Nem privada ou pública, quem educa é a sociedade
Vitor Ahagon*, Pragmatismo Político
Em tempos tão sombrios como os nossos, voltamos ouvimos falar, em alto e bom som, que a educação pública corre perigo. Isto decorre por conta do avanço do projeto neoliberal para a educação, que tudo irá privatizar e os interesses da burguesia triunfará finalmente, mais uma vez. Claro que este projeto afetará de forma drástica a vida de milhares de estudantes e suas famílias, em especial as mais pobres. Por isso mesmo, a esquerda clama, e com razão, pela defesa da educação pública, mas não apenas isso, que esta educação seja de qualidade. No entanto, acreditamos ser necessário dar um passo atrás e ouvir os velhos militantes do movimento operário revolucionário e anarquista do passado. Ao escutá-los, o debate se torna mais complexo do que a mera defesa da privatização ou estatização da educação.
Em meados do século XIX, quando os primeiros libertários dissertavam sobre as chamadas “questões sociais”, a educação confessional era aquela ministrada por padres ou pastores, que tinha por objetivo formar ovelhas obedientes e seguir os dogmas de suas respectivas igrejas. Existiam também aquelas, muito semelhantes das de hoje, escolas privadas onde o filho do burguês aprendia a “alta” cultura e as formas mais refinadas de como dominar e subjugar as massas, seja pela força ou pela inteligência. Contra essa educação, todo o conjunto dos movimentos socialistas, de todos os adjetivos que você pode imaginar, se opuseram, e se opõem ainda hoje, firmemente.
Todavia, quando falava-se da educação pública o caso é um tanto diferente. Os socialistas autoritários – que ganharam essa pecha de seus adversários que, claro, se autodenominaram libertários – não viam problema na educação dada pelo Estado, muito pelo contrário. Buscavam, sim, amplia-la cada vez mais a todo conjunto da sociedade. Os progressos do conhecimento científico não deveriam ser apenas da burguesia, por isso seria necessário democratizar (palavra muito nova e que posso estar cometendo um grande anacronismo eu sei, mas vá lá…) a ciência, fazendo com que os proletários tomassem consciência de sua alienação. Justamente por ser alienado, esses pobres ignorantes e desgraçados seriam iluminados pelos “operários mais avançados” – termo emprestado de Lenin – que teria passado por um processo de formação pela intelligentsia do Partido da vanguarda revolucionário. Ou seja, a mais pura e simples caridade e benevolência daqueles que estão em cima.
Visão um tanto quanto diferente de seus primos, os socialistas libertários. Estes viam que a educação fornecida pelo Estado acabava privilegiando uma outra classe, que apesar de ser também dominante como a burguesia, e que em alguns casos se fundia à ela, poderia agir de forma independente: a classe política.
A classe política, grande defensora dos interesses da burguesia, mas também da eclesiástica, militar etc., utilizava a educação como o grande vetor ideológico de seu projeto de poder. Com a educação pública, a classe política poderia modelar todas as inteligências segundo um tipo único, tipo que seria forçosamente, pela própria natureza do espírito humano, a negação da vida social, a qual se compunham de lutas, contradições, afirmações contrárias; seria o imobilismo, a atonia, a atrofia geral em detrimento de todos. Quanta lucidez, mesmo se tratando de trabalhadores que tinham mais de 12 horas de trabalhos diários e que não eram nem “operários avançados” ou muito menos a intelligentsia do partido da vanguarda revolucionária. Talvez, eles não fossem tão alienados assim.
Fica claro, então, que para os socialistas libertários, a educação em regime capitalista tinha por objetivo servir às classes dominantes, seja ela a burguesia, eclesiástica, militar ou a classe política. Para que a burguesia, treinada em suas escolas na arte de dominar, pudesse explorar até o ultimo fio de cabelo as classes populares, esta deveria ser domesticada. A multidão, que pela sua própria natureza – social – é diversa e contraditória, deveria ser modelada de tal forma que se torne uniforme, pois, assim como o indivíduo, seria mais fácil de se subjulgar, como o pai ao filho ou filha. A massa que se comporta, pensa e deseja como um indivíduo também seria muito mais fácil lhe colocar o cabresto O indivíduo torna-se massificado e caminha tranquilamente para o curral (eleitoral?) para ser tosquiado ou abatido.
Portanto, o ensino em sistema capitalista, seja ele público ou privado, é aquilo que o primeiro a se autoproclamar anarquista de forma positiva, Pierre Joseph Proudhon, chamou de “educação servil”. Tal educação tem por objetivo dar às classes populares apenas o grau de saber que exige uma conscienciosa obediência ao melhor dos interesses e da segurança das classes dominantes. Fica garantida, assim, a reprodução de classes pela educação – e que depois será estudada por Pierre Bourdieu mais de cem anos depois, mas que não faz nenhuma menção ao seu conterrâneo anarquista.
