"Porque votei no Cabo Daciolo em 2014...". Dirigente do PSOL explica motivos que o levaram a apoiar cabo Daciolo nas últimas eleições para o Legislativo federal, e o que aconteceu desde então
José Luís Fevereiro*, Opera Mundi
Dizem que filho feio não tem pai, mas isso só vale para os fracos. Votei e fiz campanha para Daciolo nas eleições de 2014. Conheci o cabo Benevenutto Daciolo em 2011 quando ele surgiu como a principal liderança do movimento dos bombeiros militares do estado do Rio de Janeiro.
Os bombeiros recebiam de salário base R$ 1.198 no Rio, enquanto em Brasília o piso era de R$ 3.453. O movimento buscava um piso de R$ 2.000 de imediato e a aprovação da PEC 300, que estabelecia um piso nacional salarial para Bombeiros e Policiais Militares. O movimento surpreendeu a todos com a extraordinária organização e de imediato contou com a solidariedade da população.
Milhares de bombeiros marchavam pelas ruas, sempre fora dos seus plantões para não serem acusados de motim, gritando suas palavras de ordem e parando para rezar e pedir o apoio de Deus com frequência. Compreensivelmente é uma categoria com forte religiosidade, sendo na sua maioria evangélicos. Afinal, para nadar 200 metros mar revolto adentro para resgatar alguém de afogamento, ou entrar em um edifício em chamas para salvar uma criancinha no terceiro andar é preciso acreditar que Deus está no comando. Só na racionalidade e no profissionalismo é mais difícil.
O governador Sergio Cabral reagiu com a truculência habitual prendendo administrativamente mais de 400 bombeiros após estes terem pacificamente ocupado o Quartel Central e os chamou de “vândalos”. Esta decisão foi o rastilho para deflagrar um amplo movimento de solidariedade da população para com os bombeiros. As fitas vermelhas nos carros eram a marca do movimento e se espalharam por todo o Estado. Ali começou o declínio de Sergio Cabral. Os partidos da esquerda, em particular PSOL e PSTU, apoiaram decisivamente o movimento e passaram a ser a referência para a vanguarda dirigente.
Para a esquerda, se apresentava pela primeira vez em décadas a oportunidade de ter uma parcela militante e uma liderança de massas numa corporação militarizada, em geral base da extrema direita e de Bolsonaro. Preso novamente em 2012 quando voltava da Bahia onde tinha ido se reunir com lideranças do movimento da PM local há época em greve, Daciolo é expulso da corporação, sendo mais tarde anistiado.
Em 2012, Daciolo apoiou Ciro Garcia do PSTU a prefeito do Rio de Janeiro. Naquela altura estava claro para a vanguarda do movimento a necessidade de levar para o terreno da política a luta da corporação. PEC 300, que estabelecia piso nacional unificado para policiais e bombeiros, mudança no regulamento militar acabando com as prisões administrativas por exemplo, eram causas que se resolveriam no terreno da disputa política. Bombeiros e PMs são os únicos funcionários públicos que podem ser privados da liberdade sem processo judicial, bastando uma decisão administrativa do comando da corporação.
Os bombeiros fundaram a ABMERJ, associação profissional já que não têm direito à sindicalização, onde debatiam temas caros à esquerda, como a desmilitarização das suas corporações. Bandeira difícil de ser levada sem mediações pelas condições objetivas em que estas corporações vivem. Se o regulamento militar lhes proíbe a sindicalização e os submete a prisões administrativas, por outro lado lhes garante porte de arma o que possibilita fazer bicos fora dos plantões, sem os quais a sobrevivência com salários ínfimos seria difícil, e garante a passagem à reserva remunerada com 30 anos de serviço ou com vencimentos proporcionais a partir de 10 anos .
Estive em atividades de formação política promovidas pela ABMERJ, onde por exemplo se debatia a Coluna Prestes e se falava nos cerca de 7000 militares perseguidos pela ditadura com passagem compulsória para a reserva ou com tortura e prisões. Muita gente da esquerda tem falado sem o menor conhecimento de causa sobre o processo que levou Daciolo a se candidatar a deputado federal comprando pelo valor de face matérias de jornal que atribuem a sua candidatura a “um cálculo eleitoral mal feito pelo PSOL”.
Na campanha de 2014, Daciolo foi duramente combatido nas redes sociais pelo bolsonarismo que “alertava” a tropa que votar no Daciolo era eleger Jean Wyllys e os defensores dos “direitos humanos de bandidos”. Pessoalmente, sempre tive certeza que Daciolo se elegeria. Se alguém se surpreendeu com sua eleição não fui eu. Era uma aposta, sabíamos dos riscos, mas era também uma oportunidade de consolidar uma liderança capaz de dialogar com as corporações militarizadas de todo o país e combater a extrema direita e Bolsonaro no seu reduto.
