No rastilho das Jornadas de 2013, Bolsonaro estava se vendendo a um público juvenil. E correu livre por quase cinco anos – o que é muito na vida de um guri. Eles foram pegos pela onda quando tinham uns doze, treze anos e agora estão a ponto de votar. Quem combate a publicidade infantil sabe o quanto a mente em formação é vulnerável
Márcio Venciguerra, Jornal GGN
O machismo efetivamente é o pé de barro de Jair Bolsonaro. O ponto fraco o faz cair como o ídolo da Babilônia com uma só pedra rolando. A ampla maioria da sociedade rejeita a perspectiva da utopia patriarcal nazicrente, se une e acaba com a festa em dois palitos.
Exemplo disso foi a velocidade espantosa com que mais de um milhão de mulheres formaram um grupo na internet. Na rede, formaram uma frente com uma capilaridade nacional e vontade de realizar manifestações de rua contra a candidatura.
Jair Bolsonaro atualmente lidera uma frente ampla de lideranças fascistas e fundamentalistas monoteístas, como pastores, policiais militaristas e operadores do Direito – a exemplo de membros da Lava Jato. Tem também o apoio de empresários com espírito animal predador e agronegociantes, que podem estar aliados mais por motivos fascistas e interesse pessoal do que pelo aspecto patriarcal.
Na semana anterior à facada, um dono de fábrica de sapato manifestou apoio a Jair claramente por considerá-lo o melhor chicote disponível contra os trabalhadores. Tomou uma invertida de Pabllo Vittar e agora tem de se virar com um movimento de consumidor@s contra a sua marca.
No entanto, o sucesso eleitoral se dá porque seduziu garotos jovens com uma campanha na intenet baseada em memes e vídeos que o retratam como irreverente, como foi observado pela pesquisadora Esther Solano numa escola estadual em São Miguel Paulista, na periferia de São Paulo, capital.
A boa notícia aí é que os ideais machistas e reacionários não foram assimilados junto, tanto que os garotos não sustentam um debate mínimo. A mensagem passada pela campanha muito bem elaborada de internet fixou apenas uma mensagem: “Bolsonaro é um cara irreverente, boa praça e que gosta de zoar”. Os garotos parecem gostar dele, apenas. Aparentemente, a única pauta política comprada por eles é a segurança pública, que não é só de Jair. Programas policialescos em geral reforçam o pedido para prender e arrebentar.
A má notícia é perceber como as redes sociais tornaram esses jovens vítimas fáceis da propaganda política e as forças progressistas nem se deram conta. No rastilho das Jornadas de 2013 e, até mesmo anos antes, Bolsonaro estava se vendendo a um público juvenil. E correu livre por quase cinco anos – o que é muito na vida de um guri. Eles foram pegos pela onda quando tinham uns doze, treze anos e agora estão a ponto de votar. Quem combate a publicidade infantil sabe o quanto a mente em formação é vulnerável. Pagamos um preço por termos dormido no ponto
Por conta dos memes, Jair é também parte da onda reacionária que luta pelo direito à piada preconceituosa e grotesca. Humoristas grosseiros andaram sendo processados por coletivos LGBT e feministas por conta dessa prática, que tem sua vertente no marketing eleitoral liderada pelas equipes de comunicação de Jair. Essa batalha não está ganha. Os marqueteiros têm uma habilidade sem fim de criar mitos desta maneira e agem livremente.
Os bolinhas
O fato de os apoiadores serem na maioria homens está mais do que comprovado. O mesmo se dá na massa de manobra jovem e adolescente. As antropólogas Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Mury Scalco, que investigam a adesão dos jovens da periferia de Porto Alegre ao candidato, contam que tiveram de criar um grupo exclusivamente masculino para que os rapazes se sentissem à vontade para declarar seu voto. Perto das garotas, poucos têm coragem. “As meninas são muito articuladas na crítica ao machismo que o candidato demonstra”, disse Rosana à reportagem do El País.
No entanto, essa pressão aparentemente apenas gera o fenômeno do voto envergonhado e cria uma demarcação de identidade entre eles e elas. Para as pesquisadoras, o apoio a Jair é, em parte, uma reação dos garotos ao feminismo militante das meninas.
Esse achado da pesquisa não é tão surpreendente assim, pois o que o machismo se alimenta da disputa Bolinha versus Luluzinha já foi observado antes. É difícil, porém, necessário encontrar meios para transformar o conflito em diálogo, com o objetivo de mostrar que o patriarcado é ruim para todo mundo.
