a princípio, não têm interesse em política. Precisamos de 10 mil Karnals. Precisamos de outros tantos bons youtubers, podcasts, memes, pílulas de WhatsApp, tratando de modo acessível a iniciantes e de forma progressista temas como direitos humanos, reforma política, emenda do teto de gastos, eleições de 2018. Precisamos de mais gente escrevendo e falando sobre as debilidades dos posicionamentos de oportunistas como Bolsonaro. Precisamos de mais gente para tratar do quão destruidor é o sistema capitalista e convocar para refletir sobre boas ideias que possam construir pontes sobre o abismo que separa as pessoas da atuação no sistema político institucional. Precisamos de mais gente decidida a sair da bolha, do cercadinho, e falar para mais gente. Como dizia Torquato Neto, nesses tempos é preciso seguir desafinando o coro.
Só assim, com a sociedade participando do processo político, mesclando resistência e experimentalismo, pautando-se pelo diálogo camarada, que vamos conseguir transformar e melhorar o nosso Amanhã no Brasil e no mundo.
*João Elter Borges Miranda é professor de história formado pela Universidade Estadual de Ponta Grossa e milita na Frente Povo Sem Medo e Intersindical.
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