A dúvida não era se, mas até quando figuras como Jair Bolsonaro ou Lula poderiam continuar andando a pé nas ruas de um país deflagrado sem que nada acontecesse com eles, seja pela ação de um grupo, seja decisão de um lobo-solitário
Leonardo Sakamoto
Com o atentado contra a vida do candidato mais bem colocado na última pesquisa de intenção de voto à Presidência da República, o Brasil assume a barbárie.
O ataque a Jair Bolsonaro (PSL), em Juiz de Fora (MG), nesta quinta (6), durante um ato de campanha, é o retrato mais bem acabado da perda de crença nas instituições e nas leis e regras que regem a vida cotidiana. É representativo da ausência de fé na arena pública como espaço para construção de saídas coletivas. E é assumir que a aniquilação do outro passa ser um instrumento político válido.
O Brasil sempre matou seus pobres, suas minorias em direitos, seus sem-terra e sem-teto, seus trabalhadores rurais, seus ativistas, seus jornalistas, seus políticos. Mas um país que tentar assassinar um presidenciável em praça pública, à luz do dia, de forma premeditada, deixa claro que não se importa mais com a democracia, nem com nada daquilo que une sua sociedade.
Quanto tempo um país que executa Marielle Franco (a quinta vereadora mais votada de nossa segunda maior cidade, voz de várias minorias historicamente sub-representadas) e não resolve sua morte levaria para subverter as regras de civilidade política e tentar matar alguém que pode ser nosso próximo presidente?
Dado a ultrapolarização de setores da direita à esquerda, não muito. A dúvida não era se, mas até quando figuras como Jair Bolsonaro ou Lula poderiam continuar andando a pé nas ruas de um país deflagrado sem que nada acontecesse com eles, seja pela ação de um grupo, seja decisão de um lobo-solitário.
Em março deste ano, veio o primeiro aviso, com o ataque a tiros aos ônibus da caravana que o ex-presidente realizou na região Sul. Por pura sorte, ninguém ficou ferido. O veículo que transportava parte dos jornalistas ficou com buracos de bala. Em qualquer lugar minimamente civilizado, todas as autoridades e representantes políticos, independentemente de sua orientação ideológica, teriam repudiado o ataque e exigido investigação urgente. Porque foi um ataque a tiros contra um ex-presidente e, até então, pré-candidato à Presidência da República, mesmo que os agressores tenham errado o ônibus em que ele estava. Mas, por aqui, isso foi relativizado, minimizado, comemorado. Ou seja, asfaltamos o caminho para o passo seguinte.
Uma coisa é protestar contra candidatos e suas propostas para o país. Ou mesmo exigir que enfrentem a Justiça e sejam punidos, conforme a lei, por eventuais crimes cometidos. Outra coisa é tentar assassinar representantes políticos e, com isso, calar aqueles que eles representam. Esse limite entre civilização e barbárie estava sendo posto à prova repetidas vezes. E, agora, voltou a se romper.
Neste momento, levas de militantes anti-Bolsonaro, elaboram suas teorias da conspiração nas redes sociais, lutando para tirar a importância do que aconteceu. Chamam o atentado de fraude, tachando de falsos os boletins médicos que dão conta da operação pela qual o candidato teve que passar. Buscam formas de mostrar que ele não foi atingido. Questionados, dizem que parte dos militantes bolsonaristas fizeram a mesma coisa no atentado à caravana em março – o que é verdade, mas não justifica. Pois, com o olho por olho, ficaremos todos cegos ao final.
Mas quem são os ”monstros” que fazem boa parte dessas ações? São apenas doidos perdidos na multidão? Adelio Bispo de Oliveira, de 40 anos, preso em flagrante após esfaquear o candidato afirmou – segundo policiais federais – que estava cumprindo uma ”ordem de Deus”. Seu perfil pessoal no Facebook está repleto de conteúdo contra o candidato, contra a maçonaria, elogios ao comunismo e muitas teorias conspiratórias, um verdadeiro saco de gatos ideológico, indicando desequilíbrio. Não é possível ainda afirmar que ele conta com algum grau de insanidade, mas certamente se alimentou da ultrapolarização na qual está mergulhado o país.
