Reportagem do jornal O Globo comparou jogador francês com ‘animal que escapa do cativeiro’ em festa do título da Copa do Mundo
Arthur Stabile, Ponte
“Pogba reagiu como um animal que escapa do cativeiro.” Assim definiu a reportagem do jornal O Globo sobre a comemoração do jogador de futebol da seleção francesa ao conquistar a Copa do Mundo, no último fim de semana. A frase é apontada por pesquisadores e militantes negros como uma representação do racismo enraizado na sociedade brasileira.
O entendimento é de que o autor do texto até poderia não ter tido a intenção de ofender diretamente o atleta francês. Porém, como o jornalismo é uma representação da sociedade sobre a qual e para a qual se reporta, evidencia uma lacuna básica de entendimento sobre o real significado da fala.
“É racismo puro, não tem o que discutir. O racismo mais tosco que existe, comparando claramente com um animal”, analisa o professor e chefe do departamento de jornalismo e editoração da ECA-USP (Escola de Comunicação e Arte da Universidade de São Paulo), Dennis Oliveira. “Jogadores brancos da Croácia, por exemplo, comemoraram da mesma forma em outros jogos e não houve esse tipo de comparação”, pontua.
O analista considera que o caso específico da comparação é apenas uma pequena amostra de um todo. “O que observa nas narrações, comentários e reportagens, é um preconceito com olhar de inferiorizar e animalizar o homem negro e tirar sua dimensão racional. Tratam os jogadores africanos como ingênuos, não compromissados taticamente… Bobagem”, continua.
Oliveira é professor de jornalismo da USP e militante da rede Quilombação. Segundo ele, a frase se dá tanto por questões de uma sociedade com racismo estrutural quanto por uma profissão incapaz de lidar com autocríticas. “O jornalismo não está à parte do mundo e não se vê tantos jornalistas negros ou negros nos comandos. O próprio jornalismo, na questão de ser imparcial, neutro, se põe acima das contradições raciais, está avesso às críticas”, conclui.
Um print com o texto destacado ganhou repercussão nas redes sociais, principalmente com influenciadores ligados aos movimentos negros. O youtuber AD Junior compara a frase do jornal com o comentário do também youtuber Júlio Cocielo, ao comparar a velocidade do atacante francês Mbappé em campo a de um ladrão quando faz arrastão.
“A diferença é que um tinha um histórico por trás do que ele entendia como piada, esta frase é pontual. Ainda assim, tem que estar com um racismo muito enraizado para ele sair sem querer. Este texto passou por muitas pessoas e, se houvesse um negro, ele não deixaria ser publicado. É outro ponto da questão”, analisa AD.
Após as reações, o jornal atualizou o texto às 8h13 desta terça-feira (17/7), retirando a frase que foi publicada originalmente às 19h52 de segunda-feira (16/7).
A Ponte entrou em contrato com o jornalista autor da matéria por telefone, Whatsapp e em mensagem no Facebook, mas não obteve resposta. Procurado pelo canal de mensagens do portal, a *assessoria de imprensa do jornal O Globo enviou a seguinte nota: “A equipe do jornal O GLOBO não compactua com nenhuma forma de preconceito e reconhece que o texto inicial gerou uma interpretação que não condizia com a intenção original do autor. Por isso, decidiu suprimir o trecho e atualizar a reportagem com outra formulação. Pedimos desculpas pela expressão usada”.
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