Cultura

A hipocrisia cultural como espírito de época

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Se em 70 os valores estavam invertidos, em 2018 eles se pulverizam. Será que a crítica da cultura e da literatura agora se resume a isso? A este exercício de hipocrisia estética?

Marcia Denser, Jornal GGN

Toda geração tem seus epígonos.

No ABC of Reading, Ezra Pound classifica os escritores em três categorias: inventores (os inovadores absolutos cujos exemplos brasileiros seriam Guimarães Rosa, Machado, os Andrade, Mário e Oswald), mestres (que aplicam, ampliam, atualizam e desenvolvem as descobertas dos inventores, tornando-se os mocinhos stritu senso) e diluidores (os bandidos ou epígonos, os ditos “seguidores dos mestres”, cujos ajustes formais parafraseiam, mimetizam, replicam e diluem em fórmulas vazias).

Os mocinhos lucram e os bandidos passam cheques sem fundos, só que a mais-valia do texto quando chega, chega tarde, quase sempre para os herdeiros, por isso os grandes escritores são sempre uns “endividados”, como dizia Mário de Andrade. Porque o reconhecimento de um escritor se dá lentamente, num processo gradual de universalidade e perenidade.

Quase todos os grandes textos do Modernismo brasileiro tiveram primeiras edições reduzidíssimas, foram lidos por um número não menos reduzido de leitores, só que estes livros tinham uma qualidade em comum: continuavam vendendo ao longo do tempo, ampliando pouco a pouco as tiragens e o número de leitores.

O tempo é sua pedra de toque, tempo necessário à assimilação, reflexão, avaliação, penetração e acumulação na memória profunda dos públicos, algo observado por críticos como Octávio Paz, Silviano Santiago, bem como Sérgio Miceli, pelo viés sociológico.

Repito, toda geração tem seus epígonos.

A atual não só não foge à regra mas institui outras, constituindo exceção, replicando a “conjuntura político-social de exceção”, caracterizada pela fusão da intelectualidade com as alta finanças em meio à idiotia triunfante e bem pensante do novo Febeapá.

Pior que o pensamento único dominante é a própria ausência de pensamento que contamina os contemporâneos e suscita a generalização da cretinice e do oportunismo político enquanto embota a percepção, donde a falência da elite intelectual que parece ter desistido ao mesmo tempo do Brasil e da reflexão sobre o processo histórico em curso.

É a “extinção da inteligência dos inteligentes” no mesmo instante em que ocorre a formação de um “bloco histórico da crueldade social” que envolve a grande mídia na atmosfera envenenada e obscura duma Censura (e auto-censura) Onipresente, infinitamente pior que a Censura praticada durante a ditadura que, comparada à atual, não passava de brincadeira de amadores.

Eu sei porque eu lembro.

Se ontem o inimigo era “o general de óculos escuros da república de bananas”, contra o qual a sociedade se mobilizava, hoje o inimigo somos nós mesmos (pois o Inimigo se introjeta), contra quem o Sistema Econômico como um todo se mobiliza. Com nossa total e incondicional colaboração.

Como vêem, a diferença é sutil.

Citando Ítalo Moriconi: “Uma das funções da crítica literária de jornais é exercer a crueldade e fazer o leitor rir em sua balouçante rede de leitura dos suplementos literários de fim de semana. Rir da arte ruim ou medíocre é uma das maneiras pelas quais se dá a educação literária. A crítica literária, como aliás a crítica de qualquer atividade, não é, nem pode ser uma arte de fazer amigos e na verdade foi nisso que ela se transformou nas duas últimas duas décadas: espaço para a formação de redes interpessoais.”

Ou seja, ela virou correio elegante.

Então como se dá a produção dos atuais epígonos literários pergunto retóricamente? Escrevem com facilidade, aliás caracterizam-se por escrever MUITO, são copiosos, cacofônicos, contudo de matéria sem substância (que no íntimo perseguem desesperadamente) porque ela – a substância, a ideia, o espanto original, o sangue, a paixão – sempre lhes escapa de forma que a poesia desaparece, se equivoca, soa oca, vira ornamento verbal, adorno crítico de sub-elites perversas e burras, colisões pós-parnasianas de poetisas de sobremesa e vates oficiais – que em nossa cultura sempre abundaram.

Só que a estes epígonos se acrescente a Torcida Unânime(dos amiguinhos de fulano), acrítica, subserviente e boçal, ao Silêncio não menos unânime da Crítica Acadêmica, a que se reduziu a produção literária desde que se elegeu o Mercado como Instância Única de Consagração de Qualquer Coisa, donde a Exceção – e por que não o Salto Qualitativo? – destes Pós-Diluidores.

Que confundem literatura com informação de luxo.

Que continuam a dar as cartas e o tom geral da nossa cultura periférica e manca que assim prossegue girando em falso, celebrando o eterno retorno do Mesmo Revolucionário A Favor, travestido de Transgressor de Plantão, atualizado como Intelectual de Auto-Ajuda, lançando mais um livrinho na Fenac onde é proibido fumar, porque não se bebe não se trepa, para consumar a Assepsia Final: a Apoteose do Não-Dito!

Se em 70 os valores estavam invertidos, em 2018 eles se pulverizam! Será que a crítica da cultura e da literatura agora se resume a isso? A este exercício de hipocrisia estética? Praticado oralmente e por escrito, na internet, na imprensa, em sociedade, enfim, na vida.

É vital captar a pulsação do “espírito de época” (ou da “falta de espírito de época” como diz Jameson, em quem já não boto fé, talvez por ser brilhante demais mas não levar a parte alguma), porque essa “hipocrisia cultural” praticada a torto e a direito, de efeitos catastróficos a longo prazo, é produto da Censura Econômica a que se sujeitou o ser humano que, ou se acanalha ou morre de fome, mandando, de passagem, para o diabo toda a literatura e a liberdade para escrevê-la!

(in DesEstórias, Kotter, 2016)

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