Não é só Marielle Franco: mais de 2 mil militantes, crianças e testemunhas estão marcados para morrer no Brasil
Edson Sardinha, Congresso em Foco
Talíria Petrone carrega o mesmo DNA de Marielle Franco. É negra, jovem, feminista e militante de todo tipo de direitos humanos. Começou sua participação política em uma das favelas do Complexo da Maré, no Rio. O perfil da vereadora mais votada de Niterói em quase tudo se assemelha ao da vereadora carioca assassinada com quatro tiros na cabeça, ao lado de seu motorista, em 14 de março. Amigas e companheiras de Psol, Talíria e Marielle falavam-se todos os dias, compartilhavam as mesmas angústias e exerciam o mandato com as mesmas bandeiras – uma fincada em cada lado da ponte mais famosa do país.
Duas semanas após o assassinato de Marielle, Talíria passou a andar sob proteção policial. As ameaças de morte contra a vereadora se intensificaram nos últimos meses pelas redes sociais, com ataques racistas e sexistas, feitos por perfis falsos. Mais recentemente, alguns começaram a apontá-la como a próxima a morrer.
A vereadora convive com esse tipo de recado desde 2016, quando se elegeu. Na ocasião, um homem armado invadiu a sede do Psol em Niterói fazendo ameaças contra integrantes da legenda. Tornaram-se comuns os telefonemas em que, do outro lado da linha, um homem pergunta insistentemente pelo paradeiro daquela “piranha”, um dos termos pejorativos usados contra ela. Certa vez, ele ameaçou jogar uma bomba na sede do partido. “Exigimos do Estado segurança para continuar denunciando as violações desse mesmo Estado contra o povo”, diz Talíria a respeito da proteção policial.
A historiadora de 33 anos nasceu em um bairro de classe média baixa em Niterói, filha de um músico e uma professora. Os principais suspeitos dos ataques são os mesmos que ela e Marielle sempre denunciaram: milícias, policiais, traficantes e extremistas de direita.
A vereadora faz parte de uma estatística crescente – a de defensores de direitos humanos jurados de morte. Não há números confiáveis que permitam fazer comparações ano a ano, mas essa é uma constatação unânime entre representantes de entidades que fazem esse tipo de acompanhamento.
Só no programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), criado pelo governo federal em 2004, são atendidas atualmente 376 pessoas. Outras 308 estão na fila, seus casos estão em análise. Metade dos incluídos está envolvida em conflitos agrários. São sem-terra, assentados e indígenas. Mas também há entre os protegidos quilombolas, operadores do Direito (advogados, juízes, promotores, procuradores, defensores públicos) e até crianças e adolescentes.
Um número incalculável de defensores nunca chegou até o programa. Muitos convivem com ameaças que, muitas vezes, se concretizam. Outros são abatidos sem o envio prévio de recado, como Marielle. Assassinatos em alta Só em 2016, 66 pessoas com esse perfil foram assassinadas, segundo levantamento do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos, que reúne mais de 35 entidades. Os dados de 2017 ainda não foram fechados, mas, pelas projeções feitas até setembro, são ainda maiores que os registrados no ano anterior.
De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), 70 pessoas foram assassinadas por causa da luta no campo em 2017. É o maior número desde 2003. Enquanto isso, nas cidades, espaço de atua- ção de Marielle e Talíria, o número de mortes de defensores de direitos humanos ainda é uma grande incógnita.
“Não conseguimos fazer nas cidades o mesmo mapeamento que fazemos no campo. A situação urbana é ainda pior, porque há lideranças negras, LGBTI, da luta pela moradia, por exemplo”, explica Luciana Pivato, representante do Comitê Brasileiro. O assassinato de lideranças que lutam por moradia e pelo reconhecimento de direitos de mulheres, negros, homossexuais e transgêneros ou que enfrentam os excessos de policiais, milicianos e traficantes se dilui no banho de sangue da violência urbana.
“A pobreza no Brasil tem cara, cor e gênero. Existe a construção de um mito em torno dos direitos humanos como se fosse uma coisa para proteger bandidos. Parece que o termo ‘direitos humanos’ já é a negação dos direitos humanos”, avalia Talíria. Atualmente mais de 2 mil pessoas estão incluídas em algum tipo de programa federal de proteção: 376 no de defensores de direitos humanos (PPDDH); 487 no de vítimas e testemunhas (Provita), e 1170 no programa de proteção a crianças e adolescentes (PPCAAM).
Presença pela repressão
A vereadora de Niterói nunca morou em morro, mas conheceu há mais de dez anos a realidade de um Rio de Janeiro que não frequenta os cartões- -postais. Quando ainda era estudante, começou a dar aulas em um bairro pobre de São Gonçalo e na favela Salsa e Merengue, da Maré. Aprendeu a lidar com os tiroteios e as medidas restritivas impostas pelas operações policiais que paralisavam as aulas que ministrava.
“Não se trata de ausência do Estado nesses lugares, mas da forma com que esse Estado se faz presente. Ele não amplia o número de escolas nem dá moradia digna às pessoas. Atua com mais repressão policial”, critica.
Talíria conheceu Marielle em 2010, na favela de Nova Holanda, também na Maré. A identificação entre as duas foi imediata. Juntas, filiaram-se ao Psol naquele mesmo ano e, em 2016, decidiram concorrer ao Legislativo de suas cidades. Eleitas, emparelharam os mandatos: as causas de uma eram as causas da outra.
“Não tenho dúvida de que foi um crime político e a ordem partiu de alguém do Estado, porque não há crime organizado sem relação com o Estado. Também há um componente de ódio muito grande. A Mari era a representação de tudo aquilo que tinha na sua voz. Era mulher, negra, favelada, LGBTI, socialista. Ela ser eleita vereadora em uma capital brasileira era uma afronta aos privilégios de diferentes poderes”, diz Talíria.
A vereadora percebe que os ataques contra ela se intensificam quando aborda principalmente dois assuntos: questões de gênero e segurança pública. “O ódio que se instalou na política brasileira é uma espécie de barbárie. É você impedir que sejam denunciadas violações do Estado. Isso provocou o assassinato da Mari. É uma tentativa de silenciar quem é marginalizado. Mas há um setor organizado progressista para enfrentar essa desigualdade”, diz. “Não temos escolha. A escolha é parar, mas essa não está no nosso horizonte”, avisa Talíria, que deve ser candidata a deputada federal.
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