Meio Ambiente

Os dilemas da cidade mais poluída do Brasil

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"Eu não tenho mais olfato. Não sinto mais cheiro de nada...". Cidade mais poluída do Brasil e vive o dilema da escolha entre a saúde ou o progresso

Ana Beatriz Rosa, Huffpost

O pôr-do-sol em Santa Gertrudes, uma pequena cidade a 175 quilômetros de São Paulo, é conhecido por sua beleza, quando tons vermelhos, alaranjados e cor-de-rosa cobrem o horizonte.

Mas o efeito do entardecer tem uma origem nada espetacular: Santa Gertrudes é o município com o pior nível de poluição do ar do Brasil, de acordo com dados do relatório de 2016 das Nações Unidas.

A Rodovia Washington Luís separa, de um lado, o maior polo produtor de telhas e cerâmicas das Américas e, do outro, bairros residenciais às margens da estrada.

Em períodos de estiagem, faz parte da rotina dos moradores de Santa utilizar nebulizadores em casa e toalhas molhadas para umidificar os ambientes. Garganta coçando, olhos secos, rinite alérgica e crises de asma são reclamações de quem procura os serviços de saúde da região.

Os santa-gertrudenses são obrigados a varrer suas casas várias vezes ao dia para limpar o pó acumulado e, à noite, muitas vezes parece que não há sequer estrelas no céu.

Não tem como evitar o pó“, afirma o técnico de maquinaria Nelson Rodrigues, 53 anos, enquanto esperava para ser atendido no hospital municipal.

Há 7 anos na cidade, Rodrigues sente que sua saúde se deteriorou consideravelmente nesse período. “Minha cabeça está pesada. Sinto falta de ar“, conta.

Eu não tenho mais olfato. Não sinto mais cheiro de nada. E é por causa do pó, da poluição“. – Terezinha de Castro, moradora de Santa Gertrudes.

Geraldo e Terezinha de Castro moram há 16 anos em Santa Gertrudes. Natural de Araras (SP), o casal de idosos sofre com o tempo seco e a poeira da região. Como estratégia para minimizar os efeitos do pó, dona Terezinha faz inalação diariamente e seu Geraldo foge da cidade aos fins de semana para pescar.

‘Estamos trocando saúde por dinheiro’

A pequena cidade de cerca de 25 mil habitantes deve a sua subsistência aos ricos depósitos de argila que existem na região. A exploração dessa matéria-prima é feita por 29 fábricas que tornam Santa Gertrudes a “capital da telha“. Direta ou indiretamente, a argila sustentou a economia da cidade por gerações.

A poluição do ar é um subproduto da extração de argila, do transporte e da produção da cerâmica. Muitos moradores e o próprio Estado enxergam a poluição como um risco mais aceitável, tendo em vista a convivência prolongada com o problema. É o preço a ser pago por uma fonte de renda estável para muitos na região.

Só em 2016, a poluição do ar causou 6,1 milhões de mortes no mundo, de acordo com o Instituto de Métricas e Avaliação de Saúde da Universidade de Washington. No Brasil, o Ministério da Saúde afirma que 49 mil pessoas morrem por doenças relacionadas à qualidade do ar todos os anos. Elas respiram pequenas partículas que podem levar a doenças pulmonares crônicas e infecções respiratórias agudas, câncer de pulmão, doenças cardíacas e derrames.

Estamos trocando a nossa qualidade de vida por dinheiro — e quem está pagando essa conta é o setor de saúde“, explica o médico e patologista Paulo Saldiva, professor da faculdade de medicina da USP (Universidade de São Paulo).

A poluição do ar afeta mais severamente os pobres, além das crianças e dos idosos. Não é somente uma questão de saúde pública, mas também um dos direitos humanos mais fundamentais“, defende Saldiva, que faz parte do comitê da OMS (Organização Mundial da Saúde) responsável por estabelecer padrões de qualidade do ar no Brasil.

Do ponto de vista individual, não há muito o que fazer. Você pode filtrar sua água ou trocar o solo se estiver contaminado. Mas quando se trata do ar, você não pode simplesmente parar de respirar“. – Paulo Saldiva, médico patologista.

Saldiva acredita que é necessária uma mudança de perspectiva econômica.

Pagamos mais por um produto orgânico porque sabemos que isso não prejudica nossa saúde. Essa mesma linha de pensamento precisa ser estendida a todos os setores“, disse ele. “A empresa que investe em melhores tecnologias ganha valor no mercado. A cultura da nossa sociedade e do setor corporativo precisa mudar, e o primeiro passo é negociar uma estrutura para reduzir as emissões poluentes das fábricas de cerâmica.”

A indústria de cerâmica

Santa Gertrudes produz 45 milhões de metros quadrados de cerâmica por mês, de acordo com a Associação Paulista das Cerâmicas de Revestimento (Aspacer). Em 2017, foram 509 milhões de metros quadrados de cerâmica produzidos.

A indústria na região movimenta mais de 12 mil empregos diretos e pelo menos outros 150 mil indiretos em áreas como logística e vendas.

