O que tem de tão assombroso no livro que Bolsonaro não pôde mostrar no JN? A princípio, é bom lembrar que há uma distância imensa entre achar de mau gosto e constituir uma cruzada contra a obra, ainda mais sustentada pelo falso argumento de que ela estaria sendo adotada pelo governo
Rodrigo Casarin, Blog Página Cinco
Em um dos momentos mais tensos da entrevista de Jair Bolsonaro no Jornal Nacional, o candidato à presidência tentou mostrar um livro para as câmeras da Globo, mas foi prontamente repreendido pelos apresentadores – pelas regras, os entrevistados não podem apresentar qualquer tipo de material ou documento. Bolsonaro dizia se tratar de uma obra que seria distribuída pelo MEC junto com o “kit gay” em escolas de todo o Brasil e que descobriu isso por conta do “9º Seminário LGBT Infantil” que teria acontecido no Congresso.
Pois bem, como a Agência Lupa apontou, nunca existiu um encontro do tipo. Além disso, a polêmica ao redor do livro é antiga, tanto que o próprio MEC divulgou uma nota em 2016 afirmando que nunca produziu, adquiriu ou distribuiu o título em questão, que jamais constou em seus programas de materiais didáticos. Posição semelhante já havia sido tomada pela pasta em 2013, o que comprova como essa ladainha vem se arrastando por bastante tempo.
Mas, afinal, que livro é esse e o que ele tem de tão assombroso aos olhos de Jair Bolsonaro? Trata-se de “Aparelho Sexual e Cia – Um Guia Inusitado Para Crianças Descoladas“, desenhado por Zep e escrito por Hélene Bruller, publicado no Brasil pela Companhia das Letras em 2007. O título já saiu em pelo menos 10 idiomas e vendeu mais de um milhão e meio de exemplares pelo mundo. Nele, os autores, apoiados em um personagem de histórias em quadrinhos bem famoso na Europa (Titeuf, uma espécie de Calvin em francês), explica de forma humorada e didática algumas questões que passam pela cabeça de qualquer pré-adolescente: como é beijar? O que é masturbação? Como acontece o sexo? Como as mulheres engravidam?
Pela inovação que trouxe ao tema, o livro virou até exposição em Paris. Bolsonaro, no entanto, deixa claro nas redes quais são os trechos que mais lhe incomodaram. São aqueles que falam especificamente sobre o ato sexual– quanto tempo dura? Qual posição ficar? O que sentimos? – e uma página lúdica na qual o leitor é incentivado a inserir o dedo no buraco para simular um pênis ereto. Me parece de fato uma maneira válida de se falar sobre sexo para quem não entende do tema – um assunto que muitos pais têm dificuldade em abordar com os filhos -, mas entendo se alguém achar uma solução de mau gosto.
Em todo caso, há uma distância imensa entre achar de mau gosto e constituir uma cruzada contra a obra, ainda mais sustentada pelo falso argumento de que ela estaria sendo adotada pelo governo. Se o título se mantém na esfera privada, que cada pai compre-o ou não para seus rebentos – o que, evidentemente, não invalida a necessidade de discutirmos de maneira séria como o poder público deveria atuar na educação sexual das crianças. Sobre o assunto, o candidato à presidência também falou que gostariam de desconstruir a heteronormatividade. Ora, isso significa ensinar a todos, desde cedo, que qualquer forma de amor é válida e deve ser respeitada, não apenas entre homens e mulheres – que problema há nisso?
Após a entrevista na Globo a Companhia das Letras se posicionou sobre a menção ao título no seu Twitter: “O livro citado na entrevista do JN foi publicado pelo nosso selo jovem. Infelizmente está fora de catálogo, mas nos orgulhamos da publicação”. E a obra não está apenas esgotada, mas supervalorizada em sebos, onde é encontrada por preços que variam de R$ 109 a R$ 230. Pelo visto, Bolsonaro se tornou um grande divulgador e valorizador do trabalho de Zep.
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