As meninas já estão fazendo isso com sucesso porque o voto envergonhado é um primeiro passo. E o interessante é que as pesquisadoras encontraram eleitores de Jair com discurso não machista, não racista e que nem mesmo encaram o Jair como tal. Seria só um moleque como os irmãos do Partoba, autores da havaiana de pau e da dolinho (quem não conhece, veja no youtube).
Enfim, morderam a isca da propaganda.
Após a campanha eleitoral, talvez o clima será mais favorável a esse tipo de convencimento, que é necessário porque grupos como os nazicrentes, que lutam por um ideal utópico, não vão parar após uma simples derrota. Vencer Jair é só o primeiro passo para tornar sem sal e amargo o caldo de cultura da piada tosca – inclusive as videocassetadas e vídeos afins.
Fitna e heresia
Essa disputa entre uma sociedade livre e patriarcado no ocidente vem desde a Idade Média e tem tido resultados diferentes. No mundo muçulmano, os barbados vencem, mesmo que tenham de tirar sangue no processo. No mundo cristão, a vitória tem sido dos praticantes do namoro e da heresia. Mas ainda não é uma vitória completa, como mostra a coalizão de Jair.
Após a campanha eleitoral, será necessário manter a pressão sobre os ideais nazicrentes. Só então os resultados serão mais efetivos porque será possível abandonar o ímpeto belicoso de confronto eleitoral. Isso porque o debate deve ser feito com o espírito de fitna (a parte do charme e não a do combate).
O feminismo do século XX herdou as práticas do anarcosindicalismo, como os protestos, greves etc. Os banners reunidos pela #elenão são derivados dos cartazes de mobilização. Praticamente todas as táticas foram inventadas na virada para o século XX e são particularmente eficientes contra o poder institucionalizado, como o machismo incrustado nos tribunais (a bola da alienação parental está quicando, pessoal) e na medicina (violência obstetrícia causa mais vítimas do que feminicídio, se não contar só as mortes; sofrer e não morrer é ruim o bastante).
Mas um outro passado também pode nos ser útil neste momento. Grande parte dos avanços contra o patriarcado foram obtidos por meio da imposição das boas maneiras. As líderes, um grupo de mulheres dos séculos 16 e 17 não seriam nossas heroínas preferenciais, eram inclusive aristocratas, porém, devemos muito às táticas pacificadoras delas.
Uma professora de literatura, a italiana Benedetta Craveri, contou a história da quase esquecida contribuição feminina para a existência do iluminismo e o florescer da ciência pouco antes da revolução francesa.
Esquecida, mas não foi pouca coisa. Basta lembrar que Émilie du Châtelet corrigiu a equação da primeira lei de Newton — uma experiência da francesa provou que a massa deveria ser multiplicada pela aceleração ao quadrado e não pela aceleração simplesmente como pensava o lorde inglês.
Segundo Benedetta, a maior contribuição das mulheres foi enquadrar todo mundo em regras que favoreciam o confronto de ideias e não de egos. “Eram leis de claridade, de mesura, de elegância, de respeito pelo amor próprio alheio”, explica Benedetta. “O talento para escutar era mais apreciado que o talento para falar, e uma agradável cortesia freava a veemência e impedia o enfrentamento verbal”.
Para quem vem de uma família italiana, esse tom polido da corte francesa é um choque, porém, Benedetta descreveu um ambiente de respeitoso, onde homens e mulheres esbanjavam a própria fitna para gerar uma revolução de heresias na filosofia ocidental.
Esse processo é uma continuidade de algo que vinha desde a virada do século XI ao XII, embora nesta época os homens tivessem um papel maior. Segundo o historiador Georges Duby, o subcontinente europeu passou nesta época por um processo de liberação da mulher com o enfraquecimento do mito de Eva — o que precedeu o avanço da economia, o renascimento e uma fase de grandes invenções.
Todo escolástico cristão, rabino ortodoxo ou islâmico da gema costuma aconselhar o rebanho masculino a manter a mulher neutralizada porque ela continuava a mesma criatura que aceitou a proposta da serpente no Eden. No Gênesis, Eva foi aliada do demônio num complô para expulsar o casal do paraíso. Assim, para eles, há o permanente risco de ela levar o homem a cometer mais besteirinhas demoníacas.
Como Duby contou, em Eva e os Padres, o ataque à posição tradicional de São Tomás de Aquino e seus pares da Santa Madre não foi feito frontalmente pelos religiosos reformistas. A culpa sobre as mulheres foi amenizada em textos secundários, nos sermões feitos para serem lidos nas reuniões de família e nas peças teatrais escritas para o catecismo nas ruas. Enfim, no material de propaganda para as conversas domésticas.
