A identidade complexa e a vida secreta de Frida Kahlo
O status cultuado e icônico de Frida Kahlo se deve muito a seus autorretratos, em que capturou e interpretou sua própria identidade visual
“Eu pinto autorretratos porque fico sozinha com muita frequência, porque sou a pessoa que conheço melhor“, disse a artista mexicana Frida Kahlo. O status cultuado e icônico de Frida se deve muito a seus autorretratos, em que capturou e interpretou sua própria identidade visual.
O tema levanta uma questão em uma nova exposição: a imagem pessoal e única de Kahlo era tão central para seu mito e persona como parte de sua obra? E o que seus objetos e estilo pessoal dizem sobre sua vida e sua arte?
Durante 50 anos, roupas e outros itens pessoais de Frida ficaram trancados na Casa Azul, onde a artista morava com o marido muralista Diego Rivera, em Coyoacán, perto da Cidade do México. Após a morte da mulher, em 1954, Rivera trancou 6 mil fotos, 300 itens pessoais e 12 mil documentos no banheiro da casa.
Quando os artigos foram finalmente revelados, os historiadores levaram quatro anos para organizá-los e catalogá-los. Agora, pela primeira vez, essas peças deixaram a Casa Azul para serem exibidas no Museu Victoria & Albert, em Londres.
Na exposição Frida Kahlo: Making Her Self Up, vestidos e outros itens pessoais são apresentados ao lado de suas pinturas, mostrando a conexão íntima entre eles. Ela é retratada como um tipo de artista performática, cuja identidade é uma extensão de sua arte. Os vestidos coloridos e adornos com flores estão lá, junto das próteses pintadas a mão e dos corpetes que ajudavam a sustentar sua coluna e mascarar suas deficiências físicas.
A descoberta dos objetos também permitiu uma compreensão maior sobre seu acidente. Itens como remédios e aparelhos ortopédicos lançam luz sobre sua história, além dos corpetes e coletes – incluindo alguns que ela pintou com símbolos religiosos e comunistas, assim como imagens que fazem referência a seus abortos espontâneos.
Estilo adaptado
Circe Henestrosa, cocuradora da exposição, disse à BBC que a construção da identidade de Kahlo “em torno de suas políticas, sua etnia e deficiência” é a tese central da mostra.
“A exposição busca dar um contexto pessoal, cultural e político à história de Frida. Ela sobreviveu a um acidente terrível, quase fatal, aos 18 anos, o que a deixou acamada e imobilizada. Muito mais foi entendido sobre o acidente após a descoberta dos objetos na Casa Azul, e a mostra lança luz sobre essa história por meio de seus remédios e aparelhos ortopédicos.”
Com a descoberta dos objetos pessoais da artista, novos insights foram revelados sobre como seu estilo pessoal era em parte guiado por suas deficiências. “Roupas se tornaram parte de sua armadura, para desviar, omitir e disfarçar suas lesões“, diz Henestrosa.
“Frida passou por múltiplas cirurgias, tanto no México quanto nos Estados Unidos, e teve que usar corpetes ortopédicos feitos de couro e plástico. Os corpetes eram necessários por razões médicas, mas ela também os decorou de forma elaborada. O estilo indígena que ela adotou permitia esconder esses itens sob longas saias e blusas com cortes geométricos.”
“Acho que o estilo poderoso de Kahlo integra tanto seu mito quanto suas pinturas. É a construção de sua identidade por meio de sua etnia, sua deficiência, suas crenças políticas e sua arte“, diz Henestrosa.
Segundo ela, quando a artista passou a usar os vestidos de Tehuana, ela queria reforçar a identidade mexicana – o traje é proveniente de uma sociedade matriarcal no sudeste do México, chamada Istmo de Tehuantepec.
“Frida entendeu o poder da vestimenta desde muito cedo“, explica a curadora.
“Após ter pólio aos 6 anos, ela ficou com uma perna atrofiada e mais curta, o que a levou a escolher saias longas. E começou a usar três a quatro meias na parte mais fina da panturrilha, além de sapatos com um salto interno para mascarar a assimetria.”
Isso mostra como ela construiu uma relação entre seu corpo e vestuário desde cedo. Ao usar os autorretratos e vestidos tradicionais mexicanos para se estilizar, Frida lidou com sua vida, suas visões políticas, suas batalhas de saúde, seu acidente e seu casamento turbulento.
De acordo com o designer Tom Scutt, a ideia de desvendar tesouros escondidos é central para a exposição.