Mas veja, se tanto a educação privada quanto a pública são dogmáticas e que servem aos interesses das classes superiores, qual seria a alternativa? É surpreendente como a resposta remonta um tempo mais antigo que nossos camaradas socialistas libertários.
Fourier, se contrapondo ao burguesíssimo Rousseau de “Emílio ou da Educação” – a quem Nietzsche apelidou de “A tarântula moral” –, dizia que é todo o conjunto da sociedade que educa, sendo a criança amplamente subtraída à ação direta dos adultos. Fourier não deseja “educar” a criança, não quer tirá-la de si mesma; ele quer, ao contrário, devolvê-la a ela mesma e a seus pendores, deixá-la ir até o limite de suas infantilidades; longe de visar à “calma das paixões”, ele busca dar-lhes livre curso. Propositiva que os internacionalistas libertários da Associação Internacional dos Trabalhadores reafirmaram dizendo: que a sociedade assuma a educação, e, cessando as desigualdades, a caridade desaparecerá. O ensino torna-se um direito igual para todos, pago por todos os cidadãos.
Nem privada ou pública, mas social. A sociedade é quem educa! Retomando Fourier, mas indo muito além, Proudhon dirá que a educação deveria ser integral, ou seja, uma educação que busque desenvolver tanto o cérebro quanto os músculos e que pelo trabalho desalienado pudesse fazer emergir um novo caráter. Aqui sobressai uma pergunta: como desalienar o trabalho? E Proudhon responde: através da politecnia.
Reconhecendo que a divisão social do trabalho cria parcelizações, especializações e divisões entre os próprios trabalhadores, a politecnia faria com que o estudante tomasse consciência de todo o processo da produção da indústria, recebendo uma educação que abrangesse todo o sistema fabril.
Portanto, a politecnia do aprendizado é um ensino que deveria ser dado por completo. Segundo Proudhon, a indústria exigiria do aluno mais tempo que a gramática, a aritmética, a geometria, a própria física, pois o operário não teria apenas de exercer sua inteligência e mobiliar sua memória; seria preciso que executasse com suas mãos o que sua cabeça compreendeu: é uma educação simultaneamente dos órgãos e do intelecto. A um só tempo a educação integral afasta o ensino memorialista e aquele que separa os trabalhos da mão e do cérebro, não parando por aí.
Inserido nessa tradição libertária o educador, sindicalista e anarquista Adelino de Pinho lembra-nos que nem só de pão vive o homem. O homem tem necessidade de livros, de música, de estátuas, de pintura, de paisagens. Ao invés de privilegiar a razão em detrimento da emoção, a educação social busca equilibrar esses dois polos numa dialética perpétua, dando a possibilidade ao ser humano desenvolver a inteligência, o corpo, as emoções e os sentimentos.
Assim sendo, os socialistas libertários ao reivindicarem a educação integral, não buscam formar um ser humano completo, ou mesmo uma espécie de super-homem que estaria além do bem e do mal. Muito pelo contrário, constroem um ambiente e situações onde possibilitam crianças ou adultos desenvolverem plenamente suas capacidades físicas, intelectuais, morais, emocionais e sentimentais para que se desenvolvam enquanto seres humanos, tendo consciência da sua incompletude, como bem disse Paulo Freire anos depois.
Muito além da educação pública ou privada, é o conjunto de toda sociedade que educa. A responsabilidade educativa não seria apenas da família ou da escola, mas seria compartilhada entre os diferentes agentes sociais: associações culturais, profissionais, sindicatos etc. A partir daí as ideias-força de ensino pela sociedade e educação integral, serão dois pilares fundamentais em todos os escritos de pedagogia e educação libertária.
Neste momento ouvimos uma voz dissonante e que sussurra em nossos ouvidos: “Vocês – a quem Mikhail Bakunin chamou de socialistas burgueses – deixam que o povo se esgote com o seu trabalho cotidiano e em sua pobreza e então dizem ao povo: ‘Instruam-se!’. Gostaríamos de ver como vocês instruem o povo e seus filhos depois de 13, 14 ou 16 horas de trabalho embrutecedor, com a miséria e a incerteza do amanhã como única recompensa”.