Fora dos púlpitos, foi vendido como um argumento central a narrativa de que a punição já fora dada por Deus ao gênero feminino, que ficou com a parte mais dura e perigosa da procriação. Portanto, não seria justo continuar a discriminação por parte dos homens. Para Duby, essas mudanças levaram gradualmente à criação do amor romântico na França e o surgimento do cavalheirismo.
A nova pregação não permitia ver as mulheres como frutas a serem colhidas à beira da estrada ou compradas, dependendo da origem social da moça. Também não eram, como a Igreja pregava, aquele bando de taradas lascivas capazes de converter os santos padres em Amaros sem vergonha (a ideia de culpar as vitimas de estupro pelo crime era lei na Idade Média, já que eram elas que traziam em si o pecado original; fitna, se preferir).
O patriarcalismo persistiu, apesar de espinha quebrada, sem que os homens conseguissem zerar novamente os custos do namoro novamente. Assim, foram obrigados a serem sofisticados, o que acabou enfraquecendo o patriarcalismo aos poucos. Essa tradição levou à obra de Cartola, por exemplo, um conjunto elaborado de peças destinadas a propagar o namoro e a gentileza.
Para Duby, as novelas de cavalaria não significam por si só a alteração da sociedade medieval. Afinal, podem ser apenas fantasias para entreter, obras distantes da realidade, como Star Wars. No entanto, o surgimento das canções enaltecedoras das damas é um sinal a ser considerado pela história, por serem peças do convívio social. Assim, divulgar o cancioneiro de bom gosto, por incrível que pareça, é uma atitude contra o patriarcado que tem se mostrado eficaz.
Redes sociais
Há um front aberto para ações no estilo das defensoras da arte da conversação, precursoras do iluminismo uropeu. Hoje, as redes sociais e os youtubers estão sendo um bastião da grosseria, onde circulam mitos catalizadores de machismo e outro males. As salas de bate-papo precisam de regras de boas maneiras porque, como as pessoas não estão frente a frente, o legado da boa conversa não existe.
Além de trocar as videocassetadas por gatinhos fofos, toda grosseria não pode ser tolerada. Os instrumentos de retórica vazia não podem ser tolerados. LETRAS MAIUSCULAS não podem ser toleradas. Quem vive na internet poderia dedicar algum tempo para um livro e entender a importância de estabelecer os padrões civilizados. (A Era da Conversação, da Benedetta, não achei em português. Mas há a “Arte da Conversação”, de Peter Burke, que é igualmente interessante).
Com a propagação dos bons modos e dos hábitos de fitna, toda a sociedade começou a ser mais polida e a rejeitar a utopia fundamentalista. Agora isso está em risco. Se o ambiente virtual não tiver as regras das mesas de jantar, de bar e da sala de visitas estaremos fadados a ver outro “mito” pela frente, que talvez nem seja machista. Seja só banqueiro e por isso não teria pés de barro.
Pode parecer piegosas, mas é possível dizer que a guerra é o oposto de sofisticação. Isso é claro ao se observar os murais Guerra e Paz de Portinari. A Paz é não apenas a ausência de guerra. Ela é uma atividade intensa de brincadeiras e atividades prazerosas.
Fica estranho falar em paz num momento em que a agressividade cresce na campanha e candidatos levam facadas e tiros – como Renato Freitas (PT-PR) que foi agredido com dois tiros de bala de borracha disparados pela guarda municipal de Curitiba, enquanto fazia panfletagem na praça do Gaúcho, tentando ser deputado estadual.
A violência é como um desastre de avião, acontece por causa de uma sequencia de erros e ignorância. A brutalidade em si não tem sentido moral se não estiver acompanhada de um pano de fundo. O assassinato de Martin Luther King, que não seria injustiça não fosse parte da opressão dos racistas.
Mas como a violência é um agravante da injustiça, ela se torna um objetivo prioritário que só será reduzida por meio do charme revolucionário que nos leva a heresias e sua fala mansa .
Leia também:
Bolsonaro é o único candidato que não propõe mais recursos para a saúde pública
Bolsonaro não encontra eleitora negra e rouba foto de banco de imagens
O boato do jovem que morreu tentando mostrar que facada em Bolsonaro era falsa
Os desdobramentos das fake news no caso Bolsonaro
Por que Bolsonaro perde para todos os adversários no 2º turno?
Acompanhe Pragmatismo Político no Twitter e no Facebook