A leitora
Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político
Fora chamada à secretaria. Devia assinar alguns documentos ainda pendentes da matrícula do filho. Foi a própria professora do pequeno de quatro anos quem a atendeu. Indicou o local do ciente, quase ao rodapé da A4 timbrada e preenchida. Se todas as informações estiverem de acordo, senhora, ressalvou a que ensinava o á-bê-cê. Veja bem que esse formulário ia pra Secretaria de Educação. Dali, ao Ministério e sabe-se lá quais outras repartições que o documento fosse passear.
Ressabiada e buscando cumplicidade, já que o papel em questão parecia ser mesmo importante, pois ia ser analisado por gente igualmente importante de instâncias acima, a mulher avisou, não sem constrangimento, que era iletrada. Não teve o oportuno de frequentar escola, no local em que fora criada, lá no interior, onde o vento faz curva, gracejava sempre. E, vindo à cidade, não encontrou melhor sorte. Engrossava os dados estatísticos sempre negativos relativos à Educação. Dizia, como querendo se exibir, já que achou bonita a palavra quando alguém supôs sua condição, que fazia parte dos evadidos da escola. Julgava-se importante, com um título, afinal. Não, não tenho estudo, não senhor, sou evadida, respondia com peito levemente estufado. Não o era. Nunca evadiu de escola nenhuma, posto que nunca frequentou uma.
Mas como, quis saber a professora, pasmada. O pequeno de vivos olhos tinha seu olhar ainda mais abrilhantado quando era a hora da leitura, do conto. Dizia ele que era a brincadeira que mais gostava e mais fazia com a mãe. Essa lhe limpava o ranho escorregadio do nariz, arribava-o ao seu colo e lhe lia livros inúmeros. Livros grandes, coloridos e, sobretudo, cheio de ilustrações. Lia os que a professora enviava semanalmente e os comprado a acessível preço num sebo perto de onde fazia faxina.
A mãe, que criava sozinha o de estrelares olhos, riu, ao depoimento. Lia nada. Observava os desenhos e, tal criança de fértil e ilimitada imaginação, criava estórias, contava causos fantásticos. Os contos eram recheados de chocolates e afeto, que vêm a ter, ambos, quase o mesmo gosto doce e bom.
Buscava inspiração na sua infância, quando fazia a lida enfrentando o frio de geada descalça e maltrapilha. Nada muito pior do que hoje. Não raro, nas suas “leituras”, alguém vinha lhe buscar. Antes, o herói, que enfrentara não sei quantos obstáculos, lhe envolvia num quente casaco e lhe calçava um sapato cômodo e brilhante como os olhos do filho. Mas não tão brilhantes como agora, ocasião em que ouve a fábula.
O pequeno, maravilhado com os heroísmos dos ocorridos nos livros e salivante com as dulcícolas orações subordinadas adjetivas, ansiava pro dia em que aprenderia a ler bonito e desenvolto como a mãe.
*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”