O faturamento do setor não é um dado divulgado pela Aspacer. “Nós já fomos muito maiores, a crise afetou nossa produção. Hoje, 25% dos fornos estão parados“, conta o diretor-executivo da Aspacer, Almir Guilherme.

Fundada em 1923, a Cerâmica Almeida é uma das mais antigas da região. O diretor da fábrica especializada em pavimentos, Heitor Neto, argumenta que a indústria de cerâmica não é responsável pela poluição que afeta Santa Gertrudes. Ele explica que a maquinaria e os fornos utilizados no processo de produção são regularmente inspecionados e cumprem os padrões estabelecidos pelas agências ambientais.

Nossas fábricas de cerâmica são vistas como um modelo em todo o mundo: são eficientes, produtivas e modernas“, defende Neto. O problema real, segundo ele, é o pó das estradas, resultante do transporte da matéria-prima das minas até as fábricas.

O que faz da cidade uma referência em produção de pisos e cerâmica é a argila da região. A matéria-prima de fácil extração, com características próprias que facilitam o processo de produção, é encontrada em abundância em um raio de 40 km nos arredores da cidade.

Toda a virtude que a região tem é porque dentro de uma única jazida de argila você consegue o blend perfeito dos materiais para fazer a cerâmica“, explica Almir Guilherme, diretor-executivo da Aspacer.

O desempenho da argila chamou atenção das indústrias do ramo que, ao longo do século 20, foram se instalando na região. Com elas, ocorreu a migração de mão de obra de profissionais originários principalmente de Minas Gerais e do sul do País.

A faixa salarial da indústria tem como piso, em média, R$ 2.500 e a constante oportunidade de vagas abertas atrai, principalmente, homens de 20 a 50 anos interessados em trabalhar nas fábricas.

Nelson Rodrigues, o técnico de maquinaria, admite que precisa ficar próximo à Santa Gertrudes, apesar de seus problemas de saúde. “Sempre trabalhei em uma fábrica e eu preciso desse emprego.”

O controle e o monitoramento da qualidade do ar

Em Santa Gertrudes, a concentração das minúsculas partículas de PM2.5 – considerada uma das mais nocivas para a saúde humana — foi 4 vezes superior ao limite que a OMS define como aceitável para a saúde humana em 2016, o último ano em que as estatísticas estavam disponíveis.

Fonte: OMS

Quando se trata das partículas PM10, Santa Gertrudes apresenta a concentração de 95 µg/m3. A taxa é comparada a padrões verificados em cidades chinesas, como Xanghai (84 µg/m3) e Pequim (108 µg/m3).

E esses altos índices de poluição atmosférica são constantes na região. Em 2015, menos de 1 em cada 3 dias por lá foi classificado com “boa” qualidade do ar. No ano seguinte, a média foi de 1 em cada 5, de acordo com leituras de uma unidade de monitoramento da qualidade do ar na cidade a que o HuffPost teve acesso.

Fonte: CETESB-2016

Gerente na agência ambiental estadual Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo), Ednea Parada investiga os níveis de poluição na indústria de cerâmica. Ela acredita que a causa dos altos níveis de emissão de materiais particulados é o adensamento da atividade extrativista, já que há uma grande concentração de unidades argileiras em uma área muito pequena e próxima à cidade.

O meio ambiente já foi prejudicado pelos produtores de cerâmica de Santa. Em 2015, o Ministério Público de São Paulo (MP-SP) investigou a poluição do Rio Corumbataí, que atende a região, e responsabilizou as empresas de cerâmica pela extração de argila irregular que compromete a qualidade da água do manancial há pelo menos 10 anos.

Na investigação, a promotoria informou que o processo de queima da argila libera fluoreto, produto tóxico que contamina o ar, o solo e a água do rio. A presença dessa substância no manancial também afeta o tratamento da água que abastece a população, sendo necessário o uso de mais produtos químicos para que se alcance o nível suficiente de pureza.

Após os inquéritos, as empresas de cerâmica foram obrigadas a utilizar filtros em seus fornos para controlar e captar o fluoreto. Desde aquele ano, a Cetesb é responsável por visitar as fábricas e controlar esses índices.

Foi necessário criar um sistema de monitoramento“, disse Parada, que coordena a unidade da Cetesb com sede em Limeira, a cerca de 150 quilômetros da capital paulista. “Nós verificamos se o equipamento foi usado corretamente e se ele está cumprindo seu objetivo.”

Mas alguns pesquisadores afirmam que os filtros instalados nas chaminés das fábricas não conseguem reter todo o pó da produção de cerâmica. Há, segundo eles, um equívoco de que o pó de argila é, de alguma forma, menos perigoso do que as emissões químicas.

A forma aerodinâmica da sílica, um componente da argila, é o que é mais preocupante, já que é pontiaguda“, explica a pesquisadora Meyre Oliveira, que estuda geociências e meio ambiente da Unesp (Universidade Estadual de São Paulo).

