Senador Magno Malta (PR-ES) questionou a competência do STF a respeito do aborto e foi contestado pela relatora da ação, ministra Rosa Weber
Na última fase de audiência pública sobre descriminalização do aborto, que consumiu dois dias no Supremo Tribunal Federal, até esta segunda-feira (6), o senador Magno Malta (PR-ES) questionou a competência do próprio STF a respeito do tema. Foi contestado pela relatora da ação, ministra Rosa Weber. A audiência registrou ainda polêmicas suscitadas pela advogada Janaína Paschoal, que teve argumentos rebatidos por representantes do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e da Defensoria Pública de São Paulo.
Hoje e sexta-feira (3), mais de 50 entidades foram ouvidas, contrárias e favoráveis à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, proposta pelo Psol, que propõe a descriminalização até a 12ª semana de gestação. A legenda questiona os artigos 124 e 126 do Código Penal, que criminalizam a prática. Em alguns momentos, a relatora pediu “moderação” do público, falando em tolerância a opiniões divergentes diante de um tema “de extrema sensibilidade, que perpassa por questões não só jurídicas, mas religiosas, éticas, morais e de saúde pública“. Encerrada a audiência, ainda não há data para o julgamento.
Presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família e apresentado como teólogo, Malta criticou o que chamou de “ativismo judiciário” no país e falou em “imbróglio de números mentirosos” para justificar a criminalização. Reiterou o argumento de que a vida se inicia a partir da concepção. “Quem pode matar com 12 semanas pode matar com oito. O feto no útero da mãe não é parte da mulher“, afirmou o senador, acrescentando que o papel de deliberar sobre o assunto não é do tribunal. “Então, dissolva-se o Parlamento. Se o Parlamento perder sua capacidade de legislar, só existimos para dar despesa e prejuízo à nação brasileira.” Terminou falando que se a ADPF for aceita, vai propor emenda “para que um feto tenha o mesmo direito que um ovo de tartaruga“.
Antes de chamar a oradora seguinte (Ana Carla Harmatiuk Matos, do Instituto Brasileiro de Direito Civil), a ministra do STF quis fazer um “pequeno registro” ao senador, citando o artigo 102, parágrafo 1º da Constituição, segundo o qual uma ADPF decorrente desta Carta será apreciada pelo Supremo na forma da lei. “Ou seja, é a própria Constituição que fixa a competência para seu julgamento. Não se sabe qual será o seu resultado, mas o julgamento compete ao Supremo Tribunal Federal. Não estamos invadindo a competência.”
Estado laico
Para Ana Carla, respeitadas todas as crenças, dogmas não pode ser condutores de políticas públicas. “Crenças individuais não sustentam discursos racionais de justificação jurídica em um Estado democrático de direito laico“, afirmou. Não se trata de apologia, mas de medida necessária, em certos aspectos, pelos “dados da realidade“, com qual podendo decidir de acordo com suas convicções, de forma segura. “A criminalização do aborto é mais um instrumento da opressão de gênero, já que o homem goza de considerável liberdade social para criar ou não filhas e filhos biológicos“, emendou.
Antes mesmo da manifestação do senador, a diretora da Conectas Direitos Humanos Juana Magdalena Kweitel fez referência à baixa representação feminina no Parlamento brasileiro, de apenas 11%, com o país na 152ª posição em um ranking de 192 nações. “É ingênuo e contraditório esperar que um Congresso predominantemente masculino e branco exerça esse papel de proteção do direito à vida das mulheres“, afirmou. “Estamos, sim, falando da proteção à vida. Falamos da vida e da proteção a essas mulheres. Estamos falando das mulheres mais vulneráveis.”
Segundo ela, a descriminalização, acompanhada de políticas públicas de promoção do aborto seguro, resulta “em maior proteção da vida e da integridade das mulheres e de suas famílias“. “Estamos no século 21“, disse Juana.
Notabilizada a partir do processo de impeachment, em 2016, a professora de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP) Janaína Paschoal pediu para ser apresentada apenas como advogada, argumentando à ministra do STF representar “uma instituição que não comunga do meu ponto de vista“. Segundo ela, a possibilidade de prisão de mulheres que praticam aborto pode dar uma sensação equivocada da realidade.