“Há um espírito único de tempo e espaço nessa exposição. A atitude de destrancar um quarto na Casa Azul para descobrir todos os pertences de Frida ecoa na noção de chegar a uma mostra como visitante e descobrir os pertences por si mesmo. Por causa disso, a exposição tem uma carga mágica indiscutível“.
Dualidade, reflexão e repetição
A mostra explora a infância de Kahlo – inclui um álbum de fotos de arquitetura de igrejas feitas por seu pai, o alemão Guillermo Kahlo. Conta ainda com pinturas e fotos dela ao lado do marido e do círculo de amigos famosos, incluindo Leon Trotsky.
Seu senso de orgulho da cultura mexicana após a Revolução do México (1910-20) também está presente nos itens que ficaram guardados – o interesse pela arte, artesanato e tradições do povo indígena era uma paixão.
As décadas de 1920 e 1930 foram marcadas pelo que ficou conhecido como “Renascença Mexicana“. Nessa época, o país atraiu artistas, escritores, fotógrafos e cineastas do mundo inteiro. Fotos tiradas por Edward Weston e Tina Modotti, em 1920, também estão expostas na mostra. E há um mural de votos religiosos da coleção de Frida e Rivera. As pequenas pinturas oferecidas a santos eram uma influência para o casal de artistas.
Entre as roupas expostas, estão os tradicionais huipil (blusas bordadas em quadrados), rebozos (xales mexicanos), saias longas e joias, incluindo peças de jade colombianas e ornamentos modernos de prata.
Há também um resplandor, faixa tradicionalmente usada na cabeça pelas mulheres de Itsmo.
Os visitantes podem conferir ainda o batom vermelho da Revlon original da artista e o kajal que ela usava para definir sua famosa “monocelha”.
“A vida de Frida era cheia de dualidade e ideias complexas e opostas, a noção de olhar para si no espelho para pintar um autorretrato se tornou central [para a exposição]“, diz o designer Scutt.
“É essa dualidade, reflexão, repetição que tentamos expandir pela exibição, oferecendo aos visitantes uma ideia de dualidade.”
Essencialmente moderno
O arquiteto Matt Thornley, da empresa de arquitetura Gibson Thornley, que organizou a exposição com Scutt, afirma que a complexidade de Frida é central.
“A imagem externa de Frida é tão poderosa“, diz ele. “Os retratos fotográficos estão explodindo em cor e vida, assim como suas pinturas. A exibição explora isso, mas também sua fragilidade física e sua força interna. São essas complexidades que fazem dela uma figura tão duradoura e interessante.”
Assim como a própria artista, o design da exibição é “essencialmente moderno“, acrescenta Thornley.
“Age como um pano de fundo para os objetos e pinturas que descrevem eventos chave em sua vida. A exibição explora as raízes de Frida e sua posição dentro de um contexto maior de arte, cultura e política no México dos anos 1920 e 1930.”
A individualidade de Frida, sua energia e modernidade fizeram dela um ícone incomparável. Mas será que ela continuará a influenciar futuras gerações? A cocuradora Circe Henestrosa acredita que sim.
“Frida Kahlo é o próprio modelo da artista boêmia: única, rebelde e contraditória, uma figura cult que continua sendo apropriada por feministas, artistas, estilistas e a cultura popular. Como uma mulher, uma artista, um ícone, Kahlo conquistou uma aclamação quase universal rara. Em uma sociedade muitas vezes obcecada com a destruição das paredes do mundo interno, Kahlo é a própria personificação do ethos contemporâneo. Suas escolhas de roupa refletiam uma habilidade intuitiva de usar uma imagem visual ousada em uma época em que homens dominavam o mundo da arte e foi por meio da arte e da vestimenta que ela demonstrou suas crenças políticas, ao mesmo tempo em que lidou com suas deficiências.”
E uma coisa é certa: as paixões feministas e “contraculturais” de Kahlo combinam perfeitamente com os tempos de hoje. Como diz Henestrosa:
“Ao longo de sua vida, Kahlo foi vista algumas vezes como ‘exótica’, tratada com paternalismo ou excluída, mas hoje – sua identidade interseccional, complexa e autoconstruída é melhor compreendida e é inspiradora. Essa é a mensagem que queremos passar nessa exposição. Ela era uma artista mexicana com deficiência, buscando um lugar para uma mulher artista em um ambiente dominado por homens, na Cidade do México.”
“Nós, mulheres, não estamos lutando pela mesma coisa hoje? Quão mais relevante e atual ela pode ser?”, finaliza.
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