Mais de 25 mil pessoas estavam no campus de Harvard para ouvir o líder Nelson Mandela, em 1998. Relembre o momento histórico
O sul-africano Nelson Mandela tornou-se uma figura conhecida no mundo todo. Ganhou destaque na luta contra o regime de apartheid em seu país – sistema que negava direitos políticos, econômicos e sociais aos negros. Por seu ativismo, ficou preso por 27 anos, até 1990. Na mesma década, assumiu a presidência de seu país e recebeu o Prêmio Nobel da Paz.
Não é de se espantar, portanto, que tenha sido reconhecido por instituições de prestígio. Da Universidade Harvard, por exemplo, Nelson Mandela recebeu o título de doutor honoris causa. A ocasião reuniu mais de 25 mil pessoas no campus universitário para ouvir seu discurso, em 1998.
Confira a íntegra do discurso de Nelson Mandela em Harvard
Essa pode ser nossa última visita oficial aos Estados Unidos, antes do fim do mandato, no ano que vem. E a visita não poderia começar de forma mais emocionante do que essa, sendo homenageado de tal forma por uma das mais grandiosas instituições de ensino da nação e do mundo.
Eu sei que, por meio deste prêmio, vocês não reconhecem qualquer feito individual, mas sim as lutas e conquistas do povo sul-africano como um todo. Aceito humildemente, portanto, esse prêmio em espírito. Ao mesmo tempo, desejo que saibam que nós não deixamos de notar a honraria que nos dão ao conferir esse diploma.
Juntar-me a George Washington e Winston Churchill como outros premiados com tal título, numa celebração como essa, não é apenas uma honraria singular. Trata-se, também, de algo com grande significado histórico. Afinal, na memória dessa grande instituição americana, a partir de agora o nome de um africano estará ao lado de dois líderes ilustres do mundo ocidental.
Se, nos últimos anos de minha vida vivida em busca da igualdade, podemos ver um país em que cidadãos, independentemente de raça, gênero ou credo, compartilham dos mesmos direitos e oportunidades, nós o fazemos com gratidão. Gratidão pelos milhões e milhões, do mundo todo, que nos apoiaram moral e materialmente em nossa luta por justiça e liberdade.
Junto a esses cidadãos que lutam pela liberdade e justiça, ao mesmo tempo, nós olhamos para esse fim de século. Um século em que a humanidade enxergou grandes esperanças de progresso, mas em que o mundo presencia grandes disparidades entre pobres e ricos em um mesmo país, e em diferentes regiões do globo.
Em nossas vidas individuais, podemos chegar a uma parte da jornada em que nos é dada a oportunidade de nos aposentarmos e desfrutarmos de descanso e tranquilidade. Entretanto, para a humanidade em si, ainda há uma longa caminhada à frente, em direção à igualdade e à liberdade.Esta solene instituição construiu sua sólida reputação também pela forma como conduziu e continua a conduzir sua presença internacional. Em qualquer lugar em que se reúnam homens e mulheres para reflexão e aprendizado, seu nome e trabalho é conhecido. Harvard incorpora o espírito de universalidade que marca as grandes instituições. Juntar-se às fileiras de ex-alunos é ser lembrado da unidade de nosso mundo globalizado.O maior desafio desse nosso mundo globalizado é o de combater e erradicar as disparidades. Em todas as partes do mundo, há progressos em direção a formas de governança mais democráticas. Entretanto, nós precisamos lembrar constantemente a nós mesmos que as liberdades que as democracias carregam são conchas vazias, se não acompanhadas de melhorias reais e tangíveis para a vida material de milhões de cidadãos comuns desses países.Onde homens e mulheres carregam o fardo da fome, de sofrer por males preveníveis, enfraquecidos pela ignorância e o analfabetismo, abandonados sem um abrigo digno, a conversa sobre democracia e liberdade que não reconhece tais aspectos pode soar oca e desgastar a confiança dessas pessoas exatamente nos valores que buscamos promover. Daí vem, portanto, a nossa obrigação universal de construir um mundo em que haverá mais igualdade entre nações e entre cidadãos de cada país.
A disparidade entre o mundo desenvolvido e o emergente, entre Norte e Sul, reflete-se na esfera dos recursos educacionais e intelectuais. Na África, nós falamos, sonhamos e trabalhamos para o renascimento de um continente como pleno participante em assuntos mundiais, no próximo século, temos a profunda consciência do quanto isso depende da mobilização e do fortalecimento dos recursos para aprendizagem no continente.
A crise financeira atual também nos lembra de que muitos dos conceitos que guiaram nosso entendimento do mundo e de seu funcionamento se mostraram insuficientes. Eles demonstraram ter escondido defeitos estruturais do sistema econômico mundial. Os conceitos de teoria econômica que pareciam fáceis de prescrever a todos, agora parecem ter conseguido sua validação intelectual por não terem sido contestados em um sistema em que operavam os interesses dos poderosos.
Essa crise não exige, apenas, o repensar e o reconceituar de parte dos teóricos do Norte. Ela também enfatiza, particular e urgentemente, a necessidade de mais pensadores e intelectuais dos países emergentes. Que eles aprimorem suas habilidades e análises, e que haja uma parceria genuína entre os do Norte e do Sul para criar uma nova ordem global, que corresponda às necessidades compartilhadas e comuns de todos os povos.
Esta universidade já tem uma longa parceria com o povo sul-africano pelo aprendizado e ensino. Há muitos nomes de pessoas no governo ou em entidades da sociedade civil que tenham passado por Harvard, ou se beneficiado de programas desenvolvidos em conjunto com a universidade. Por isso, nossa jovem democracia, que encara desafios enormes para se reconstruir e se desenvolver, deve a esta instituição uma enorme gratidão. Enquanto os sul-africanos desempenham seu papel elaborando e concretizando um renascimento africano, nós continuamos a usar as habilidades intelectuais criadas e aperfeiçoadas aqui.
Os Estados Unidos e a África do Sul têm construído, ao longo dos quatro últimos anos, uma relação de respeito e cooperação mútuos. Como parte dessa relação, os scholars que se beneficiaram de estudar em Harvard devem retornar mais bem equipados para lidar com desafios locais.
Senhor presidente, nós aceitamos essa honra que nos é concedida como símbolo de como a África do Sul e os Estados Unidos, a África e o Ocidente, os países desenvolvidos e os emergentes, estão se juntando e dando as mãos enquanto parceiros, para construir um mundo em que a igualdade beneficie todas as nações e todas as pessoas.
Por trezentos anos, esta instituição tem servido à nação com distinção. Nós iniciamos um novo milênio com a esperança de que os frutos ricos do conhecimento, da ciência e do progresso tecnológico possam ser, no próximo século, verdadeiramente compartilhado nessa aldeia global em que vivemos.
Nós estamos confiantes de que essa instituição, de que agora fazemos parte, terá um papel fundamental no alcance desses objetivos.
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Priscila Bellini, Estudar Fora
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