“Pode pode passar uma sensação de que nós vivemos na Idade Média, e não é isso que ocorre“, afirmou. “Os vários Conselhos de Medicina têm pareceres e resoluções no sentido de que o médico deve resguardar o sigilo de sua paciente. O que acontece algumas vezes é que na solidão do pronto-socorro o médico pode ficar com medo“, disse a advogada. Além disso, afirmou, a ADPF “se alicerça em sentimento, posicionamento de grupos que não necessariamente se manifestaram nesse sentido“. Para embasar a afirmação, Janaína disse conhecer “muitas lésbicas cujo sonho é ser mãe“.
Ativismo judicial
Ela considera a legislação atual “extremamente ponderada“, sugerindo que, no máximo, o Congresso poderia discutir a descriminalização, mas não a legalização da prática. “Entendo que uma sociedade que respeita o próximo, que efetivamente tenha a dignidade humana como centro, não pode permitir que uma pessoa decida que a outra vai ter a possibilidade de nascer ou não.”
Na sequência, a advogada criminal Eleonora Rangel Nacif, do IBCCrim, contestou a crítica sobre “ativismo judicial” e rebateu Janaína. “Pouco importa, se as mulheres são presas ou não. O fato de uma mulher sentar no banco dos réus já é punição. Eu estive recentemente na plateia assistindo a um tribunal do júri onde uma mulher era ré. Isso aconteceu no Fórum da Barra Funda, em São Paulo“, testemunhou.
Integrante do Grupo de Trabalho Mulheres da Defensoria Pública da União, Charlene da Silva Borges lembrou que os “efeitos práticos” da criminalização atingem, principalmente, um público específico: mulheres negras, de baixa escolaridade e renda, sem acesso a planejamento familiar ou sexual. Ela apontou a “invisibilidade” da mulher, “enxergada como um corpo que tem finalidade reprodutiva“. E acrescentou que o Direito Penal, historicamente, “foi feito por homens, para homens“.
Na mesma linha, Ana Rita Souza Prata, da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, por meio do Nudem (núcleo especializado que trata de promoção dos direitos das mulheres), em parceria com a Clínica de Litígios Estratégicos da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito SP), disse que o sistema penal atinge basicamente a população mais vulnerável. Citou 30 ações penais em São Paulo contra mulheres que praticam aborto, com igual número de pedidos de habeas corpus, concedidos em apenas cinco casos. E em 21, a denúncia partiu justamente de agentes de saúde, inclusive com entrega de documentos sigilosos. “Essas mulheres não tiveram suas intimidades respeitadas“, afirmou, acrescentando que em 20 casos “não havia qualquer materialidade da prática de um crime de aborto“.
Procurador do estado de Sergipe, José Paulo Leão Veloso Silva apresentou argumentação mais moral do que jurídica. Exibiu uma imagem de ultrassom, segundo ele de sua prima mais nova, de 12 semanas, Luísa. “Ela mexe as pernas e os braços. Tem coração. Será possível acreditar que algum juiz no planeta pode autorizar a morte deste ser?“, afirmou.
A médica Camila Silva Nicácio, da Clínica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), argumentou que a criminalização fracassa no objetivo de reduzir os casos de aborto, e que a medida acaba sendo na prática “seletiva, classista e racista“. A mulher, acrescentou, “deve ser amparada pelo Estado, não alvo de sua sanha“. Descriminalizar não significa incentivo à prática do aborto, “mas tão somente o não tratamento como criminosa da mulher que decida não levar à frente uma gestação“. Por que manter uma mulher grávida contra sua vontade? Para Camila, até hoje não foi apresentada uma resposta “racional, justa e compatível com o Estado democrático de direito“.
Segundo Cristina Telles, da Clínica Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) de Direitos, imagens de fetos, exibidas durante a audiência, sensibilizam qualquer pessoa. “Agora, os direitos das mulheres parecem não ser percebidos ou devidamente mensurados pelos homens.”
A presidenta do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), a defensora pública Fabiana Severo, argumentou que se trata de uma questão de saúde pública “e de igualdade entre todas as mulheres e meninas”. “A liberdade da mulher de decidir sobre a interrupção de uma gravidez não viola o direito à vida. Ao contrário, consagra o seu direito à vida“, afirmou. Segundo ela, a descriminalização “trata-se de uma questão jurídica não se limitando a uma questão moral“.
A última fala, das 19h às 19h18, foi de Lívia Gil Guimarães, do Núcleo de Prática Jurídica em Direitos Humanos da Universidade de São Paulo (NJP-DH USP), favorável à descriminalização. “Hoje, aqui estamos no exercício da razão pública“, afirmou.
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