Quando você respira, corta os pequenos alvéolos pulmonares e prejudica o sistema respiratório. Se você já sofre de uma doença pulmonar, isso só piorará as coisas“. – Meyre Oliveira, pesquisadora da Unesp.

Com o apoio da Unesp e da própria Aspacer, a pesquisadora está realizando um projeto para investigar todos os componentes e as fontes de emissão de poluentes em Santa Gertrudes. A ideia é fazer um inventário do ar para analisar os indicativos que possam minimizar ou diminuir os efeitos dos poluentes na atmosfera.

Esses resultados podem se tornar políticas públicas a serem aplicadas aqui e em outras regiões do País. A gente precisa avançar na melhoria da qualidade do ar nas áreas urbanas e explicar para as pessoas que, por mais que o céu esteja azul, esse ar pode estar fazendo mal para a saúde delas.”

De acordo com a secretária de Saúde de Santa Gertrudes, Vivian Gonçalves, as doenças respiratórias estão sempre no radar da prefeitura. Há o protocolo específico de recomendar aos pacientes a hidratação e o uso de umidificadores nas residências.

Em nossas reuniões com o governo [estadual], a gente discute estratégias de como lidar com essas doenças. Temos um aumento no nosso orçamento, é um gasto a mais em todas as unidades de saúde por conta das crianças e idosos que estão com dificuldade de respirar. Se a gente for contabilizar o número de inalações realizadas em janeiro e comprar com julho e agosto, por exemplo, vemos que o número aumenta. Quanto mais inalação, mais medicamento e mais gasto“, explica.

Questionada pelo HuffPost, a Secretaria Municipal de Saúde não apresentou o volume total de gastos com doenças respiratórias dos habitantes.

“A economia precisa girar”

O secretário de Obras e Meio Ambiente de Santa Gertrudes, Paulo Fernando de Mello, afirma que o município está em negociações com o governo do estado de São Paulo para pavimentar cerca de 10 quilômetros de estradas que ligam as minas de extração de argila ao centro de produção de cerâmica. De acordo com Mello, pavimentar a estrada reduzirá a quantidade de poeira em pelo menos 50%.

Porém, segundo o Departamento de Estradas de Rodagem de São Paulo (DER-SP), até o momento, não há previsão de início do projeto. Enquanto isso, a prefeitura de Santa Gertrudes cobra que as fábricas de cerâmica utilizem caminhões de água para diminuir a ressuspensão do pó, bem como a aplicação de lonas em caminhões de transporte.

Na opinião de Mello, os residentes de Santa Gertrudes têm que se acostumar com o ar da região porque a cidade depende das fábricas de cerâmica.

Se eu impedir um caminhão de usar a estrada, a fábrica deixará de produzir, vai demitir os trabalhadores e tenho certeza de que será pior“, disse o secretário. “Para aqueles que me questionam, muitas vezes eu respondo: ‘você veio trabalhar nesta cidade sabendo como era. Como você pode reclamar agora‘.”

Essa atividade econômica contribui com a arrecadação anual de R$ 80 milhões em Santa Gertrudes, de acordo com Mello. Se as fábricas de cerâmica pararem de produzir, a queda resultante na receita afetaria toda a população da cidade.

As engrenagens da cidade precisam continuar girando. As pessoas precisam trabalhar. E precisamos dessa receita. É uma cidade pequena. Mas é desenvolvida. É uma cidade muito movimentada graças a essa indústria“, conclui.

Como funciona o processo de exploração de uma jazida mineral no Brasil?

O advogado de programa de políticas públicas da WWF Brasil, Rafael Giovanelli, explica que no País existem três regimes para exploração de bens minerais: licenciamento, pesquisa e concessão de lavras.

Qualquer pessoa pode fazer um pedido para explorar uma área, basta fornecer os documentos requeridos pelo órgão de licenciamento. Os recursos minerais sempre serão recursos da União. O empreendedor, então, paga uma série de tributos ao Estado para ter o aproveitamento econômico do material.

Quem explora os recursos minerais tem obrigações legais de recuperação da área degradada, previstas no artigo 225 da Constituição Federal.

Durante o licenciamento de exploração, você tem que licenciar ambientalmente a atividade. O empreendedor tem que apresentar um plano de recuperação de área degradada. É um plano em que ele mostra o que ele vai fazer com a área. O órgão ambiental, no caso de São Paulo a Cetesb, tem que aprovar esse plano. Sem ele aprovado, a atividade não pode ser desenvolvida“, explica o advogado.

O plano deverá ser iniciado assim que a atividade extrativista for finalizada, o que pode levar até 80 anos, a depender da jazida. Na recuperação, pode ser feito um plantio de vegetação de origem ou a transformação da área em pastos para animais, por exemplo. Aqueles extrativistas que não cumprirem com o plano de recuperação podem responder por crime ambiental. A multa varia de R$1 000 a R$ 3 000 por hectare degradado.

Contudo, os órgãos ambientais enfrentam obstáculos, como condições técnicas e financeiras, para exercer a fiscalização e nem sempre o plano de recuperação é colocado em prática“, explica o advogado.

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