Em ”Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal”, a filósofa Hanna Arendt conta a história da captura do carrasco nazista Adolf Eichmann, na Argentina, por agentes israelenses, e seu consequente julgamento. Ela, judia e alemã, chegou a ficar presa em um campo de concentração antes de conseguir fugir para os Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial.
Ao contrário da descrição de um demônio que todos esperavam em seus relatos, originalmente produzidos para a revista New Yorker, o que ela viu foi um funcionário público medíocre e carreirista, que não refletia sobre suas ações e atividades e que repetia clichês. Ele não possuía história de preconceito aos judeus e não apresentava distúrbios mentais ou caráter doentio. Agia acreditando que, se cumprisse as ordens que lhe fossem dadas, ascenderia na carreira e seria reconhecido entre seus pares por isso. Cumpria ordens com eficiência, sendo um bom burocrata, sem refletir sobre o mal que elas causavam.
A autora não quis com o texto, que acabou lhe rendendo ameaças, suavizar os resultados da ação de Eichmann, mas entendê-lo em um contexto maior. Ele não era o mal encarnado. Seria fácil pensar assim, aliás. Mas explicar que a maldade foi construída aos poucos, por influência de pessoas e diante da falta de crítica, ocupando espaço quando as instituições politicamente permitiram. O vazio de pensamento é o ambiente em que o ”mal” se aconchega, abrindo espaço para a banalização da violência.
Já tratei desse livro aqui, mas achei que era pertinente trazer novamente. É assustador saber que alguém visto como ”normal” e ”comum” no dia a dia pode ser capaz, nos contextos histórico, político e institucional apropriados, tornar-se o que convencionamos chamar de monstro. Ou seja, os monstros são nossos vizinhos – aquela que empina pipa com sua filha, aquele que faz um ótimo churrasco, aquele que adora cuidar de roseiras. Ou podemos ser nós mesmos.
Como sempre digo, líderes políticos, sociais ou religiosos afirmam que não incitam a violência através de suas palavras. Porém, se não são suas mãos que seguram o revólver, é a sobreposição de seus argumentos e a escolha que fazem das palavras ao longo do tempo que distorce a visão de mundo de seus seguidores e torna o ato de atirar banal. Ou, melhor dizendo, “necessário”. Suas ações e regras redefinem o que é aceitável, visão que depois será consumida e praticada por terceiros.
Estes acreditarão estarem fazendo o certo, praticamente em uma missão divina.
Os envolvidos nesses casos colocam em prática o que leem todos os dias na rede e absorvem em outras mídias: que seus adversários político e ideológico são a corja da sociedade e agem para corromper os valores, tornar a vida dos outros um inferno e a cidade, um lixo. Seres descartáveis, que vivem na penumbra e nos ameaçam com sua existência, que não se encaixa nos padrões estabelecidos do bem.
Como dialogar com quem acha normal matar por ideias? O que fazer quando um ato, que pode ser de loucura, tem origem estrutural?
Independentemente da estratégia, ela começa com paciência e vai demandar muita resistência. Porque a barbárie não pode prevalecer.
Discordo frontalmente das ideias de Jair Bolsonaro, mas ele não deveria ser impedido de falar, afinal a liberdade de expressão não aceita censura prévia, mas prevê a responsabilização judicial posterior. Pois a partir do momento em que a política se torna proibida e é recebida à faca, a sociedade é ferida de morte.
Torço por uma rápida e total recuperação do candidato e pela punição do responsável por esse crime. Mas torço também para que o país não transforme o ataque em gatilho para aprofundar a guerra que trava contra si mesmo. Porque, se assim for, não sobrará muita coisa após outubro.
A discussão não é entre direita e esquerda, mas entre civilização e barbárie. E, antes que seja tarde demais, deve ser tratada de frente pela política, pela sociedade. Porque, dependendo do que aconteça, não são apenas mortos e saudades que deixaremos pelo caminho. Mas nosso futuro.
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