Após a eleição, mas ainda antes da posse, em dezembro de 2014, estive com Daciolo e um procurador da Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República no complexo do alemão, na UPP da Nova Brasília. Daciolo tinha articulado a vinda do procurador para denunciar as péssimas condições de trabalho dos PMs.
Subimos pelo teleférico até a Nova Brasília e nos deparamos com um cenário de guerra. Esta era a UPP com maior índice de violência no ano, com um oficial e creio que 2 soldados mortos meses antes. Sacos de areia na frente da sede da UPP, duas PATAMOs atravessadas na diagonal para proteger o perímetro de tiros, Daciolo chama os policiais para uma roda de conversa dentro da UPP. São liderados por um sargento de 36 anos com câncer num rim e que teve sua baixa na corporação negada por não ter metástase. Outro soldado diz residir na Vila Cruzeiro, uma das comunidades do complexo, contrariando todas as normas de segurança ao ter sua família exposta a retaliações. Um terceiro soldado mora em Itaperuna, a 9 horas de distância do Rio e que nas 36 horas de folga pouco tempo lhe resta para ficar com a família. Teria tido sua remoção para um batalhão próximo ao seu município negada. Por fim um soldado de 22 anos perguntado quantos tiros de fuzil havia dado no treinamento disse que nenhum. Para ele isso não era problema porque vinha dos fuzileiros navais, mas outros colegas dispararam pela primeira vez já em ação.
Saí dali com duas certezas: a primeira, que uma tragédia iria acontecer na Nova Brasília – o que ocorreu poucos meses depois, quando uma patrulha da UPP matou um garoto de 10 anos de idade. A segunda, que Daciolo era uma chance extraordinária de conseguir chegar a esse segmento de trabalhadores com uma ótica oposta à do bolsonarismo.
Nunca foi fácil dialogar com Daciolo. O forte componente messiânico sempre esteve presente, mas com um pé na realidade. “Deus está no comando” era frase usada com frequência para encerrar polemicas, mas sempre seguida de uma ação coerente com a racionalidade.
Com a chegada a Brasília isso mudou. Longe da categoria e deslumbrado com as mesuras e poderes associados ao mandato, Daciolo envereda crescentemente para o misticismo. O tom do discurso religioso se acentua e a dissociação da realidade aumenta muito. Foram meses difíceis até que ele apresenta a PEC propondo mudar a Constituição substituindo “todo o poder emana do povo” por “todo poder emana de Deus”. Todas as tentativas de o demover disso esbarravam em respostas do tipo “foi o sr. Jesus que me mandou fazer isso”. A expulsão do PSOL foi necessária para proteger o partido.
No seu mandato Daciolo, seguiu votando com a esquerda na enorme maioria das pautas. PEC do teto dos gastos, reforma trabalhista, contra as privatizações, licença para processar Temer (Daciolo foi o primeiro a protocolar pedido de impeachment de Temer), mas votou a favor do impeachment de Dilma. Nunca perdoou o PT, a quem atribui responsabilidade pela sua prisão em 2012 na volta da Bahia.
Daciolo é um homem honrado. Tem um compromisso difuso de classe. Mas o seu crescente messianismo o levou a um forte descolamento da realidade o que o separou da esquerda. É difícil defini-lo. Talvez caiba nele a desgastada frase “nem de esquerda nem de direita”. É contraditório e tomado por uma religiosidade confusa que beira a irracionalidade, mas, ao contrário de Bolsonaro ou de Malafaia, sua religiosidade é sincera e honesta. Daciolo expressa de forma clara princípios cristãos de solidariedade, compaixão e piedade. Ao mesmo tempo que votava pelo impeachment de Dilma, foi ao palácio rezar por ela. Não pode ser confundido com os picaretas que usam a religião para manter privilégios e defender a agenda da elite do atraso.
Foi uma aposta que deu errado, mas as razões desta aposta continuam validas. Talvez demore algumas décadas para que a esquerda volte a ter a oportunidade de construir uma liderança capaz de disputar a massa das corporações militarizadas com a extrema direita.
À esquerda que defendo não cabe o papel de comentarista da luta de classes, mas o papel de a disputar nas condições dadas e com os atores disponíveis.
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*José Luís Fevereiro é economista formado pela URFJ e foi membro da executiva nacional do PT entre 1993 e 1995. Desde 2007, é membro da direção nacional do PSOL.
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