Um soco no estômago que tira todo nosso fôlego. A educação não vai ser integral numa sociedade desigual onde os indivíduos são fragmentados e especializados de acordo com as regras da divisão social do trabalho e a exploração capitalista. O velho socialista libertário russo nos desmonta com seu olhar aguçado e mostra que a emancipação intelectual não se concretizará sem a emancipação econômica. Revolução ou Escravidão. Socialismo (libertário) ou Barbárie. Uma educação dada pela sociedade em regime capitalista só faz reproduzir as desigualdades econômicas, raciais, sexuais, de gênero, étnicas e muitas outras. Incluir conteúdos nos currículos escolares, denunciar os privilégios ou a exploração e dominação no capitalismo seria – e é – fundamental. No entanto, não é o suficiente para mudarmos a sociedade radicalmente.
Neste momento, o movimento anarquista enfrentou uma contradição: A educação nas escolas, públicas ou privadas, assim como no trabalho, fragmentaram o indivíduo, pois estão à serviço do Capital. E para que a educação seja integral, esse indivíduo deverá ser socializado e aprenderá em sua interação com a sociedade. Porém, como desenvolver uma educação integral numa sociedade em que parcealiza o indivíduo?
Diante de tal pergunta, a resposta que os socialistas libertários não poderia ser outra: criemos nossas próprias escolas! Como vimos com Proudhon, apesar de sua propositiva ser uma forma de educação desescolarizada, as escolas anarquistas buscaram criar um ambiente em que o indivíduo pudesse desenvolver plenamente suas capacidades físicas, intelectuais, morais etc., procurando assim formar pessoas que poderiam, por sua vez, influir na sociedade em que viviam e poder transformá-la num sentido libertário. Corroi-se, assim, o mito da neutralidade educativa!
Tendo consciência dessa contradição, foram criadas várias escolas, tanto pelo movimento anarquista, quanto pelas próprias associações operárias. Cempuis de Paul Robin. Yasnaya Polyana, de Tolstói. A Colmeia, de Sébastien Faure. A Escola Moderna, de Francisco Ferrer são alguns exemplos e, praticamente, todas elas tinham alguma relação com os sindicatos de matiz revolucionária.
Esta última, uma escola racionalista, tentou, a todo custo, dar plena liberdade à criança. Nela crianças de ambos os sexos podiam estudar juntas, como irmãos e irmãs sem distinção de gênero. Não existiam nem prêmios ou castigos, buscando estimular a solidariedade ao invés da competição. A escola também era um centro de pesquisa, com uma rica biblioteca e materiais de laboratório. Havia também uma gráfica onde se rodava o jornal sindicalista revolucionário La Huelga General e o Boletim da Escola Moderna. Conferências dominicais sobre ciência, higiene e questões sociais de todos os tipos eram debatidos semanalmente com estudantes e suas famílias. O educador, em meio a esta nova pedagogia, serviu-se também de ensino, e estudava o racionalismo nas Escolas Normais. A península ibérica borbulhava e a Revolução batia à porta das classes dominantes. O medo fez prender Ferrer sem provas e uma salva de tiros varou seu peito, mas não antes dele gritar: Viva a Escola Moderna!
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Se a educação não muda a sociedade de forma radical, as experiências pedagógicas dessas escolas fizeram tencionar ao limite as contradições do sistema capitalista. Hoje, o medo que sentimos com os constantes ataques à educação, seja da extrema direita com a Escola Sem Partido ou dos liberais da reforma do ensino médio, obriga-nos a defender a escola pública, mesmo que esta tenha em vista a reprodução das desigualdades. Mas, não podemos perder de vista os ensinamentos dos socialistas libertários de ontem, “e se queremos, desejamos e aspiramos, um mundo melhor onde todos gozem a alegria de viver, satisfeitos da vida e libertos da fome, da opressão e da ignorância bestial; se queremos edificar este belo monumento, a escola – a Escola Racional – é o pedestal”. Talvez a escola não seja esse pedestal da emancipação social, como disse Adelino de Pinho, mas, com toda certeza, colabora para a edificação de uma nova sociedade libertária. Mãos à obra!
Referências Bibliográficas:
BAKUNIN, Mikhail. A Instrução Integral. São Paulo: Editora Imaginário, 2003. FAURE, Sébastien. A Colméia. São Paulo: Editora Biblioteca Terra Livre, 2015.
FERRER Y GUARDIA, Francisco. A Escola Moderna. São Paulo: Editora Biblioteca Terra Livre, 2014.
LIPIANSKY, Edmund Marc. A Pedagogia Libertária. Manaus: Editora Imaginário e Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2007.
PINHO, Adelino Tavares de. Pela Educação e pelo Trabalho e outros escritos. São Paulo: Editora Biblioteca Terra Livre, 2015.
*Vitor Ahagon é professor de história, integrante da Biblioteca Terra Livre e colaborou para Pragmatismo Político.