A produção de carne de mamíferos é a forma mais brutal de concentração da riqueza alimentar: são necessários 10 quilos de cereais – que poderiam saciar 10 famílias – para que uma vaca produza um quilo de sua carne – que alimentará uma só família. Atualmente, o mundo ocupa um terço de suas terras produtivas para fabricar carne. O mecanismo não pode perdurar, o planeta não aguenta
Martín Caparrós, ElPaís
Dizem que não tem mais volta, que é assim mesmo: comecemos a pensar quais, e como, porque em breve vamos nos alimentar de muitos insetos. Ocorre que o fornecimento de proteínas animais já é um problema, e será cada vez mais. A produção de carne de mamíferos é a forma mais brutal de concentração da riqueza alimentar: são necessários 10 quilos de cereais –que poderiam saciar 10 famílias– para que uma vaca produza um quilo de sua carne –que alimentará uma só. Durante milênios, a carne só foi possível porque pouquíssimos a comiam; agora, quando cada vez mais gente pode pagá-la, o mundo está sobrecarregado, gastando recursos que não tem –um terço de suas terras produtivas– para fabricá-la.
O mecanismo não pode perdurar, o planeta não aguenta. Então, enquanto termina de ficar pronta a carne produzida em laboratório por clonagem de células, parece que os insetos fornecerão essas proteínas. É preciso começar a se acostumar, dizem, e há milhões de dentes rangendo. Não deveriam, mas a ideia não chega a empolgar. Já faz quatro anos que três holandeses encabeçados pelo antropólogo Arnold van Huis, o maior propagandista dos insetos, publicaram o livro The Insect Cookbook: Food for a Sustainable Planet (“O livro de cozinha dos insetos: alimentos para um planeta sustentável”). Artigos foram publicados, especialistas se reuniram, e muitos anunciaram a boa nova, mas quem de vocês comeu um inseto ultimamente?
(Embora a palavra insetos seja enganosa: não dizemos que comemos mamíferos, e sim que comemos vaca –muitos–, porco– outros–, cordeiro –alguns–, cachorro –quase ninguém–, cavalo – cada vez menos –, mas não comemos elefante, canguru, rato nem pessoas, em princípio. Por outro lado, a ideia de “comer insetos” remete tanto ao gafanhoto como à barata e à vespa, sendo repugnante para muitos.)
O que se diz é que comer ou não comer certos animais depende de encontrar a distância justa. Não comemos os que queremos por perto, nem os que tememos por serem longínquos; comemos o que está aí, disponível, mas sem relação, inscrito numa tradição, conhecido: aqueles mamíferos, mais três ou quatro aves. Um inseto, por outro lado, está no escuro, em cantos afastados, na inquietação. Um inseto soa como algo sujo ou ameaçador: ou polui ou dói. Um inseto, em princípio, dá nojo –e, agora, temos que aprender que nos convém.
Tudo consiste em mudar sua imagem: torná-los cool, apetitosos. Mas os insetos não têm lobby industrial; só algumas ONGs e acadêmicos bem-intencionados, chefs cheios de culpa e start-ups entusiasmadas. Que esbarrarão na resistência dos poderosos fabricantes de carne de mamífero, dispostos a tudo, como sempre, para manter seus privilégios, seus negócios.
Avizinha-se uma batalha cultural extraordinária. Os açougueiros usarão todas as armas. Não estranharia que começassem a chover, por exemplo, sisudas teses sobre os danos causados pelo consumo do Alphitobius diaperinus –ou verme do búfalo– no duodeno toponímico. Ou que Hollywood se pusesse a produzir filmes assustadores em que enormes insetos invadem e destroçam. Ou que os jornalistas, desses que nunca faltam, contassem com recursos e detalhes as insaciáveis epidemias causadas por abelhas nutritivas em Bornéu. Que tudo seja para o nojo, para o medo, os preconceitos.
Será, definitivamente, uma batalha épica entre nossos terrores mais atávicos e nossas necessidades mais atuais: será para assistir comendo pipoca. Ou, melhor, para participar: uma luta entre os que pretendem conservar tudo para alguns poucos, e os que querem que muitos outros tenham um pouquinho. Assim, a guerra contra o nojo será, quando for lançada, outra batalha da grande guerra contra a fome.
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